Camarões do espaço
CAMARÕES DO ESPAÇO
Miguel Carqueija
CAPÍTULO 1
“Venha conosco. Abandone a angustiante e vertiginosa rotina diária, o esmagador afã dos problemas
banais e diários, a vida sem horizontes da grande maioria que permanece na superfície da Terra. Venha participar das emoções inesquecíveis da caça ao camarão do espaço. Afaste-se das tradicionais linhas
tráfego do Sistema Solar, junte-se aos intrépidos aventureiros que demandam os rios cósmicos onde
prolifera a mais incrível criatura do Universo, o camarão espacial. Você verá coisas nunca vistas e fará
a maior – ou maiores, pois contamos com seu retorno – aventura da sua vida.”
Ah, a força da propaganda! Ela pode ser utilizada – e o é, largamente – para desarrumar vidas, desestabilizá-las, sob o eufemismo de “abandonar a rotina”. Uma análise serena mostraria facilmente as falhas daquela amostra que transcrevi, como chamar “caça” – nome mais facilmente associável a emoções – àquilo que por analogia melhor se diria pesca. No entanto ali estava eu, a bordo da velha nave espacial “Centúria”, veículo de aluguel, em companhia de Joe “Boca Larga”, a que, eu nem
conhecia poucos meses atrás. Não o tipo de gente que eu apreciasse como única companhia durante semanas, meses a fio. Mas não há muita escolha, nesse gênero de empreitada.
Era de manhã, bem cedo. Falo em termos relativos, sem ser embora um especialista em Einstein. Psicologicamente somos dependentes do sistema terrestre de contar o tempo, ainda seguimos o Calendário Gregoriano mesmo no espaço sideral, onde não existem dia e noite, manhã e tarde, alvorada ou crepúsculo. O tempo, na milenar marcação de 24 horas por dia, é um dos poucos fios que ainda nos ligam ao distante planeta natal.
O espaço é um dos maiores problemas dentro de uma espaçonave de pequeno porte. A cama encontra-se embutida numa espécie de nicho na parede metálica e você não pode se erguer de subito, pois baterá com a cabeça no teto. Mesmo sendo este forrado – precaução assaz necessária – o choque é desagradável. Nem trinta centímetros fazem a distância de sua testa. É preciso então esgueirar-se para fora da cama. À direita, em outra reentrância quadrada na parede, estão fixas mesa e cadeiras. O reservado é na reentrância oposta. Perto da mesa, um nicho pequeno na parede garante comunicação
com o resto da nave. Luzes suaves de cores diversas, reguláveis, no teto. E só. O que mais você queria que houvesse nesse quarto?
Pelo menos é um santuário onde posso desfrutar de minha privacidade, antes de enfrentar a tagarelice de Joe “Boca Larga”.
.............................................................
— Alô, chefe – disse Willie.
— Alô, Willie – disse eu.
Claro, Willie é um autômato. Programaram-no para chamar todo tripulante de “chefe”. Pode não ser um autêntico robô asimoviano, que passaria pelo crivo de Susan Calvin (1); não está programado com as Três Leis de Robótica, mas é plenamente seguro apesar disso. Há muita fantasia em torno de robôs, mas eles são apenas máquinas.
— Teve uma boa noite, chefe?
— Claro, pois dessa vez não sonhei com o Joe.
E aqui estou eu, Fidélis Guarnieri, a conversar tolamente com um autômato que foi programado para manter conversações banais que às vezes raiam a idiotia. Ele tem um estoque de frases pré-fabricadas em sua memória eletrônica.
— Então não foi tão desagradável, chefe.
Um senso de humor infame, ainda por cima. Nesse ponto Joe já intervinha:
—- Alô, Fidélis. Graças a Deus você levantou. Já estou farto de conversar com aparelhos. Isso é sobremaneira irritante. Esse raio desse autômato não poderia conversar à altura com uma criança de cinco anos.
Instalei-me numa poltrona, fixa como o resto da mobília (que portanto não era mobília, se atentarmos para a etimologia da palavra) e fixei meu olhar em meu associado:
— Só que eu gostaria que falássemos muito seriamente dessa vez. Estamo-nos aproximando do campo de pesca e precisamos nos prevenir contra qualquer eventualidade. Temos de pensar nos concorrentes, inclusive os desleais e perigosos; e nas próprias incógnitas que essas regiões representam. Não podemos continuar como se estivéssemos numa viagem turística.
Joe alargou a sua boca e respondeu com jovialidade:
-—Você está ficando enrugado, Fidélis. Nem eu nem você somos grandes entendidos em matemática avançada, e sem isso não podemos saber grande coisa do que deve ser feito, em matéria de navegação espacial. E nem é preciso, já que a nave é computadorizada e a moderna cibernética garante a nossa segurança de um modo que seria impensável uma geração atrás. Portanto...
— Portanto, Joe, eu não me agrado muito à idéia de me entregar de olhos vendados a um bando de robôs e computadores idiotas. Vamos discutir a nossa situação.
— Pois muito bem, já que você insiste. Vamos lá no controle para podermos esclarecer qualquer dúvida.
Para fazer isso só precisávamos dar alguns passos. Sentamos diante do painel luminoso e Joe, encurtando a boca, ficou em expectativa.
— Bem, Joe, em primeiro lugar vejamos essa história de “rios cósmicos”. Podemos fazer uma analogia com as correntes marinhas, de qualquer maneira o fato é que nos dirigimos para uma torrente, nas tangentes do Sistema Solar, por onde fluem os camarões. Eu penso muito nisso como uma espécie de voragem que pode tragar nossa embarcação, ou retê-la para sempre. Se não tivermos tração suficiente...
— Fidélis, nós sabemos que o camarão não possui meios de sair da área de turbulência gravitacional, que é o que são as correntes cósmicas; entretanto uma nave fotônica como a nossa é algo diferente. Se não fosse assim, muitos sinistros já teriam ocorrido. Você sabe muito bem que os caçadores de camarão conseguem retornar.
— Alguns não retornaram.
— Muita gente não retornou de um simples passeio de bicicleta. Até aí estamos dentro dos limites normais de periculosidade. Não é porque haja nada de especialmente fatídico nas correntes gravíticas.
— Mas eu não devo ter refletido com todo o meu bom senso habitual quando concordei em vir com você! Será que você não percebe que a aventura está dentro dos padrões médios de segurança, se o nosso veículo também estiver? E qual é a idade da “Centúria”?
— Quarenta e quatro anos. Acontece...
— Acontece que esse bicho passou por revisões e remendos, mas nem por isso se compara às naves atualmente desenhadas. Veja bem, Joe “Boca Larga”, esse navio foi construído antes das primeiras expedições aos rios cósmicos. O Billings só foi explorado de trinta e dois anos para cá, e faz só dezoito anos que a temporada de pesca foi regulamentada. Como você pode garantir a segurança de uma nave não especialmente projetada para navegar nas correntes do espaço?
