O PONTO DE APOIO
Ponto de Apoio, 20 de abril de 2013.
Amanhece. Assim que o sol se manifesta, o orvalho, congelado na fuselagem e as asas, evapora-se com os primeiros raios do Sol, pequeno e distante. Sobre as construções cobertas de gelo, montadas no dia anterior, os raios do sol adquirem estranhas tonalidades.
A areia vermelha brilha inusitadamente com a geada que derrete e evapora rapidamente. As plantas encolhidas sobre si mesmas durante a noite se abrem ao calor do sol, enquanto pequenos seres noturnos deslocam-se correndo, pulando ou arrastando-se, e se ocultam em fendas embaixo de pedras ou em buracos do chão. Outros cavam buracos e neles enterram-se para esperar a próxima noite.
Dentro da Antílope; no aconchego dos beliches, os terrestres estão à ponto de despertar da primeira noite dormida em Marte. Neste Ponto de Apoio muito bem escolhido; 71 kms ao norte do equador, a nave já tinha sido descarregada e o material estava no chão. No agitado dia anterior, abriram as portas de carga, montaram os guindastes e descarregaram os materiais de construção e a retroescavadeira.
Os antárticos montaram os três primeiros iglus do acampamento; depósito, laboratório e alojamento; construídos de vitroplast mole enchido com ar, coberto de pranchas de metal fino soldadas e cobertas com cimento rápido misturado com areia e pedras do solo local. Depois alisaram seiscentos metros de pista com a retroescavadeira, espaço suficiente para o pouso das naves que viriam.
O acampamento tinha provisão de água e comida para vários meses, sem contar com a carga do contêiner em órbita. Eles dormiram a primeira noite dentro da nave, porque os iglus não estavam totalmente solidificados. Os antárticos estavam cansados do trabalho e deixaram apenas o computador de vigia na noite com os sensores externos em prontidão. Mas a noite foi tranquila e nada imprevisto aconteceu.
Todos dormiram uma noite sem sobressaltos, uma noite inesquecível. Aldo adormecera tarde, olhando às sombras duplas da noite nas construções iluminadas pela luz das luas através da claraboia redonda junto à cabeceira do seu beliche. Acordado pela luz matinal, abriu os olhos e demorou alguns segundos para lembrar onde estava.
–Bom dia, mundo novo!
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–Antes de começar a explorar vamos colocar os postes e a fiação do gerador de escudo em torno do acampamento para deixar o território invulnerável – disse Aldo, sentado à mesa com uma xícara de café nas mãos, na cabine dos homens.
–Sim... Claro, se o que você disse ontem ao Elvis não está valendo, de tirar a nave daqui e procurar um local mais coberto. A radiação ultravioleta é alta neste local.
–Estamos bem protegidos pelo vitroplast, Nico – replicou Marcos.
–Creio que aqui está bem – concordou Aldo – O que vocês acham?
–Qualquer ponto duas léguas em volta está bom – respondeu Lúcio – estamos no meio de um deserto isolado e inóspito. Não acredito que os marcianos virão aqui a nos incomodar. Além do mais, as câmeras dos satélites vigiam o terreno 24 horas.
–O computador elaborou um mapa – disse Marcos – poderemos orientar-nos com o GPS. Se for preciso colocaremos mais satélites. Há mais alguns no contêiner.
–Vamos montar o escudo. Depois devemos ter certeza que ninguém nos viu.
–Proponho uma circunferência de dois quilômetros – disse Lúcio – devemos ocupar bastante terreno, Aldo. Há suficiente material para rodeá-lo. Nesse espaço podemos construir pavilhões e umas três pistas para as naves que virão.
–Tudo bem. Mas estou meio preocupado com a segunda parte do que você disse, Aldo – observou Marcos, servindo-se mais café – ainda que parece que estamos num local pouco frequentado. Os detectores não indicaram movimento de vida superior durante a noite em 100 kms em volta.
–E as concentrações de calor, Lúcio?
–Tão normal como numa cidade da Terra, Aldo, veja as fotos.
Lúcio estendeu a mão ao terminal e digitou um comando. Em seguida apareceu uma vista da cidade ao sul do local onde se encontravam. Parecia bem organizada, com edifícios piramidais, grandes, complexos e outros pequenos. Dispostos de maneira quadrangular, com ruas, esquinas e o mais.
–Na frente dos nossos olhos o tempo todo! – indignou-se Aldo – As sondas do século passado nos mentiram! Não podemos saber com certeza onde caíram essas malditas sondas!... Ainda bem que destruímos as que estavam em cima!
–Não podemos confiar nas enciclopédias do sistema – replicou Marcos – e nem nos mapas que o Esquadrão Shock roubou para nós da Mars Global Surveyor, lançada em novembro de 1996.
