A FÊNIX

Io, 26 de março de 2014.

Após o período diurno, chegara a noite no Acampamento Muslimov.

Todos já estavam de banho tomado e roupa branca limpa, no aconchegante iglu de serviço.

Por economia, os reguladores térmicos foram desligados. Apenas o aquecedor da cozinha funcionava para evitar que se congelassem.

Logo vestiram os macacões interiores e seus gostosos trajes espaciais, como uma segunda pele, sem luvas nem capacete, para esperar o jantar.

Lá fora; a intempérie inclemente da lua joviana de 170 graus negativos; aqui dentro, o calor e aconchego deste arremedo de lar.

Por fim, o Mudo Gatti abriu a boca para dizer:

–O jantar está servido...!

Foi aí que bateram à porta.

Zuniram os extratores, soaram as válvulas, assobiou o oxigênio, a porta interna abriu-se e entrou o Eremita espanhol de Io.

–Buenas noches!... Chego em tempo?...

–O jantar está na mesa – disse Aldo – pode sentar.

–Obrigado – disse o velho tirando o capacete – terminei o trabalho cedo, para conhecer sua gente. Há dias não durmo direito esperando este momento.

–Não seja por isso. Aqui estão eles. Como vê, somos dezoito.

–E também há três bonitas damas loiras!... – exclamou o velho com alegria.

As mulheres da Hércules sorriram com simpatia ao recém chegado.

–Apresento-lhe a engenheira Ingeborg, minha noiva, perita em informática, a doutora Regina, esposa de Boris, nossa linguista, psicóloga e conselheira, e a nossa médica, a doutora Lídia, esposa de Konstantin.

–Prazer de conhece-las, lindas e cultas senhoras e senhorita. Vejo que todos são jovens, na maioria...

–Sim – concordou Aldo – O mais velho é Jacques, nosso primeiro piloto...

–Pardon, monsieur capitaine, o mais velho é o nosso grande mâitre de aute cuisin, monsieur Le Mudo...

–É verdade – concordou Aldo – o Mudo é mais velho do que o capitão Jacques Cartier... Desculpa, Mudo.

O Mudo sorriu e indicou a improvisada mesa com um gesto. Sentaram-se. O cozinheiro serviu pão recém feito de farinha de trigo. Os olhos do velho encheram-se de lágrimas, surpreendendo os antárticos. Ficou em pé, pegando um pão.

–Obrigado, meu Deus, por chegar até mim, obrigado por não me abandonar...!

Levantou o pão com ambas mãos, como se fosse uma hóstia e disse:

–Deus chegará até mim, onde eu estiver, e esta é a prova, amigos. Talvez vocês, jovens viajantes, estejam habituados a comer diariamente este abençoado pão, mas eu... Já faz 68 anos que não como pão e agora sei que Deus os trouxe até mim.

Com lágrimas, ainda nos olhos, o velho partiu o pão em dezenove pedaços.

–Tomem, comunguem comigo, que Deus os abençoe a todos e os acompanhe sempre, como os tem acompanhado até agora...

Sem demonstrar seu espanto pelo ritual monoteísta que detestavam, comeram o pão. O Mudo remexeu entre os objetos estocados e achou uma garrafa de Chianti.

–Aqui está! – disse – A tenho há anos. Em honra ao visitante, vou abri-la.

E seus camaradas ficaram surpresos. O cozinheiro nunca tinha falado em público tantas palavras seguidas...

*******.

Depois do jantar, enquanto o Mudo e Kowalsky lavavam os pratos após ter desmontado a mesa para fazer espaço, os outros sentaram em cima dos objetos ou deitaram, envoltos em cobertores, na roupa espacial ou nos sacos de dormir, para suportar o frio e ouvir a conclusão do relato do Eremita de Io:

–Vocês devem considerar que antes de continuar, poderão enfrentar os piratas, que roubam, matam e fogem da justiça de Milkar nestas luas.

–Por quê a metrópole não toma providências? – perguntou a doutora Lídia.

–Porque embora este território seja da Suprema Confederação, Júpiter e suas luas pertencem a Milkar, em consideração ao tratado feito após a derrota de Alakros...

–Não me entendeu – replicou Lídia – refiro-me à metrópole Milkar.

–Bem, Milkar é um império enorme, burocrático. Não pode ocupar-se de um pequeno território como este, que inclusive é particular, pertence à família Atol, cujo fundador Pru Atol Número Um foi o primeiro da sua raça em chegar aqui.