— Você está supervalorizando o perigo. Existem precedentes importantes de naves não especificamente projetadas, e que navegam muito bem nessas regiões. Eu mesmo conheço um grande sujeito, Alfie, o Bagre, que...
— Não me importa. Isso não prova o suficiente a nossa segurança.
— Escute aqui, Fidélis. Você sabe porque razão os vermelhões não resistem à correnteza? Porque eles são sutis, não são feitos de matéria como nós conhecemos na Terra. São de plasma. Aliás, tudo indica que eles não têm condições de sobreviver fora de sua área. Não lhes interessa mesmo sair.
— Tudo bem, é bom contar com um sujeito otimista para contrabalançar um pouco as minhas desconfianças. Mas faço questão de uma conferência geral nesta nave antes que cheguemos ao Rio Billings. Temos de evitar qualquer parafuso fora do seu lugar.
Joe concordou facilmente. Não que lhe agradasse qualquer verdadeiro trabalho, mas afinal existia o Willie com seus robôs auxiliares.
Eu, porém, tinha outras objeções a fazer.
— Que você me diz da segurança interna? Quero dizer, principalmente o acondicionamento dos camarões...
— Se você não se aventurar em tocar neles com as mãos nuas...
— Vade retro. Mas eu sei muito bem que os nossos colegas utilizam tripulações de até quinze pessoas...
— ... o que é um exagero. Nossos tanques são perfeitamente adequados aos nossos “crustáceos” e os robôs suprem com vantagem a ausência de mais seres humanos. E mais: robôs não dividem os lucros.
— Então está tudo seguro por dentro e por fora?
Joe digitou algumas teclas.
— Veja você mesmo. Estou solicitando a porcentagem de segurança que nós gozamos atualmente.
Os cálculos surgiram na tela, vertiginosos, impossíveis de acompanhar. Finalmente, triunfante, apareceu o porcentual: 97,58%.
JOE – E aí está. Menos de 3% de risco para nós. Um helicarro no Rio de Janeiro não apresenta tamanha segurança.
Embora eu adivinhasse objeções contra semelhante recurso argumentativo, fingi que tal garantia me era satisfatória. Eu ainda tinha mais uma preocupação:
— Resta uma coisa, Joe. As defesas do nosso barco. Não me sai da cabeça essa nossa falta de previsão, na pressa com que viemos.
— Defesas? Você quer dizer, contra ataques?
— Geralmente, a gente se defende de ataques...
— Você andou lendo as reportagens sobre pirataria espacial, não é isso?
— Além da própria violência de certos competidores legalizados.
— Oh, isso! Deixa eu lhe mostrar uma película...
Joe acionou o arquivo de filmes. A tela azulou-se e ele clicou o ícone de um documentário que eu já havia assistido umas cinco vezes: “Billings, o rio cósmico”.
CAPÍTULO 2
Uma das descobertas mais excitantes da exploração do Sistema Solar foi a dos rios cósmicos, há quarenta e dois anos. Trata-se de uma série de correntes de vácuo, se é que se pode utilizar semelhante vocábulo. Como a distinção entre matéria e energia é mais de grau, que de real diferença, segue-se que o vácuo absoluto provavelmente não existe pois a energia penetra em toda parte. Basta pensar na difusão espacial da luz. Bem, o rio cósmico é um torvelinho de gravitação. Assim pelo menos os astrofísicos o
descreveram. Cummings declarou mesmo que se trata de “torrentes de nada, correndo para parte alguma”. Apolonia expôs, há quarenta anos, a tese de que os rios cósmicos são elemento moderador para o equilíbrio gravítico do sistema, e desenvolveu uma série de equações notáveis para sustentar a teoria. De qualquer modo, eles se encontram em oposição ao disco das órbitas planetárias: sete ao todo, identificados
e perfeitamente individualizados, bem que ligados entre si por tênues ramificações.
São o único local do Cosmos onde foram encontrados camarões espaciais.
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A Centúria realizou uma grande translação até atingir um ângulo de quase 90O em relação à eclíptica, afastando-se 380 milhões de quilômetros da Terra. Íamos agora nos aproximando do Rio Billings – nome dado em homenagem ao seu descobridor – e faziam-se necessárias manobras especiais para a penetração naquela zona de turbulência. A velocidade média do Billings é estimada em onze mil quilômetros por
hora, e isso quer dizer que a forma mais sensata de abordá-lo é lateralmente, e não frontalmente; como um alfinete espetado por baixo da pele, e não penetrando a carne. Porque, de qualquer modo, o foguete terá de acompanhar a velocidade da torrente, e a sua direção. O pior de tudo é que os camarões também não param, estão sempre correndo junto com o rio. O máximo que pode acontecer é um certo retardamento
nas regiões centrais, em face da tremenda concentração de certas colônias, que chegam a abrigar trilhões de indivíduos. Uma certa coesão que existe entre eles, e a própria velocidade menor registrada no centro da corrente, fazem que essas grandes colônias se desloquem a velocidades bem menores, nunca inferiores porém a sete mil quilômetros por hora.
Em suma, nós acertamos nossa velocidade com a do Billings; uma vez dentro dele podíamos nos deslocar quase como pessoas andando dentro de um trem super-veloz: com nossa própria rapidez. Na verdade existem certos fatores que complicam um pouco a situação. O sistema é menos estável que o dos planetas, e há necessidade de uma certa tração para atravessar de um lado a outro da corrente sem ir parar mais adiante. Para entender, compare: atravessar uma rua é uma coisa, atravessar um rio é outra.
A deslocação dentro do Billings far-se-ia, portanto, na direção da correnteza. Então podíamos seguir com velocidade zero, mas levados pelos 11.000 km/hora da corrente; ou podíamos seguir a cem, duzentos, mil ou mais. O mais interessante porém seria alcançar uma colônia de camarões e ancorar nela, o que nos permitiria uma pesca tranqüila.
CAPÍTULO 3
Na solidão do espaço, eu quase esquecera a existência de concorrentes. Uma nave em forma de tubarão tornou-se visível em nosso radascópio. Empáfia inútil do ponto de vista técnico, já que a forma aerodinâmica em nada auxilia no vácuo. Entretanto até os dentes estavam lá pintados, num sorriso sádico.
JOE – Uma possibilidade em um trilhão, amigos. Uma em um trilhão. E eu que perdi tantos jogos com chance tão maior...
CROMÁTICO (piscando muito os olhos cristalinos e luminosos) – Chefe, a possibilidade em encontrar uma outra nave espacial, numa temporada de pesca no Billings, não é uma em um trilhão. Tomando por base as estatísticas sobre a área espacial envolvida, o número habitual de competidores e a acuidade dos nossos instrumentos detectores, eu diria...
- ... eu diria, Cromático, que há 500 bilhões de possibilidades por trilhão de que eu lhe dê uma cacetada com uma chave de fenda. Não estou pensando em qualquer espaçonave, robô idiota. Falo dessa aí. É a nave de Stromboli, o Dentuço. A possibilidade de encontrar justamente esse sujeito nocivo pelo caminho é que é uma em um trilhão e realizou-se, ou sou um mico de circo.