–É um dilema – concordou Nico, que ouvira em silêncio, mastigando pão de centeio feito a bordo – há no sistema mapas da Mars Global Pathfinder, lançada em 2 de dezembro de 1996, e que tinha um robô, o Sojourner. Pousou com pára-quedas e air bags para amortecer a queda, em Ares Vallis lugar que segundo as elucubrações do inimigo, já foi “rico em água quente”. Isso se foi realmente em Ares Vallis.
–Em 1993 perderam a Mars Observer – interveio Marcos – ficou em silêncio antes de chegar. Isso disseram na ocasião. Nestas alturas...
–Sugiro que veja a outra foto – disse Lúcio, colocando-a na tela.
Desta vez o plano mais alto, abrangia o acampamento, a cidade já vista e mais outra, ao leste além da mancha verde e um deserto.
–Este local é interessante – disse Lúcio – há duas massas de água em forma de meia-lua rodeando o território no qual os edifícios são maiores que os da outra cidade.
–E todas as duas parecem ter terras de cultivo – observou Nico.
–Onde? – perguntaram a coro. A observação do médico pegou-os de surpresa.
–Aqui, ao sul e também ao norte da cidade dos lagos, e ao leste desta outra cidade que está ao sul de nós...
–Nico; és muito observador! – admirou-se Aldo.
–Talvez porque sou médico. Gosto de detalhes.
–Ainda não resolvemos o que vamos fazer respeito aos nativos, Aldo.
–Nada por enquanto, Marcos. Vamos tentar passar despercebidos até fazer-nos fortes. Temos que saber qual é a sua aparência e seu poder tecnológico, se é que eles o têm. A não ser que sejam Alfas; se forem os detonamos com bombas.
–E se não forem?
–Se não forem deveremos tentar fazer um primeiro contato... Amistoso ou não.
–Como “amistoso ou não?” – perguntou Boris.
–Simples – respondeu Aldo – se o contato for amistoso, poderemos cumprir o nosso cronograma em paz, até que seja tarde para tentar deter-nos.
–Caso contrário?
–Caso contrário; damos uma bordoada firme, Boris. Deveremos lutar como antárticos que somos, para merecer este mundo. Está na hora de começarmos a conquistar nosso espaço à força, se for o caso. Foi para isso mesmo que viemos aqui.
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No resto do dia eles completaram a infra-estrutura da circunferência, cujo centro era o mastro da bandeira.
Instalaram o escudo e o testaram.
Após o meio-dia dividiram em quatro a circunferência com duas ruas perpendiculares de dois mil metros de comprimento; o espaço destinado às futuras construções e às pistas de pouso, e demarcaram o local onde se iniciaria a escavação de um poço para colocar o combustível de reserva que seria trazido pelas próximas naves.
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Em 22 de abril de 2013,
...A Antares decolou. Nos dias 23 e 24, partiram mais duas naves, seguindo a esteira da Antares. No dia 25; dirigida por controle remoto, desceu de pára-quedas a primeira remessa do contêiner; um blindado de exploração encaixotado; o ENGESA, ótimo para exploração a grande distância em ambiente hostil, movido com um reator nuclear.
Caiu a vinte e cinco quilômetros do acampamento. Foram buscá-lo Lúcio e Boris na retroescavadeira. A queda da caixa, emitindo um sinal, foi amortecida com bolsas de ar. Os antárticos encontraram-na, coberta pelo pára-quedas e as bolsas de ar.
Aberta a caixa recheada de espuma, retiraram o veículo de seis rodas intacto, pronto para funcionar. O pára-quedas, a espuma e as bolsas foram colocados dentro da caixa, provida de rodas de serviço que foram desdobradas para rebocá-la até o acampamento.
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1º de maio. Amanhece.
Lúcio, Aldo, Boris e Marcos abordaram o Engesa com provisões, água e ar para vários dias e uma barraca inflável de vitroplast do tipo burbuja (bolha, em espanhol). Nico ficou no acampamento com as cinco garotas.
–E não esqueça de ligar o escudo assim que partirmos.
Partiram ao leste, à máxima velocidade possível nesse tipo de terreno, 60 kph, Lúcio no volante, Aldo ao seu lado, Boris e Marcos na torre. O equipamento inclui um escudo portátil e um canhão de 70mm na torre.
Após 15 kms chegaram a uma depressão que Marcos batizou em espanhol de “Hondonada Negra”.
O Engesa parecia um monstro com as suas seis rodas subindo e descendo nas irregularidades do terreno descendente.
–Estamos dez metros abaixo do nível do deserto e a vegetação rasteira é cada vez mais alta, Aldo – disse Lúcio.
–Deve haver água embaixo, a vegetação rasteira tem mais de um metro de altura. Acelera, que o terreno está parelho.