–A produção deve ser pequena, para influir nas contas milkaras – disse Inge.

–Milkar está longe demais, mas não os confederados. As naves estelares costumam ancorar na órbita de Plutão, onde há um entreposto avançado de troca.

–Em Plutão? – maravilhou-se Lídia.

–Sim, linda senhora. Ali conheci um capitão estelar confederado, natural de D'Har-Minh, segundo planeta de Prócion, a capital da Suprema Confederação, que me deu aqueles dois fuzis disruptores que tanto lhes impressionaram, e muitos livros, inclusive uma Enciclopédia Alakros, bastante nova, com apenas 200 anos.

–Então os alakranos ainda existem.

–Sim, capitão. Eles ainda estão por aí, lá fora.

–Quando parou de viajar no espaço? – perguntou Regina.

–Há vinte anos... Acho. Quando faleceu minha amada Ana. Então eu vim para esta lua e fiquei tomando conta da minha fazenda.

–Amanhã iremos embora – disse Aldo – a Hércules está quase pronta e temos que nos encontrar com nossos camaradas que devem de pensar que estamos mortos. Se pudéssemos lhe dar alguma ajuda...

–Não. Mas se passarem pela colônia do outro lado desta lua, vocês poderão entrar em contato com meu filho Paco, que a dirige, e dizer-lhe que estou ótimo.

–De acordo – respondeu Aldo, pensando se não seria melhor que o velho

usasse o rádio para entrar em contato com seu filho.

Quando o Eremita levantou-se para ir embora, uma apavorante explosão fez tremer o solo e os objetos dentro do iglu. Caíram coisas na cozinha e o Mudo gritou palavrões em italiano.

–O quê foi isso? – perguntou Boris – Violento demais para ser um tremor!

–Os piratas! – exclamou o Eremita – Estão atacando!

–A nave! – gritou Aldo, colocando luvas e capacete – Equipem-se! Às armas!

*******.

A Fênix.

Os que estavam meio vestidos, colocaram os capacetes, luvas e mochilas ajudados pelos outros e saíram primeiro.

Lá fora, ainda caiam objetos com lentidão, junto com pó e rochas. Uma enorme cratera marcava o local onde antes havia um estoque de peças de reposição.

À distância viam-se caindo lentamente dois motores de freio, junto com um tubo principal.

A Hércules estava intacta, à sombra do rochedo, mas algumas barras metálicas do estaleiro e alguns cabos de aço foram danificados, fazendo a nave inclinar-se perigosamente a bombordo.

Aldo e Jacques foram os primeiros em abordar seus aviões, ao tempo em que outro torpedo fotônico caía perto do iglu, fazendo pular materiais e caixas de munição.

Por acaso os aviões estavam alinhados à sombra da rocha do precipício, com o que escaparam de serem destruídos pelo inimigo, que não os percebeu. Se tivessem ficado no descampado, sem dúvida seriam os primeiros alvos.

Os outros pilotos saíram do iglu sob uma chuva de comida empacotada que caia do céu e se destroçava ao cair,enquanto que no espaço, à grande altura sobre o acampamento, um disco dos piratas, talvez Kholems, fazia a manobra para o terceiro ataque.

Ives, Tom e Kowalsky correram aos aviões, passando por entre os destroços do caminhão de carga do Eremita, que, desconsolado procurava suas armas entre os restos retorcidos.

Os outros saíram para tentar consertar o estrago.

Quando o inimigo posicionou-se novamente para atacar, os cinco aviões de caça já estavam no espaço, atirando.

Certamente que o piloto do disco, talvez habituado a atacar fazendas e naves de carga indefesas; não contava com uma resistência tão rápida, pelo que escapou em vez de se defender. Esta medida foi inútil e sua vacilação foi fatal.

Os torpedos atômicos alcançaram-lhe quase ao mesmo tempo e o fizeram desaparecer numa explosão que cegou momentaneamente a quantos se encontravam embaixo.

Quando, segundos depois, o brilho desapareceu, os que ficaram no solo respiraram aliviados.

–Malditos covardes! – gritou o Eremita – Costumados a atacar camponeses indefesos! Hoje tiveram o que mereceram!

*******.

Essa noite ninguém dormiu no acampamento. O Eremita e sua mascote ficaram para ajudar no conserto dos estragos e juntar o material espalhado.