Vocês se lembram que, há um tempo atrás, eu disse que os autômatos são apenas máquinas? Contudo, às vezes eu julgo falta de caridade a maneira como Joe se dirige a eles. Agora, porém, eu queria saber o que é que o meu experiente amigo pretendia com essa história. Perguntei-lhe quem era Stromboli, o Dentuço.
- É o mais desonesto caçador de camarões que eu conheço. Tenho velhas contas a ajustar com ele. É um sujeito perigosíssimo, que possui uma verdadeira quadrilha a seu serviço. Veja o tamanho de sua nave. Está equipada com raios laser e outras parafernálias.
Lembrei-me de uma longa discussão ocorrida dias atrás.
- Recorda-se, Joe, que você se deu ao trabalho de me exibir uma sofisticada película cinematográfica que revelava a vastidão inimaginável do Billings, e isso somente para me convencer de que a possibilidade de deparar com inimigos era apenas de uma em um trilhão – e aí está a possibilidade à nossa frente, apesar de tudo, e logo no início?
Ele desconversou habilmente.
- Não há tempo para discutirmos, Fidélis. Vamos primeiro desviar nossa rota o mais depressa possível antes que eles nos vejam, pois não estamos preparados para enfrentá-los. Willie, Cromático, tratem de fazer uma marcha-a-ré, mas num ângulo que nos custe o mínimo de tração; em seguida mergulharemos “por baixo” do mar de sargaços para emergir à direita, e poderemos então pescar em paz. (1)
Tive que reconhecer que Joe possuía para essas coisas um tino invulgar e presença de espírito. Apesar de que, eu custasse a crer em tamanha agressividade por parte dos competidores. Afinal de contas, havia camarões para todos.
Dirigi-me através do aperto até a tela de radar. O importante era evitar sarilho, e para tanto dependíamos do sucesso de nossa manobra de despistamento. Graças a Deus conseguimos efetuar o mergulho, passando através dos vermelhões na periferia do
aglomerado. Tirando fora os nossos falsos crustáceos, que agora nos acompanhavam à esquerda, o espaço ao nosso redor estava mais do que vazio. Era bem o espaço de Pascal.
CAPÍTULO 4
A Centúria flutuava na serenidade cósmica, acompanhando a ilha de seres plásmicos. Nossos controles estavam desligados: deixávamo-nos levar pela corrente de gravitação, sem maiores cuidados. Em nossos painéis, um espaço algo leitoso e tremeluzente, produto das ilusões de ótica que a distorção gravítica gerava. A uma distância tentadoramente próxima, os camarões do espaço.
Muita gente ainda não tem grande informação a respeito desses seres. Quando de sua descoberta causaram histórico furor, mormente nos meios acadêmicos. Revolucionaram o conceito de vida. Quando os primeiros camarões chegaram aos laboratórios terrestres e espaciais, em precárias condições de conservação, admitiu-se de um modo geral que os mesmos representavam uma incrível forma de vida, no
quarto estado da matéria (plasma). Chamá-los de camarões (há quem prefira lagostins ou lagostas) é uma feliz analogia, já que eles nada possuem em comum com a classe dos crustáceos. São, praticamente, entes energéticos, alimentados ao que parece pelo Sol. Ou pelos raios cósmicos. Criaturas do espaço e de vida social, possuem uma complicadíssima organização – muito mais complicada e hierárquica que a das
abelhas – baseada na sua estrutura mais ou menos desenvolvida.
Um camarão do espaço (Macrobachium espacialis Thurston) pode ter, quando adulto, entre quinze e quarenta e cinco centímetros de comprimento; seus apêndices naturais, que lançam fios que se entrelaçam nos vizinhos, dão-lhe uma largura média de vinte centímetros, não mais do que oito ou dez se considerado apenas o tronco. São, por via de regra, amarelo-dourados, com cintilações escarlates, lilases e brancas. Não
possuem estômago, aparelho respiratório ou sexual, geringonças inúteis em seu caso particular. Jamais saem dos rios de gravidade, a não ser quando tirados à força. Aglomeram-se aos trilhões, formando verdadeiros asteróides de plasma, entretecendo uma teia que consolida a sua estabilidade. Podem porém emigrar, dividir os seus bandos. Alguns indivíduos que se desprendem seguem com maior velocidade,
afastando-se do núcleo, e eventualmente formarão outro núcleo mais adiante. Ou talvez se juntem a um preexistente. Como quer que seja, sempre são vistos muitos indivíduos vagabundos, passando num frenesim, rodopiando às vezes. Esses são dificílimos de pegar. Parecem possuir, de alguma forma, o sentido da visão, reconhecida que está a existência de uma “parte da frente”(cabeça?) em sua estrutura. Por razões óbvias, não podem ser dissecados pelos biologistas. Representam um novo e acintoso reino da natureza, que não é vegetal, animal ou mineral: a vida em plasma, alguma coisa de enlouquecer um físico nuclear, para quem o plasma é – ou era, eles custaram
muito a se acostumar – matéria desfeita em sua estrutura atômica e que, pela lógica, não poderia formar seres vivos.
Mas, serão mesmo vivos? Houve cientistas que apanharam por declarar que sim; todavia, com o tempo as evidências se acumularam. Por exemplo, o vermelhão (nome inspirado na cor vermelha que, não obstante, não é a predominante neles, bem que em certas épocas eles alterem suas cores, como camaleões) reage à aproximação de objetos sólidos e procura fugir às pinças e sugadoras das naves de pesca. Além disso eles se reproduzem por crescimento e fissura central e se comunicam entre si de forma
misteriosa. São uma forma de vida rudimentar, porém fascinante. O que atrai os pescadores, porém, geralmente é o interesse econômico e não o científico.
Hoje em dia, aquários (sic) com vermelhões em exposição obtém bons lucros. Mais do que a curiosidade publica, entretanto, visto serem eles, com os anjos e as plantas de Marte, as únicas formas de vida extraterrestre conhecidas, existe o imenso valor pesquisológico que representam. Governos e instituições pagam muito bem por leva de exemplares. E existe ainda a utilidade prática. Não faltam milionários
excêntricos que se orgulham de ter os seus palácios inteiramente iluminados por camarões espaciais, uma fonte de energia que deve ser constantemente renovada, já que não resiste muito tempo ao cativeiro, apagando-se aos poucos e dissociando-se, desaparecendo enfim.
A propósito de tais fatos têm havido diversos protestos, e também processos, por parte das associações protetoras dos animais – que esbarraram com a dificuldade jurídica de não serem os vermelhões, cidadãos do reino animal. Eu, particularmente, não senti maior escrúpulo de consciência ao juntar-me a Joe “Boca Larga”, por não acreditar numa sensibilidade real em tais seres. Dor e angústia parecem inverossímeis em certas formas de vida cujas funções são apenas vegetativas, instintivas. Tenho muito amor para com animais, como cachorros ou gatos, mas um capim, por exemplo, não me inspira a mesma ternura. O que me leva a refletir: não estará errado o nosso conceito de vida? Não será realmente vivo somente o ser que pensa, e portanto sabe de sua própria existência?