Após 15 kms, marcados no odômetro, o terreno elevou-se novamente até alcançar o nível anterior e uma planície com vegetação escassa.
–Aqui é mais seco – observou Marcos – Estamos a trinta kms da base.
–Trinta e três, segundo o odômetro – acrescentou Lúcio.
Uma hora e meia e chegaram à mancha, que vista do espaço parecia vegetação.
–É mesmo vegetação – confirmou Boris.
–Uma selva – murmurou Marcos – Como atravessaremos...?
–Daremos um jeito – respondeu Boris – o terreno é descendente e essas árvores têm cinqüenta metros. Lá não se deve enxergar o sol.
–Até aqui chegamos – disse Lúcio – Devemos avisar ao acampamento.
–Sim, as garotas estarão preocupadas – respondeu Aldo – daqui retornamos.
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5 de maio de 2013.
De manhã, no iglu de moradia, mais confortável do que a nave; e para onde já tinham mudado seus pertences, os antárticos tomavam o café da manhã; sentados em cadeiras de lona ao redor da mesa desdobrável.
–Hoje começaremos a atravessar a selva.
–Pode haver feras...– observou Inge – Por quê não explorá-la do ar?
–É tão fechada que não veríamos nada. Usaremos o Engesa que é bem seguro.
–A região é baixa e há água – Interveio Lúcio – o solo deve ser uma esponja.
–Precisamos encontrar água aproveitável – acrescentou Nico.
–Pela forma da Mancha, pode tratar-se de um rio bordejado de vegetação. E que vegetação! – disse Boris – Pelo que vimos do ar, a Mancha é maior no norte, um triângulo que indica rios que convergem no principal e essa água vem para o sul.
–A largura da parte próxima é de 40 kms – interveio Nico.
–Não a atravessarão num dia – disse Regina, entrando com um bule de café.
–Pois é – disse Aldo, servindo-se café – o Engesa é amplo o bastante como para morar nele. Mesmo assim, levaremos a burbuja com o escudo portátil para o caso de que tenhamos que abandonar o Engesa por mais de um dia.
–Seria conveniente levar o barco – sugeriu Marcos, saboreando seu café.
–Seria bom ir bem armados – disse Lúcio – pistolas e facas.
–Boa idéia – disse Aldo – Lúcio levará a bazuca e Boris o fuzil de longo alcance. Marcos e eu levaremos fuzis de assalto com infravermelho, lança-granadas e mira laser, cortesia do Esquadrão Shock.
–Usaremos os trajes leves – disse Lúcio – regulador térmico, compressor de oxigênio local e ar de reserva. O Engesa está equipado com beliches, latrina, oxigênio, água, painel solar, GPS, computador, rádio e parabólica dobrável.
–Sem esquecer de facões para abrir a mata – sugeriu Boris, experiente.
–Tenho uma idéia melhor – disse Lúcio – Há material para fazer um cortador de grama sofisticado. Tive a idéia agora mesmo.
Lúcio despejou seu lado da mesa e abriu o computador. Com dedos rápidos preparou um desenho do Engesa equipado com uma trilhadeira em forma de bico, um limpa-trilhos como das antigas locomotivas; para limpar a frente, com duas lâminas giratórias móveis em posição horizontal para cortar mato.
–Você é um gênio, Lúcio – disse Aldo.
–Sim, eu sei disso. Após o café, vou desmontar a embalagem do Engesa e verei o que mais posso aproveitar – disse Lúcio, fechando a tampa do computador.
Os antárticos trabalharam dois dias montando e soldando o equipamento. Além do limpa-trilhos, colocaram duas serras circulares, para cortar os troncos mais grossos, e dois lasers de 5mm em duas pequenas estruturas giratórias, na frente, para que funcionassem como tesoura, cortando vegetação mais rebelde.
–Não acham que esses raios vão queimar a floresta? – perguntou Marcos.
–Não há oxigênio para tanto – interveio Boris – fiz experiências; o fogo apaga logo. A madeira deve estar muito seca para queimar. O ar é seco, mas a floresta é úmida por dentro. Teve milhões de anos para aprender a segurar líquido neste clima hostil.
–Vamos destruir a mata, Aldo! – exclamou Nico.
–Vamos, sim.
–E a ecologia, como é que fica?
–Deixe essa preocupação para nossos bisnetos marcianos daqui a cem anos.
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Continua em: OS MARCIANOS
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O conto O PONTO DE APOIO- forma parte integrante da saga inédita Mundos Paralelos ® – Fase I - Volume I, Capítulo 3; páginas 39 a 42; e
pode ser encontrado, ILUSTRADO, no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados:
http://sarracena.blogspot.com.br/2010/08/mundos-paralelos-capitulo-2-29.html
O volume 1 da saga pode ser comprado em:
clubedeautores.com.br/book/127206--Mundos_Paralelos_volume_1