CÓDIGO 666: A MARCA DA INFÂMIA
Cidadela, Rhea, 04 de julho de 2017.
As festas de aniversário no promenade viraram rotina, única descontração dos terrestres que os fazia esquecer a guerra distante, da qual as notícias eram poucas e desencontradas pelas dificuldades de comunicação. Antártica parara de transmitir por causa da guerra espacial que destruía satélites.
A JNN da ditadura, desde Groenlândia e a RTVV da Antártica, desde a Lua; travavam guerra de desinformação com a RTVM, Radio e Televisão Marciana. Mas sem antenas viradas para o espaço profundo, nada chegava a Júpiter e muito menos a Saturno.
Valerión aniversariava hoje, 53 anos e os xawareks que tanto gostavam das festas terrestres, não podiam ser deixados de fora. Kern Mokvo, fez um pedido, após Valerión cortar o bolo:
–Você tem que contar uma história.
Valerión, que tinha muitas histórias para contar perguntou:
–O quê poderei contar que meus amigos já não saibam de mim?
Mokvo, que em todo o tempo em que convivera com os terrestres, aprendera a história da luta antártica contra a ditadura – e de lutas ele gostava – disse:
–Conte como foi que começou sua luta.
–Isso você já leu em nossa base de dados – retrucou Valerión.
–Sua luta particular! – rosnou o siriano – Precisamos boas histórias de guerras; grandes batalhas e caçadas gloriosas para contar aos nossos filhotes.
–Entendo. Há uma historia que me inclui e que não está na base de dados.
–É gloriosa? – disse o siriano, com as orelhas em pé e o pelo arrepiado.
–No seu momento foi glorioso; sim, foi uma luta gloriosa. Mas em conjunto foi apenas uma batalha de tantas na luta contra a tirania mundial.
–Pequenas batalhas também trazem honra e glória, doutor. Conte!
–Vou contar uma parte fundamental, uma parte da luta subterrânea de um grupo ao qual pertenci, o grupo que fez a Antártica existir: O Esquadrão Shock!
Um coro de rosnados e rugidos de satisfação dos felinos sobrepôs-se aos murmúrios dos terrestres. Então o silêncio se fez no promenade, enquanto Valerión se transfigurava para contar sua história...
*******.
Terra, ano 1998 - O Esquadrão Shock.
Uma chuva mansa caía sobre a rua de paralelepípedos que refletiam as luzes da cidade sem alma. Protegido pelas sombras dos pórticos, Syd, o Homem das Facas, caminhava de presa, procurando não ser visto.
Apertou o passo, enrolado no seu manto, quando ouviu o barulho de um motor: Uma patrulha... Os soldados o viram:
–Você aí! Pare!
Syd ficou paralisado pela adrenalina. Não podia ser detido nem revistado, já que por baixo do manto trazia seu arsenal de facas. Além disso, não tinha documentos, tinha entrado clandestinamente em Buenos Aires, capital da Argentina Norte e era conhecido pelo vistoso tapa-olho preto que cobria seu olho esquerdo, perdido em combate.
Ele não tinha outra opção a não ser fugir, embora fosse a mais perigosa. Correu até a primeira esquina; infelizmente um beco sem saída. O carro da patrulha parou na frente do beco e os quatro soldados desceram.
Syd olhou na sua frente. Poderia escalar a parede facilmente se tivesse tempo, mas os soldados, armados com submetralhadoras INGRAM de 9mm, arma de assassinos e preferida dos dominadores, não lhe dariam esse tempo. Resolveu entregar-se e levantou as mãos.
–Não atirem, me entrego!
–É o melhor que você pode fazer! – disse o soldado mais graduado.
Os outros abaixaram suas armas, confiados. Quando o oficial ficou frente a frente do Homem das Facas, que parecia resignado com sua sorte, este levou as mãos à nuca, acariciando a gola do manto.
Em seguida rápido como um relâmpago, puxou com ambas mãos duas afiadas facas de lâmina curta e duplo fio, arremessando-as contra o oficial e o soldado que estava mais perto.
Antes que os dois caíssem ao solo, gorgolejando horrorosamente com suas gargantas cortadas, afogados no seu próprio sangue, Syd puxou dois shurikens, envenenados, o primeiro dos quais foi alojar-se no olho esquerdo do terceiro soldado que já estava levantando sua arma, e o segundo entrou no pescoço do quarto soldado, cortando-lhe a jugular, que começou jorrar um violento jato de sangue a grande distância.