Mas de repente estou filosofando. Voltemos à história que é o que interessa.
CAPÍTULO 5
Enquanto eu comia uma empada de legumes (algo próximo disso, é claro: a comida reconstituída de nave espacial) tomei conhecimento das manobras que Willie, com seus quatro robôs auxiliares e o cérebro de bordo executavam para começar a captura dos camarões.
Nos porões da Centúria ficava o tanque de camarões, onde eles ficariam isolados por uma camada de vácuo, ou poderiam derreter as paredes do recipiente. Afinal, sua temperatura média é de 3150 graus centígrados.
Esse tanque encontrava-se vazio.
Agora era hora de realizar aquilo que constituía a razão de nossa tão longa viagem. Eu não me apressava, pois estava com fome e fazia questão de me alimentar. Não valia a pena precipitar-me por nervosismo, além disso eu não era propriamente necessário. Joe, porém, queria que eu terminasse para iniciar a operação.
Súbito o cérebro da nave – a Centúria em pessoa – fez explodir o alarme pela estreiteza toda:
- Alerta máximo! Estamos sendo atacados!
Os computadores espaciais são muito “espertos” e, em tais circunstâncias, toma iniciativas defensivas antes mesmo de receberem ordens. Esgueirei-me para fora do meu cubículo, quase me engasgando com a massa da empada, e levei um tranco metálico bem considerável.
- Desculpe, chefe – Aladim, felizmente, era o autômato mais leve. – Foi a pressa.
No corredor estreitíssimo, fitei Joe. Ele estava lívido.
- Aquele crapuloso! Conseguiu nos seguir!
- Stromboli?
- Ele mesmo! E quer mesmo nos destruir!
- Mas não fizemos nada!
- É que para ele isso é simples diversão!
Nossos radares e nossas janelas mostravam claramente o monstruoso cruzados que lançava projéteis em nossa direção. Sem a manobra preventiva da nave, creio que já teríamos sucumbido. Os canhões do navio inimigo vomitavam fogo, mesmo. Não os raios mais sofisticados, eles talvez achassem muito requinte.
O ominoso tubarão aproximava-se implacavelmente.
Olhei para Joe em busca da salvação, mas só enxerguei o desespero.
Então Joe exclamou:
- Vamos mergulhar na massa! Seja o que Deus quiser!
Deu as ordens rapidamente. Não se tratava de uma penetração de periferia, como há pouco, mas de um mergulho fundo, ao coração da massa inimaginável das fantásticas criaturas. Foi tudo uma questão de segundos. A Centúria fugitiva mergulhou de frente naquele oceano de luz cósmica. Algo que talvez jamais alguém houvesse feito.
Sentado junto do painel eu observava o lado oposto, onde uma janela panorâmica, no teto, mostrava o que ocorria no exterior. Na realidade a janela ficava abaixo dos motores; era uma tela que projetava imagens colhidas de uma verdadeira janela, muito mais afastada, por precaução, do espaço habitado.
E era espantoso. Um turbilhão de massas incandescentes ia-se esborrachar sobre o vidro térmico, como se fosse uma cachoeira cósmica; aparentemente os camarões se arrebentavam, se dissociavam e retornavam a ser plasma normal, inanimado; e eu nunca havia pensado que eles pudessem morrer daquela maneira. Minha necedade não permitia uma compreensão maior do fenômeno, mas subitamente a massa vermelho-amarelada mudou parcialmente de cor, assumindo em segundos um aspecto predominantemente lilás, e um grande espaço leitoso pareceu se abrir em meio à massa viva; então os choques contra a janela cessaram; os camarões pareceram formar uma só estrutura, que se afastava da nossa embarcação, abrindo-lhe caminho. Preocupado, liguei um pequeno televisor afixado sobre um tripé, junto à parede à direita do painel, e focalizei a direção oposta ao nosso movimento. A nave tubarão vinha vindo como uma
fúria, ao nosso encalço, numa perseguição irracional. E só então acordei que Joe mentira o tempo todo para mim, ao esconder o verdadeiro ambiente da pesca do camarão. Hoje sei que se desenvolveu nessas regiões um verdadeiro faroeste cósmico, com os “tubarões” tipo Stromboli, sedentos dos lucros fabulosos, eliminando impiedosamente, sem polícia nem testemunhas, os pequenos rivais que, somados, fariam considerável concorrência.
Mas outra coisa me chamou a atenção. A tela retrovisora era pequena, não tenho certeza absoluta, foi tudo muito rápido, Joe não chegou a olhar, devo ter-me enganado, mas o que vi – ou que julguei ver – é que a massa agredida e dizimada dos camarões, agora reagrupada, adquiria a forma colossal de uma monstruosa lagosta, ou de um escorpião fantástico, e suas pinças – soma de milhões de camarões – moviam-se rapidamente em direção à nave-tubarão, de um lado e do outro...
E então nós saímos do turbilhão.
EPÍLOGO
Até hoje não entendo como escapamos com vida. Atribuo isso à mão poderosa de Deus, que nos poupou tendo em vista a nossa inocência.
Quando saímos daquele “mar de sargaços” espantosa explosão roxa iluminou aquela área, esfacelando o grupamento de vermelhões. Todos os nossos instrumentos de observação e registro, acionados, puderam apenas constatar a presença de fragmentos maiores da “Destemida” – como eu soube mais tarde ser o nome do navio de Stromboli, nave pirata, nave bordel, nave contrabandista – tudo de ruim que vocês
quiserem.
Em poucos meses aquele ninho de camarões reconstituiu-se e retornou ao seu aspecto normal. Quanto a nós, fomos objeto da curiosidade de repórteres e cientistas do mundo inteiro. Pela primeira vez se comprovou a capacidade de coordenação e reação das criaturas espaciais; pela primeira vez patenteou-se o perigo que elas representam. Nos meus depoimentos frisei bem que, se reação houve, foi justa tendo em vista a inusitada agressão que os seres haviam sofrido, e que punha em xeque a estabilidade do seu reino.
Como quer que seja dois efeitos imediatos ocorreram: desativação, por medo, da maior parte das instalações energéticas à base de camarões, bem como dos aquários, e proibição da pesca por tempo indeterminado, exceto por expedições rigorosamente científicas. Também se efetuou uma devassa dos pescadores registrados, para acabar de vez com a pirataria – e Deus queira que consigam.
Quanto a mim, aposentei-me como aventureiro (Joe “Boca Larga” não pensou da mesma maneira e hoje garimpa metais raros nas luas de Júpiter) e estou para casar e viver feliz para o resto da vida. Para mim, chega de perigos incompreensíveis. O que eu ganhei nas conferências e entrevistas que dei, o que vou ganhar com a publicação deste memorial, sem falar da venda dos direitos do mesmo ao cinema, poderá manter minha família pelo resto da vida. O que talvez seja uma paga justa a quem ganhou, na
aventura, os seus primeiros cabelos brancos.