Com luz gerada por um dos aviões, trabalharam sem parar mais de vinte horas, até o amanhecer, esquecendo o cansaço do longo dia anterior. Até o meio-dia fazia 55 horas que não dormiam. Mas terminaram de montar a Hércules.

–Sobrou um freio inteiro, Aldo – disse Boris – perdemos dois motores principais, teremos menos potência. O reator está bom, podemos gerar antimatéria suficiente para decolar. Só falta carregar o combustível que havia e o que conseguimos fabricar, trezentos mil litros em total.

–Suficiente. Temos que sair daqui quanto antes. No solo estamos vulneráveis.

–Acho bom, mesmo! – disse o Eremita – Quando os outros piratas vejam que seus amigos se demoram, virão por aqui a ver o que aconteceu...

–Você virá conosco – disse Aldo.

–Prefiro voltar à minha fazenda.

–Estará em perigo.

–Sem problema, capitão – disse o velho – eles nunca vão por lá. Além do mais tenho minhas defesas.

–Quê tipo de defesas? – perguntou Boris.

–Camuflagem holográfica, defletor de radar... E se tudo falhar, tenho um banco phaser com duas baterias automáticas.

–Isso acaba com eles?

–Os milkaros garantem que funciona... Claro; nunca precisei usar esses trecos...

–Certo. Bem, não podemos demorar – disse Aldo – Boris; vamos nos dividir; uns bombeiam o fluido e outros comem. Depois trocamos de lugar e carregamos o que sobrou dos mantimentos.

*******.

–Há mantimentos, água, ar e comida, para um mês – disse o Mudo.

–Saímos de Marte há três meses com suprimentos para dois anos – disse Aldo.

–Podem abastecer com os colonos do outro lado – disse o Eremita.

–O teremos em conta – disse Aldo – Como estamos de munição, Jacques?

–Municiamos os aviões e ainda há mais duas recargas, fora algumas sobras.

–Certo, e na Hércules?

–Podemos lutar duas horas, capitão – respondeu o artilheiro Grubber.

–Abandonamos o material não essencial – disse Boris – iglu, Jeep Lunar...

–O que não vamos precisar, fica.

–Este lugar pode ser uma base alternativa, capitão – disse Jacques.

–Capitão; posso ficar com o Jeep Lunar? – perguntou o Eremita.

–Sim. Devemos-lhe a destruição do seu caminhão.

–Não se preocupe, tenho outros veículos na minha fazenda. Preciso do carro apenas para voltar a casa. Devolvo quando voltarem.

–Fique com ele. É seu.

–Todo o essencial já está a bordo, capitão! – disse Kowalsky.

–Então vamos prosseguir.

A energia primária da nave era gerada por um dos aviões.

Os engenheiros abasteceram o reator com o plutônio de reserva.

Os acumuladores restantes foram reconstruídos e agora deveriam ser recarregados.

Abandonaram um acumulador, três freios e dois motores de popa. Com três motores no tubo principal e 19 motores secundários; a Hércules preparava-se para decolar.

O Eremita, sentado no Jeep com sua inseparável mascote, via a Hércules cobrar vida. Caindo de sono e de cansaço, os tripulantes lutavam para pôr em funcionamento a nave com seu interior às escuras, iluminado apenas pelas lanternas dos trajes.

Jacques, a bordo do seu avião com a capota da cabine levantada e o engenheiro Henschel em pé, ao lado, com as mãos enfiadas dentro do motor de tampa levantada, esperavam.

Dois cabos iam do avião até uma das escotilhas de carga da nave.

–Agora, Henschel! – ordenou Dreisen, desde a sala de máquinas.

–Transferindo energia – disse Henschel – Agora Jacques!

–Ligando! – respondeu o francês, dando a partida.

–Mais pressão! – ordenou Dreisen após alguns segundos.

–Estou à toda! – respondeu Jacques, lutando com os freios e a antigravitação revertida, para o avião não sair disparado à frente; com Henschel, cabos e o mais.

Logo depois, as luzes da Hércules acenderam-se piscando com a energia vital do CH-2, iluminando a engenharia, onde Dreisen ligava manualmente os sistemas um a um, para ativar o reator.

Aldo e Boris na ponte observavam os instrumentos ainda escuros, mortos. Passaram os minutos e pouco a pouco, a vida eletrônica foi voltando, vacilante, com a energia de fora.