Ainda conseguiu apertar o gatilho antes de cair, mas as balas perderam-se no solo... Antes de cair já estava morto pelo poderoso veneno.
O silêncio se fez no beco.
Mas alguém poderia ter ouvido os tiros, embora numa cidade ocupada e violenta, ninguém se importaria com isso.
Syd recolheu suas facas e seus shurikens. Após limpá-los na roupa dos cadáveres, resolveu pular o muro do beco para não se arriscar a sair à rua e ser visto abandonando o local onde uma viatura da polícia, parada, não demoraria em chamar a atenção dos outros patrulheiros e os mortos seriam fatalmente encontrados.
Após pular, saiu ao outro beco. Sem correr, chegou à rua posterior ainda mais iluminada. Caminhando devagar, para não chamar a atenção, rumou para o cais. Após vários quarteirões, procurando não ser visto, Syd chegou ao esconderijo.
Nele se encontrava o jovem especialista em informática, Darlán, sentado frente ao terminal.
–Por fim – disse Darlán – Pensei que não chegaria nunca.
–Quase me pegaram, tive que matar quatro policiais.
–Trouxe a encomenda? – perguntou, com a esperança refletida nos seus olhos claros através dos seus óculos de metal.
–Aqui está – disse o Homem das Facas, tirando um CD do bolso.
–Tem certeza de que é este?
–Faça seu trabalho, rapaz, que eu faço o meu – disse Syd dirigindo o olhar gelado do seu único olho ao jovem Darlán.
Sem intimidar-se, habituado já ao caráter violento do Homem das Facas, Darlán colocou o disco no leitor. Em seguida, na tela apareceu uma série de letras e números incompreensíveis para Syd.
–E aí? – perguntou.
–Nada – disse Darlán, agarrando a cabeça e despenteando seu cabelo castanho.
–Mas este é o disco que me mandaram roubar!
–Certo, mas não abre... Está pedindo o segundo disco!
–Mas que droga de especialista você é?
–Era evidente que não abriria.
–Estamos a zero de novo?
–Não, desta vez, não. Mas precisamos do outro disco... E do professor.
*******.
O encarregado de trazer o Professor Doutor Alexei Gregorovitch Valerión, era o mais forte membro do Esquadrão: o austríaco Alois "Trovão" Stülpnagel, gigante loiro que dominava a luta corpo a corpo e as armas pesadas.
Mas neste momento, o Trovão estava encurralado pelos policiais numa construção abandonada, sob fogo fechado e ainda sem haver conseguido localizar o professor...
O velho edifício de três andares, que outrora tinha sido uma loja de autopeças, agora era um esqueleto, transformado numa ratoeira onde Trovão estava encurralado.
Os policiais da Nova Ordem Mundial estavam entre ele e o seu carro, no qual guardava a maioria das armas.
Pela porta da frente seria impossível fugir porque seria alvejado impiedosamente.
Trovão tinha apenas para defender-se seu fuzil automático M-16, uma peça antiga, porém certeira, carregada com balas de mercúrio explosivas, uma arma de guerra temível, comparada com as INGRAM e UZI do inimigo, armas de assassinos; apesar de rápidas no tiro, não eram certeiras na longa distância.
O gigante, apesar de estar ferido na cabeça, perto do olho esquerdo e sangrando, tinha como vantagem sobre o inimigo sua superior pontaria e a precisão da sua arma, que sabia usar como ninguém.
Ele era um Homem Verdadeiro, não um arremedo de gente, que a Nova Ordem Mundial recrutava entre as populações locais, para servirem de algozes dos seus conterrâneos.
Pela porta de trás não podia fugir, era um pátio fechado. A única salvação seria trepar ao telhado e fugir pelos tetos dos blocos de edifícios, embora pudesse atirar neles dessa posição. Não o fazia para economizar munição e tempo, já que pressentia a chegada de outras viaturas.
Trovão subiu ao terraço e ainda que a contragosto, atirou nos esbirros da ditadura, matando dois.
Os restantes responderam ao fogo. O gigante lamentou não ter trazido suas granadas.
Aproveitando que o inimigo estava atirando, Trovão correu à parte posterior do prédio e viu o pátio fechado.
Um cabo de eletricidade há muito fora de uso, unia o prédio com o prédio vizinho, um velho edifício de apartamentos abandonado, a não ser pelos numerosos mendigos que a Nova Ordem Mundial produzira na outrora rica Argentina.