CAMARÕES DO ESPAÇO
Miguel Carqueija
CAPÍTULO 1
“Venha conosco. Abandone a angustiante e vertiginosa rotina diária, o esmagador afã dos problemas
banais e diários, a vida sem horizontes da grande maioria que permanece na superfície da Terra. Venha participar das emoções inesquecíveis da caça ao camarão do espaço. Afaste-se das tradicionais linhas
tráfego do Sistema Solar, junte-se aos intrépidos aventureiros que demandam os rios cósmicos onde
prolifera a mais incrível criatura do Universo, o camarão espacial. Você verá coisas nunca vistas e fará
a maior – ou maiores, pois contamos com seu retorno – aventura da sua vida.”
Ah, a força da propaganda! Ela pode ser utilizada – e o é, largamente – para desarrumar vidas, desestabilizá-las, sob o eufemismo de “abandonar a rotina”. Uma análise serena mostraria facilmente as falhas daquela amostra que transcrevi, como chamar “caça” – nome mais facilmente associável a emoções – àquilo que por analogia melhor se diria pesca. No entanto ali estava eu, a bordo da velha nave espacial “Centúria”, veículo de aluguel, em companhia de Joe “Boca Larga”, a que, eu nem
conhecia poucos meses atrás. Não o tipo de gente que eu apreciasse como única companhia durante semanas, meses a fio. Mas não há muita escolha, nesse gênero de empreitada.
Era de manhã, bem cedo. Falo em termos relativos, sem ser embora um especialista em Einstein. Psicologicamente somos dependentes do sistema terrestre de contar o tempo, ainda seguimos o Calendário Gregoriano mesmo no espaço sideral, onde não existem dia e noite, manhã e tarde, alvorada ou crepúsculo. O tempo, na milenar marcação de 24 horas por dia, é um dos poucos fios que ainda nos ligam ao distante planeta natal.
O espaço é um dos maiores problemas dentro de uma espaçonave de pequeno porte. A cama encontra-se embutida numa espécie de nicho na parede metálica e você não pode se erguer de subito, pois baterá com a cabeça no teto. Mesmo sendo este forrado – precaução assaz necessária – o choque é desagradável. Nem trinta centímetros fazem a distância de sua testa. É preciso então esgueirar-se para fora da cama. À direita, em outra reentrância quadrada na parede, estão fixas mesa e cadeiras. O reservado é na reentrância oposta. Perto da mesa, um nicho pequeno na parede garante comunicação
com o resto da nave. Luzes suaves de cores diversas, reguláveis, no teto. E só. O que mais você queria que houvesse nesse quarto?
Pelo menos é um santuário onde posso desfrutar de minha privacidade, antes de enfrentar a tagarelice de Joe “Boca Larga”.
.............................................................
— Alô, chefe – disse Willie.
— Alô, Willie – disse eu.
Claro, Willie é um autômato. Programaram-no para chamar todo tripulante de “chefe”. Pode não ser um autêntico robô asimoviano, que passaria pelo crivo de Susan Calvin (1); não está programado com as Três Leis de Robótica, mas é plenamente seguro apesar disso. Há muita fantasia em torno de robôs, mas eles são apenas máquinas.
— Teve uma boa noite, chefe?
— Claro, pois dessa vez não sonhei com o Joe.
E aqui estou eu, Fidélis Guarnieri, a conversar tolamente com um autômato que foi programado para manter conversações banais que às vezes raiam a idiotia. Ele tem um estoque de frases pré-fabricadas em sua memória eletrônica.
— Então não foi tão desagradável, chefe.
Um senso de humor infame, ainda por cima. Nesse ponto Joe já intervinha:
—- Alô, Fidélis. Graças a Deus você levantou. Já estou farto de conversar com aparelhos. Isso é sobremaneira irritante. Esse raio desse autômato não poderia conversar à altura com uma criança de cinco anos.
Instalei-me numa poltrona, fixa como o resto da mobília (que portanto não era mobília, se atentarmos para a etimologia da palavra) e fixei meu olhar em meu associado:
— Só que eu gostaria que falássemos muito seriamente dessa vez. Estamo-nos aproximando do campo de pesca e precisamos nos prevenir contra qualquer eventualidade. Temos de pensar nos concorrentes, inclusive os desleais e perigosos; e nas próprias incógnitas que essas regiões representam. Não podemos continuar como se estivéssemos numa viagem turística.
Joe alargou a sua boca e respondeu com jovialidade:
-—Você está ficando enrugado, Fidélis. Nem eu nem você somos grandes entendidos em matemática avançada, e sem isso não podemos saber grande coisa do que deve ser feito, em matéria de navegação espacial. E nem é preciso, já que a nave é computadorizada e a moderna cibernética garante a nossa segurança de um modo que seria impensável uma geração atrás. Portanto...
— Portanto, Joe, eu não me agrado muito à idéia de me entregar de olhos vendados a um bando de robôs e computadores idiotas. Vamos discutir a nossa situação.
— Pois muito bem, já que você insiste. Vamos lá no controle para podermos esclarecer qualquer dúvida.
Para fazer isso só precisávamos dar alguns passos. Sentamos diante do painel luminoso e Joe, encurtando a boca, ficou em expectativa.
— Bem, Joe, em primeiro lugar vejamos essa história de “rios cósmicos”. Podemos fazer uma analogia com as correntes marinhas, de qualquer maneira o fato é que nos dirigimos para uma torrente, nas tangentes do Sistema Solar, por onde fluem os camarões. Eu penso muito nisso como uma espécie de voragem que pode tragar nossa embarcação, ou retê-la para sempre. Se não tivermos tração suficiente...
— Fidélis, nós sabemos que o camarão não possui meios de sair da área de turbulência gravitacional, que é o que são as correntes cósmicas; entretanto uma nave fotônica como a nossa é algo diferente. Se não fosse assim, muitos sinistros já teriam ocorrido. Você sabe muito bem que os caçadores de camarão conseguem retornar.
— Alguns não retornaram.
— Muita gente não retornou de um simples passeio de bicicleta. Até aí estamos dentro dos limites normais de periculosidade. Não é porque haja nada de especialmente fatídico nas correntes gravíticas.
— Mas eu não devo ter refletido com todo o meu bom senso habitual quando concordei em vir com você! Será que você não percebe que a aventura está dentro dos padrões médios de segurança, se o nosso veículo também estiver? E qual é a idade da “Centúria”?
— Quarenta e quatro anos. Acontece...
— Acontece que esse bicho passou por revisões e remendos, mas nem por isso se compara às naves atualmente desenhadas. Veja bem, Joe “Boca Larga”, esse navio foi construído antes das primeiras expedições aos rios cósmicos. O Billings só foi explorado de trinta e dois anos para cá, e faz só dezoito anos que a temporada de pesca foi regulamentada. Como você pode garantir a segurança de uma nave não especialmente projetada para navegar nas correntes do espaço?
