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Ressurectio
 
Sam achou estranho e ao mesmo tempo interessante aquela cerimônia. Há muito tempo ninguém fazia enterros. Pouca gente morria e só nascia alguém quando era necessário. Total equilíbrio da população, planejado e executado pela Inteligência Artificial. Quando alguém, por tédio ou qualquer outro motivo, decidia morrer, todos seus dados, informação genética e mais aquilo que antigamente se chamava alma ou espírito, eram coletados e arquivados num enorme banco de dados regido e mantido pelo sistema. Depois dos 170 anos poucas pessoas ainda queriam viver, embora tecnicamente seus corpos pudessem ser mantidos por muito tempo ainda, através de rejuvenescimento genético e outras maravilhas da Ciência.
Sam viu aquele estranho caixão de madeira ser lentamente baixado num buraco retangular e desparecer lá dentro. Os poucos presentes, todos vestidos de preto, pegaram um punhado de um pó preto, sintético, e o aspergiram sobre o caixão que agora mal podia se ver. Os técnicos da DataEver tinham estudado, através de arquivos, a rudimentar cerimônia de cem anos atrás, a pedido de um dos habitantes da região de York – antiga New York – que queria ressuscitar a cerimônia perdida na história. Extravagância de alguém da elite? Enfim, virou moda. Muita gente agora pedia sua realização quando decidia “encerrar” suas atividades. A grande diferença era que nos verdadeiros enterros de antigamente, os corpos ficavam lá embaixo à mercê da natureza que fatalmente acabava destruindo-os. Nessa cerimônia do século 22, assim que o ataúde descia, era retirado por máquinas no subsolo que “sintetizavam” o corpo, como era o procedimento normal de então.
O pai de Sam, Francis, havia decidido por aquilo e Sam lá estava realizando o desejo do pai. Até que tinha sido interessante, era uma espécie de aula de história. Ele mesmo não poderia pedir para seu descendente fazer isso, pois seu pedido de gerar um ser geneticamente similar, ou seja, “um filho”, havia sido negado.
Outro pedido do pai de Sam era participar do programa de reativação artificial da vida, chamado de Ressurectio. Na verdade, era um programa que estava se tornando bem comum. De posse de todos os dados do falecido, a DataEver criava uma realidade virtual onde o cliente começava a “viver” novamente a mesma vida que tivera no mundo real. A espécie de nova “consciência”, no entanto começava na juventude, já com a bagagem da infância e daí a “vida” continuava praticamente do mesmo jeito que tinha sido antes, até a “morte”. Segundo os autores do projeto, algumas vezes, desejos intensos que os candidatos tiveram em vida e que não foram realizados, tinham sua chance nessa nova existência. Eles advertiam, no entanto, que o resultado final da vida “artificial” seria o mesmo.
Sam colocou seu polegar no pequeno sensor para autorizar o início do programa. Seu pai tinha pago tudo antecipadamente e Sam estava lá apenas para formalizar. Na projeção holográfica apareciam inúmeros caracteres e símbolos que o técnico ia explicando. Segundo ele, Francis estava com dezesseis anos e ia participar do primeiro treinamento para astronauta, carreira que tinha escolhido. Na mesma turma estava Erin - futura mãe de Sam - que mais tarde iria ser sua companheira. Seu complexo genético era perfeitamente compatível com o dele, condição importante para que as autoridades permitissem o “casamento”.
Se Sam pudesse sentir o que seu pai estava sentindo, vivendo, veria que uma alegria enorme enchia seu peito. Estava feliz por estar ali, ao lado de Erin e a vida era maravilhosa.
No entanto, Francis, tinha uma estranha sensação dentro de si. Às vezes pensava que a vida ia saltar de seu peito e, logo em seguida, tinha aquela percepção de que tudo aquilo era um sonho, de que nada era real. Leonard, o técnico tinha conhecimento disso, mas não falou nada para o Sam. Disse apenas que seu pai estava imensamente feliz e ele deu um sorriso, imaginando sua felicidade.
Era um erro no sistema que estavam tentando corrigir, embora soubessem que era difícil. O importante é que Sam se sentiu confortado e realizado por ter levado adiante a vontade do pai. Saiu do enorme prédio em seu transporte pessoal. Lá dentro, Leonard estava fazendo os últimos reajustes no programa do mais recente cliente. Quando ele chegasse no final da vida virtual, faria tudo de novo, iria pedir a cerimônia especial de casamento, a inserção de seus dados no programa Ressurectio e começaria a viver novamente. Virtualmente, é claro. Seria eterno. Talvez aquela vez já não fosse a primeira, talvez fosse a sétima ou a décima vez que ele estava vivendo de novo a mesma vida. 

Como ele poderia saber?


 
 
Histórias do Futuro
 
 
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Flávio Cruz
Enviado por Flávio Cruz em 18/11/2016
Reeditado em 20/11/2016
Código do texto: T5827392
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