Ignorando a dor, encomendou-se a Odín e testou o cabo que parecia ser resistente o bastante como para aguentar seu peso. Com o nome dos deuses no pensamento, Trovão atravessou o espaço de oito metros que lhe separava da salvação.
Uma vez do outro lado, entrou pelo alçapão e correu pelas escadas, assustando mendigos e andarilhos que se encolhiam nos cantos, amedrontados pelo gigante.
Quando chegou ao térreo e à rua lateral, pôde ver seu carro intacto, mas para chegar a ele, deveria atravessar a rua onde os soldados estavam, ainda atirando granadas de gás nas janelas do edifício onde estivera dez segundos antes.
Trocou o carregador do fuzil, engatilhou e correu, atirando nos policiais que estavam praticamente de costas.
A confusão foi grande e conseguiu atingir alguns, mas continuou correndo até entrar no carro, ligando o possante motor e saindo a toda velocidade, pelas ruelas, perdendo-se na escuridão da noite.
*******.
Já mais tranquilo, pegou o microfone e radiou uma mensagem:
–Bispo para Tabuleiro! O Homem não estava e já vasculhei dois locais.
–Procure no Setor Cinco. Desligando.
–Incompetentes! – disse ele, acelerando com raiva – fazem-me perder tempo!
Trovão dirigiu-se ao Setor Cinco a toda velocidade.
Os rebeldes argentinos do Tabuleiro, que deviam dar apoio ao Esquadrão na operação, eram mais idealistas do que práticos. Desse jeito nunca poderiam derrotar as forças da ditadura da Nova Ordem Mundial dentro do seu país dividido.
Trovão não era idealista; lutava pelo dinheiro, pelo prazer inebriante da luta e por fidelidade aos camaradas. Achava que a Causa estava perdida de antemão e que Antártica seria derrotada pelos dominadores.
Isso já acontecera antes a países que tentaram deter o domínio dos tiranos denunciando o que estava para acontecer sem que o mundo escutasse; alienado demais com drogas e mídia pelos parasitas que finalmente tiraram a máscara.
De qualquer maneira estava conseguindo sobreviver e isso era bom, isso era divertido.
Se morresse, seria lutando, em vez de misturar-se com a massa de ovelhas; essa ralé humana em que estava convertida a humanidade após séculos de miscigenação para pior e após a campanha mundial para baixar o nível cultural geral, o que permitiu o atual estado de coisas.
Trovão interrompeu os seus pensamentos para concentrar-se no que estava pela frente: o Setor Cinco...
*******.
O Setor Cinco era um prédio condenado, assim como muitos da cidade decadente; um edifício de dez andares. O Gigante estava indignado pelo fato de que teria de vasculhá-lo em sua totalidade, assim como tinha sido obrigado a fazer com os outros do Setor Nove.
Estacionou numa rua lateral, após examinar suas possibilidades de fuga, para não ficar encurralado como antes. As patrulhas da Nova Ordem Mundial tinham predileção pelos prédios abandonados, já que estes sempre abrigavam inimigos do regime, além de simples mendigos, andarilhos e ladrões procurando fugir da polícia.
Após estacionar num local apropriado para uma fuga de emergência, o Gigante pegou o fuzil, as granadas e a Magnum 44 com pente de oito balas, além de uma sacola com munição de reserva.
Desta vez os patrulheiros não o pegariam desprevenido.
Com sangue no rosto ainda saindo do ferimento; correu até o prédio e entrou; não sem antes dar uma olhada em redor. Ignorando a dor, começou rapidamente a subir as escadas, não encontrando nada nos cinco primeiros andares.
No sexto viu uma família de mendigos, aparentemente inofensivos.
–Fiquem quietos e em silêncio, que nada acontecerá – disse com voz glacial.
–Sim senhor – respondeu o homem, abraçado da mulher e de duas crianças.
–Se a polícia vier, haverá tiroteio. Vocês não querem morrer, estou certo?
–Não, senhor! Sim senhor!
Não sabia se a ameaça surtiria efeito, porém estava por demais apressado para terminar o serviço e continuou subindo até o nono andar, onde encontrou um cadáver em estado de putrefação.
No décimo andar não encontrou nada.
Subiu no terraço para olhar a rua e viu seu carro no local onde o deixara e a rua limpa e tranquila, iluminada por algumas
luzes ainda não quebradas por marginais.
Retornou, passando de novo pela família que estava ainda no mesmo canto imundo, tremendo de frio e de medo.