— Você está supervalorizando o perigo. Existem precedentes importantes de naves não especificamente projetadas, e que navegam muito bem nessas regiões. Eu mesmo conheço um grande sujeito, Alfie, o Bagre, que...
— Não me importa. Isso não prova o suficiente a nossa segurança.
— Escute aqui, Fidélis. Você sabe porque razão os vermelhões não resistem à correnteza? Porque eles são sutis, não são feitos de matéria como nós conhecemos na Terra. São de plasma. Aliás, tudo indica que eles não têm condições de sobreviver fora de sua área. Não lhes interessa mesmo sair.
— Tudo bem, é bom contar com um sujeito otimista para contrabalançar um pouco as minhas desconfianças. Mas faço questão de uma conferência geral nesta nave antes que cheguemos ao Rio Billings. Temos de evitar qualquer parafuso fora do seu lugar.
Joe concordou facilmente. Não que lhe agradasse qualquer verdadeiro trabalho, mas afinal existia o Willie com seus robôs auxiliares.
Eu, porém, tinha outras objeções a fazer.
— Que você me diz da segurança interna? Quero dizer, principalmente o acondicionamento dos camarões...
— Se você não se aventurar em tocar neles com as mãos nuas...
— Vade retro. Mas eu sei muito bem que os nossos colegas utilizam tripulações de até quinze pessoas...
— ... o que é um exagero. Nossos tanques são perfeitamente adequados aos nossos “crustáceos” e os robôs suprem com vantagem a ausência de mais seres humanos. E mais: robôs não dividem os lucros.
— Então está tudo seguro por dentro e por fora?
Joe digitou algumas teclas.
— Veja você mesmo. Estou solicitando a porcentagem de segurança que nós gozamos atualmente.
Os cálculos surgiram na tela, vertiginosos, impossíveis de acompanhar. Finalmente, triunfante, apareceu o porcentual: 97,58%.
JOE – E aí está. Menos de 3% de risco para nós. Um helicarro no Rio de Janeiro não apresenta tamanha segurança.
Embora eu adivinhasse objeções contra semelhante recurso argumentativo, fingi que tal garantia me era satisfatória. Eu ainda tinha mais uma preocupação:
— Resta uma coisa, Joe. As defesas do nosso barco. Não me sai da cabeça essa nossa falta de previsão, na pressa com que viemos.
— Defesas? Você quer dizer, contra ataques?
— Geralmente, a gente se defende de ataques...
— Você andou lendo as reportagens sobre pirataria espacial, não é isso?
— Além da própria violência de certos competidores legalizados.
— Oh, isso! Deixa eu lhe mostrar uma película...
Joe acionou o arquivo de filmes. A tela azulou-se e ele clicou o ícone de um documentário que eu já havia assistido umas cinco vezes: “Billings, o rio cósmico”.
CAPÍTULO 2
Uma das descobertas mais excitantes da exploração do Sistema Solar foi a dos rios cósmicos, há quarenta e dois anos. Trata-se de uma série de correntes de vácuo, se é que se pode utilizar semelhante vocábulo. Como a distinção entre matéria e energia é mais de grau, que de real diferença, segue-se que o vácuo absoluto provavelmente não existe pois a energia penetra em toda parte. Basta pensar na difusão espacial da luz. Bem, o rio cósmico é um torvelinho de gravitação. Assim pelo menos os astrofísicos o
descreveram. Cummings declarou mesmo que se trata de “torrentes de nada, correndo para parte alguma”. Apolonia expôs, há quarenta anos, a tese de que os rios cósmicos são elemento moderador para o equilíbrio gravítico do sistema, e desenvolveu uma série de equações notáveis para sustentar a teoria. De qualquer modo, eles se encontram em oposição ao disco das órbitas planetárias: sete ao todo, identificados
e perfeitamente individualizados, bem que ligados entre si por tênues ramificações.
São o único local do Cosmos onde foram encontrados camarões espaciais.
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A Centúria realizou uma grande translação até atingir um ângulo de quase 90O em relação à eclíptica, afastando-se 380 milhões de quilômetros da Terra. Íamos agora nos aproximando do Rio Billings – nome dado em homenagem ao seu descobridor – e faziam-se necessárias manobras especiais para a penetração naquela zona de turbulência. A velocidade média do Billings é estimada em onze mil quilômetros por
hora, e isso quer dizer que a forma mais sensata de abordá-lo é lateralmente, e não frontalmente; como um alfinete espetado por baixo da pele, e não penetrando a carne. Porque, de qualquer modo, o foguete terá de acompanhar a velocidade da torrente, e a sua direção. O pior de tudo é que os camarões também não param, estão sempre correndo junto com o rio. O máximo que pode acontecer é um certo retardamento
nas regiões centrais, em face da tremenda concentração de certas colônias, que chegam a abrigar trilhões de indivíduos. Uma certa coesão que existe entre eles, e a própria velocidade menor registrada no centro da corrente, fazem que essas grandes colônias se desloquem a velocidades bem menores, nunca inferiores porém a sete mil quilômetros por hora.
Em suma, nós acertamos nossa velocidade com a do Billings; uma vez dentro dele podíamos nos deslocar quase como pessoas andando dentro de um trem super-veloz: com nossa própria rapidez. Na verdade existem certos fatores que complicam um pouco a situação. O sistema é menos estável que o dos planetas, e há necessidade de uma certa tração para atravessar de um lado a outro da corrente sem ir parar mais adiante. Para entender, compare: atravessar uma rua é uma coisa, atravessar um rio é outra.
A deslocação dentro do Billings far-se-ia, portanto, na direção da correnteza. Então podíamos seguir com velocidade zero, mas levados pelos 11.000 km/hora da corrente; ou podíamos seguir a cem, duzentos, mil ou mais. O mais interessante porém seria alcançar uma colônia de camarões e ancorar nela, o que nos permitiria uma pesca tranqüila.
CAPÍTULO 3
Na solidão do espaço, eu quase esquecera a existência de concorrentes. Uma nave em forma de tubarão tornou-se visível em nosso radascópio. Empáfia inútil do ponto de vista técnico, já que a forma aerodinâmica em nada auxilia no vácuo. Entretanto até os dentes estavam lá pintados, num sorriso sádico.
JOE – Uma possibilidade em um trilhão, amigos. Uma em um trilhão. E eu que perdi tantos jogos com chance tão maior...
CROMÁTICO (piscando muito os olhos cristalinos e luminosos) – Chefe, a possibilidade em encontrar uma outra nave espacial, numa temporada de pesca no Billings, não é uma em um trilhão. Tomando por base as estatísticas sobre a área espacial envolvida, o número habitual de competidores e a acuidade dos nossos instrumentos detectores, eu diria...
- ... eu diria, Cromático, que há 500 bilhões de possibilidades por trilhão de que eu lhe dê uma cacetada com uma chave de fenda. Não estou pensando em qualquer espaçonave, robô idiota. Falo dessa aí. É a nave de Stromboli, o Dentuço. A possibilidade de encontrar justamente esse sujeito nocivo pelo caminho é que é uma em um trilhão e realizou-se, ou sou um mico de circo.