Inge Stefansson, na sala de circuitos, dava uma última olhada nos consertos que ela mesma fizera no sistema. Esperava pacientemente com o pendrive de boot na mão, até que houvesse energia suficiente.

–Dreisen para capitão! Reator ativado sem vazamentos!

–Abra o passo de fluido, carregue a bomba e o gaseificador – disse Aldo.

–Fluido circulando, capitão!

Aldo deu a partida. Nada aconteceu, o combustível não chegara ainda à câmara de combustão. Os segundos pareciam intermináveis, logo Dreisen informou:

–Já temos o primeiro antipróton, capitão. Antimatéria ativada.

–Como está a contenção?

–A pleno. Aumentando a pressão, capitão.

–Aldo para Báez! Colocar acumuladores em carga!

–Sim senhor, carregando!

Os motores se estremeceram. Aquele fato familiar a todos, os fez emocionar e os tripulantes se expressaram com um grito que estremeceu todos os capacetes, abraçando-se uns aos outros na engenharia:

–Feito!

No solo, os pilotos, o Mudo e o Eremita viram os tubos se acender.

–Desligar a força auxiliar, Henschel – ordenou Aldo.

–Sim senhor. Capitão Jacques? Já ouviu.

–Desligando força auxiliar – respondeu o francês.

O avião aquietou-se. A poeira começou a assentar-se, enquanto Henschel, ajudado pelo Mudo; desligava os cabos e fechava a tampa do motor.

–Báez para capitão! Acumuladores quase carregados!

As luzes de bordo, que se atenuaram ao desligar os cabos, agora recuperaram sua intensidade normal.

–Inge para Aldo! Sistema reinicializando.

–Quero uma varredura geral!

–Um minuto para a varredura geral.

Em segundos, o computador liberou o sistema e ativou os instrumentos.

–Instrumentos operantes – informou Konstantin.

–Sistemas interiores em funcionamento – informou Regina.

–Ativando o suporte de vida, capitão – disse Lídia.

–Rendimento pleno – disse Dreisen, testando o comunicador da engenharia.

–Temos ar – disse Lídia – podemos tirar os capacetes. Não há goteiras.

–Inge, controla tudo, vê se há falhas.

–A varredura acusa falta de três freios, dois motores e um acumulador, Aldo.

–Tudo normal, então, querida. Dreisen! Como está a antimatéria?

–Normal capitão. Bem contida. O segundo antipróton vai nascer.

O cozinheiro, de pé no solo, assistia tudo em silêncio, quase chorando, vendo a nave que tanto amava; a nave que era seu lar, toda chamuscada, queimada, amassada e remendada, voltar à vida. Não se conteve:

–A velha e querida Hércules! Renascida como a ave Fênix!

–Vamos fazer uma última revisão antes de decolar. Não vamos partir sem dar uma última olhada no acampamento e no iglu para ver se não esquecemos de nada importante. Mudo! Encarrega-te!

–Sim, meu capitão!

*******.

De novo no espaço.

A Hércules decolou com Boris no comando.

Aldo e os pilotos seguiram nos aviões, escoltando a nave, que já não tinha a mesma agilidade e velocidade de antes, porque a situação era crítica. Os piratas poderiam voltar, e os cinco caças já tinham demonstrado sua eficiência em combate.

Aceleraram para o espaço, enquanto embaixo, o Eremita e sua mascote abordaram o Jeep Lunar e se dirigiram ao deserto; abandonando o agora triste Acampamento Muslimov.

O Velho parou o veículo junto ao túmulo de Basil Muslimov e levantou a vista ao céu, onde ainda podiam ver-se as seis pequenas estrelas que se afastavam mais e mais, em direção oposta ao enorme disco de Júpiter que enchia quase todo o céu.

O Eremita sentiu uma profunda tristeza, um profundo vazio, sabia que sua vida não seria mais a mesma.

Sentiria saudades. Apegara-se daqueles jovens viajantes que trouxeram alegria à sua vida solitária.

–Que Deus os acompanhe!...

*******.

Continua em: A BATALHA DE AMALTEA

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O conto A FÊNIX forma parte integrante da saga inédita Mundos

Paralelos ® – Fase I - Volume II; Capítulo 16, Páginas 108 a 113; e seu inicio pode ser encontrado no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados:

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O volume 1 da saga pode ser comprado em:

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Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 05/11/2016
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