Vocês se lembram que, há um tempo atrás, eu disse que os autômatos são apenas máquinas? Contudo, às vezes eu julgo falta de caridade a maneira como Joe se dirige a eles. Agora, porém, eu queria saber o que é que o meu experiente amigo pretendia com essa história. Perguntei-lhe quem era Stromboli, o Dentuço.
- É o mais desonesto caçador de camarões que eu conheço. Tenho velhas contas a ajustar com ele. É um sujeito perigosíssimo, que possui uma verdadeira quadrilha a seu serviço. Veja o tamanho de sua nave. Está equipada com raios laser e outras parafernálias.
Lembrei-me de uma longa discussão ocorrida dias atrás.
- Recorda-se, Joe, que você se deu ao trabalho de me exibir uma sofisticada película cinematográfica que revelava a vastidão inimaginável do Billings, e isso somente para me convencer de que a possibilidade de deparar com inimigos era apenas de uma em um trilhão – e aí está a possibilidade à nossa frente, apesar de tudo, e logo no início?
Ele desconversou habilmente.
- Não há tempo para discutirmos, Fidélis. Vamos primeiro desviar nossa rota o mais depressa possível antes que eles nos vejam, pois não estamos preparados para enfrentá-los. Willie, Cromático, tratem de fazer uma marcha-a-ré, mas num ângulo que nos custe o mínimo de tração; em seguida mergulharemos “por baixo” do mar de sargaços para emergir à direita, e poderemos então pescar em paz. (1)
Tive que reconhecer que Joe possuía para essas coisas um tino invulgar e presença de espírito. Apesar de que, eu custasse a crer em tamanha agressividade por parte dos competidores. Afinal de contas, havia camarões para todos.
Dirigi-me através do aperto até a tela de radar. O importante era evitar sarilho, e para tanto dependíamos do sucesso de nossa manobra de despistamento. Graças a Deus conseguimos efetuar o mergulho, passando através dos vermelhões na periferia do
aglomerado. Tirando fora os nossos falsos crustáceos, que agora nos acompanhavam à esquerda, o espaço ao nosso redor estava mais do que vazio. Era bem o espaço de Pascal.
CAPÍTULO 4
A Centúria flutuava na serenidade cósmica, acompanhando a ilha de seres plásmicos. Nossos controles estavam desligados: deixávamo-nos levar pela corrente de gravitação, sem maiores cuidados. Em nossos painéis, um espaço algo leitoso e tremeluzente, produto das ilusões de ótica que a distorção gravítica gerava. A uma distância tentadoramente próxima, os camarões do espaço.
Muita gente ainda não tem grande informação a respeito desses seres. Quando de sua descoberta causaram histórico furor, mormente nos meios acadêmicos. Revolucionaram o conceito de vida. Quando os primeiros camarões chegaram aos laboratórios terrestres e espaciais, em precárias condições de conservação, admitiu-se de um modo geral que os mesmos representavam uma incrível forma de vida, no
quarto estado da matéria (plasma). Chamá-los de camarões (há quem prefira lagostins ou lagostas) é uma feliz analogia, já que eles nada possuem em comum com a classe dos crustáceos. São, praticamente, entes energéticos, alimentados ao que parece pelo Sol. Ou pelos raios cósmicos. Criaturas do espaço e de vida social, possuem uma complicadíssima organização – muito mais complicada e hierárquica que a das
abelhas – baseada na sua estrutura mais ou menos desenvolvida.
Um camarão do espaço (Macrobachium espacialis Thurston) pode ter, quando adulto, entre quinze e quarenta e cinco centímetros de comprimento; seus apêndices naturais, que lançam fios que se entrelaçam nos vizinhos, dão-lhe uma largura média de vinte centímetros, não mais do que oito ou dez se considerado apenas o tronco. São, por via de regra, amarelo-dourados, com cintilações escarlates, lilases e brancas. Não
possuem estômago, aparelho respiratório ou sexual, geringonças inúteis em seu caso particular. Jamais saem dos rios de gravidade, a não ser quando tirados à força. Aglomeram-se aos trilhões, formando verdadeiros asteróides de plasma, entretecendo uma teia que consolida a sua estabilidade. Podem porém emigrar, dividir os seus bandos. Alguns indivíduos que se desprendem seguem com maior velocidade,
afastando-se do núcleo, e eventualmente formarão outro núcleo mais adiante. Ou talvez se juntem a um preexistente. Como quer que seja, sempre são vistos muitos indivíduos vagabundos, passando num frenesim, rodopiando às vezes. Esses são dificílimos de pegar. Parecem possuir, de alguma forma, o sentido da visão, reconhecida que está a existência de uma “parte da frente”(cabeça?) em sua estrutura. Por razões óbvias, não podem ser dissecados pelos biologistas. Representam um novo e acintoso reino da natureza, que não é vegetal, animal ou mineral: a vida em plasma, alguma coisa de enlouquecer um físico nuclear, para quem o plasma é – ou era, eles custaram
muito a se acostumar – matéria desfeita em sua estrutura atômica e que, pela lógica, não poderia formar seres vivos.
Mas, serão mesmo vivos? Houve cientistas que apanharam por declarar que sim; todavia, com o tempo as evidências se acumularam. Por exemplo, o vermelhão (nome inspirado na cor vermelha que, não obstante, não é a predominante neles, bem que em certas épocas eles alterem suas cores, como camaleões) reage à aproximação de objetos sólidos e procura fugir às pinças e sugadoras das naves de pesca. Além disso eles se reproduzem por crescimento e fissura central e se comunicam entre si de forma
misteriosa. São uma forma de vida rudimentar, porém fascinante. O que atrai os pescadores, porém, geralmente é o interesse econômico e não o científico.
Hoje em dia, aquários (sic) com vermelhões em exposição obtém bons lucros. Mais do que a curiosidade publica, entretanto, visto serem eles, com os anjos e as plantas de Marte, as únicas formas de vida extraterrestre conhecidas, existe o imenso valor pesquisológico que representam. Governos e instituições pagam muito bem por leva de exemplares. E existe ainda a utilidade prática. Não faltam milionários
excêntricos que se orgulham de ter os seus palácios inteiramente iluminados por camarões espaciais, uma fonte de energia que deve ser constantemente renovada, já que não resiste muito tempo ao cativeiro, apagando-se aos poucos e dissociando-se, desaparecendo enfim.
A propósito de tais fatos têm havido diversos protestos, e também processos, por parte das associações protetoras dos animais – que esbarraram com a dificuldade jurídica de não serem os vermelhões, cidadãos do reino animal. Eu, particularmente, não senti maior escrúpulo de consciência ao juntar-me a Joe “Boca Larga”, por não acreditar numa sensibilidade real em tais seres. Dor e angústia parecem inverossímeis em certas formas de vida cujas funções são apenas vegetativas, instintivas. Tenho muito amor para com animais, como cachorros ou gatos, mas um capim, por exemplo, não me inspira a mesma ternura. O que me leva a refletir: não estará errado o nosso conceito de vida? Não será realmente vivo somente o ser que pensa, e portanto sabe de sua própria existência?
Mas de repente estou filosofando. Voltemos à história que é o que interessa.
CAPÍTULO 5
Enquanto eu comia uma empada de legumes (algo próximo disso, é claro: a comida reconstituída de nave espacial) tomei conhecimento das manobras que Willie, com seus quatro robôs auxiliares e o cérebro de bordo executavam para começar a captura dos camarões.
Nos porões da Centúria ficava o tanque de camarões, onde eles ficariam isolados por uma camada de vácuo, ou poderiam derreter as paredes do recipiente. Afinal, sua temperatura média é de 3150 graus centígrados.
Esse tanque encontrava-se vazio.
Agora era hora de realizar aquilo que constituía a razão de nossa tão longa viagem. Eu não me apressava, pois estava com fome e fazia questão de me alimentar. Não valia a pena precipitar-me por nervosismo, além disso eu não era propriamente necessário. Joe, porém, queria que eu terminasse para iniciar a operação.
Súbito o cérebro da nave – a Centúria em pessoa – fez explodir o alarme pela estreiteza toda:
- Alerta máximo! Estamos sendo atacados!
Os computadores espaciais são muito “espertos” e, em tais circunstâncias, toma iniciativas defensivas antes mesmo de receberem ordens. Esgueirei-me para fora do meu cubículo, quase me engasgando com a massa da empada, e levei um tranco metálico bem considerável.
- Desculpe, chefe – Aladim, felizmente, era o autômato mais leve. – Foi a pressa.
No corredor estreitíssimo, fitei Joe. Ele estava lívido.
- Aquele crapuloso! Conseguiu nos seguir!
- Stromboli?
- Ele mesmo! E quer mesmo nos destruir!
- Mas não fizemos nada!
- É que para ele isso é simples diversão!
Nossos radares e nossas janelas mostravam claramente o monstruoso cruzados que lançava projéteis em nossa direção. Sem a manobra preventiva da nave, creio que já teríamos sucumbido. Os canhões do navio inimigo vomitavam fogo, mesmo. Não os raios mais sofisticados, eles talvez achassem muito requinte.
O ominoso tubarão aproximava-se implacavelmente.
Olhei para Joe em busca da salvação, mas só enxerguei o desespero.
Então Joe exclamou:
- Vamos mergulhar na massa! Seja o que Deus quiser!
Deu as ordens rapidamente. Não se tratava de uma penetração de periferia, como há pouco, mas de um mergulho fundo, ao coração da massa inimaginável das fantásticas criaturas. Foi tudo uma questão de segundos. A Centúria fugitiva mergulhou de frente naquele oceano de luz cósmica. Algo que talvez jamais alguém houvesse feito.
Sentado junto do painel eu observava o lado oposto, onde uma janela panorâmica, no teto, mostrava o que ocorria no exterior. Na realidade a janela ficava abaixo dos motores; era uma tela que projetava imagens colhidas de uma verdadeira janela, muito mais afastada, por precaução, do espaço habitado.
E era espantoso. Um turbilhão de massas incandescentes ia-se esborrachar sobre o vidro térmico, como se fosse uma cachoeira cósmica; aparentemente os camarões se arrebentavam, se dissociavam e retornavam a ser plasma normal, inanimado; e eu nunca havia pensado que eles pudessem morrer daquela maneira. Minha necedade não permitia uma compreensão maior do fenômeno, mas subitamente a massa vermelho-amarelada mudou parcialmente de cor, assumindo em segundos um aspecto predominantemente lilás, e um grande espaço leitoso pareceu se abrir em meio à massa viva; então os choques contra a janela cessaram; os camarões pareceram formar uma só estrutura, que se afastava da nossa embarcação, abrindo-lhe caminho. Preocupado, liguei um pequeno televisor afixado sobre um tripé, junto à parede à direita do painel, e focalizei a direção oposta ao nosso movimento. A nave tubarão vinha vindo como uma
fúria, ao nosso encalço, numa perseguição irracional. E só então acordei que Joe mentira o tempo todo para mim, ao esconder o verdadeiro ambiente da pesca do camarão. Hoje sei que se desenvolveu nessas regiões um verdadeiro faroeste cósmico, com os “tubarões” tipo Stromboli, sedentos dos lucros fabulosos, eliminando impiedosamente, sem polícia nem testemunhas, os pequenos rivais que, somados, fariam considerável concorrência.
Mas outra coisa me chamou a atenção. A tela retrovisora era pequena, não tenho certeza absoluta, foi tudo muito rápido, Joe não chegou a olhar, devo ter-me enganado, mas o que vi – ou que julguei ver – é que a massa agredida e dizimada dos camarões, agora reagrupada, adquiria a forma colossal de uma monstruosa lagosta, ou de um escorpião fantástico, e suas pinças – soma de milhões de camarões – moviam-se rapidamente em direção à nave-tubarão, de um lado e do outro...
E então nós saímos do turbilhão.
EPÍLOGO
Até hoje não entendo como escapamos com vida. Atribuo isso à mão poderosa de Deus, que nos poupou tendo em vista a nossa inocência.
Quando saímos daquele “mar de sargaços” espantosa explosão roxa iluminou aquela área, esfacelando o grupamento de vermelhões. Todos os nossos instrumentos de observação e registro, acionados, puderam apenas constatar a presença de fragmentos maiores da “Destemida” – como eu soube mais tarde ser o nome do navio de Stromboli, nave pirata, nave bordel, nave contrabandista – tudo de ruim que vocês
quiserem.
Em poucos meses aquele ninho de camarões reconstituiu-se e retornou ao seu aspecto normal. Quanto a nós, fomos objeto da curiosidade de repórteres e cientistas do mundo inteiro. Pela primeira vez se comprovou a capacidade de coordenação e reação das criaturas espaciais; pela primeira vez patenteou-se o perigo que elas representam. Nos meus depoimentos frisei bem que, se reação houve, foi justa tendo em vista a inusitada agressão que os seres haviam sofrido, e que punha em xeque a estabilidade do seu reino.
Como quer que seja dois efeitos imediatos ocorreram: desativação, por medo, da maior parte das instalações energéticas à base de camarões, bem como dos aquários, e proibição da pesca por tempo indeterminado, exceto por expedições rigorosamente científicas. Também se efetuou uma devassa dos pescadores registrados, para acabar de vez com a pirataria – e Deus queira que consigam.
Quanto a mim, aposentei-me como aventureiro (Joe “Boca Larga” não pensou da mesma maneira e hoje garimpa metais raros nas luas de Júpiter) e estou para casar e viver feliz para o resto da vida. Para mim, chega de perigos incompreensíveis. O que eu ganhei nas conferências e entrevistas que dei, o que vou ganhar com a publicação deste memorial, sem falar da venda dos direitos do mesmo ao cinema, poderá manter minha família pelo resto da vida. O que talvez seja uma paga justa a quem ganhou, na
aventura, os seus primeiros cabelos brancos.