–Bons meninos!
Chegou ao nível da rua e viu uma porta que dava à garagem subterrânea.
–Vejamos – murmurou para si mesmo – deve ser por aqui.
Cautelosamente desceu pela escada e viu a fraca luz de uma vela.
Seu coração bateu mais forte e uma dose de adrenalina correu pelo seu corpo ao ver um bando de mendigos da pior espécie, sentados em caixotes de madeira, bebendo um líquido escuro de uma imunda garrafa de plástico, ao redor de um Homem Verdadeiro amarrado de pés e mãos, que apesar de estar com uma ferida sangrando na têmpora direita, talvez produzida por uma paulada traiçoeira, destacava-se no grupo imundo, como um príncipe entre campônios.
Segurou a respiração para ouvir a conversa:
–Deve valer algo, vejam as roupas dele! – disse um mestiço de índio com um tumor canceroso num olho; talvez provocado pela comida distribuída pelo regime.
–Vamos entregá-lo! – disse um loiro com olhos esbugalhados.
–A quem? À polícia? Estão loucos?
–Claro! Nos darão uma recompensa! Deve ser um rebelde!
–E quem o entregará? Não quero ser preso depois! – disse o mais velho.
–A recompensa vai ser uma injeção de veneno!... Com sorte um tiro no meio dos olhos! – disse outro.
–Vamos vendê-lo para o Banco de Órgãos! – disse o meio índio do tumor canceroso – Aí não perguntam nada e dão comida e café!
–Certo, está decidido – disse o velho bebendo mais um gole da garrafa.
*******.
O prisioneiro, um Homem Verdadeiro de semblante nobre, de uns trinta anos, de cabelos pretos que começavam a escassear nas têmporas, com olhar cinzento e penetrante, começou a suar frio.
Só um milagre poderia salvá-lo de ser transformado em peças de reposição para que os malditos eleitos se perpetuassem vivos o maior tempo possível para aproveitar por mais tempo seu domínio sobre a humanidade escrava, sabedores que após a morte; nada há para eles; que se desintegrarão para sumir no nada, no esquecimento, como o que são: apenas robôs genéticos de um maldito deus diabólico, um demiurgo, um robô escravo de Satã, o Demônio; que é o atual amo e senhor do planeta Terra até o final desta maléfica Idade do Ferro.
Mas o milagre se fez. Um milagre chamado Trovão.
Alois Stülpnagel, o Trovão, sabia que não tinha a culpa pelo estado de coisas que imperava no mundo.
Também sabia que ele, sozinho, não poderia consertar nada. Portanto não tinha piedade de ninguém quando enfrentava homens treinados e bem armados a serviço da ditadura.
Mas agora enfrentava um bando de infelizes; talvez desarmados, a não ser por facas e paus; que estavam dispostos a levar um homem superior ao Banco de Órgãos para ser esquartejado e levado em pedaços para a parte rica e dominante do mundo...
E esse homem era o Professor Doutor Valerión!
*******.
Pensou em pegar o fuzil pelo cano a modo de porrete e simplesmente entrar em cena, pegar o Professor, quebrar algumas cabeças, bocas, costelas e braços. Depois sair caminhando devagar, com cuidado de no pisar nos excrementos que haviam por toda a garagem subterrânea.
Mas o gigante austríaco olhou aqueles tristes arremedos de humanos, mortos vivos, zumbis incapazes de rebelar-se contra sua mísera situação, incapazes de manter-se limpos, lúcidos e sóbrios; no jogo dos tiranos para eliminar lixo humano, suicidando-se devagar da maneira mais cruel possível...
Engatilhou seu fuzil.
*******.
Atirou nas cabeças, aquelas cabeças podres, com sentimentos também podres, filhas da situação mundial.
Atirou como se atirasse nas cabeças dos malditos Treze, que provocaram tudo isto...
Apertou o gatilho com êxtase, sentindo-se generoso por tirá-los da tortura que era a vida para eles, amaldiçoando a ditadura e o maldito deus sanguinário que deu aos Treze todo esse poder.
Atirou como se atira num cavalo ferido, fazendo um bem aos parias mortos para o mundo.
As cabeças estouravam em cachoeiras de sangue e miolos, os coitados morriam sem dor, sem sofrimento.
"Vamos embora daqui, deste mundo infernal... Obrigado Anjo da Morte... Obrigado...!"
Os cadáveres ficaram estendidos. Trovão respirou aliviado.
Terminara para eles a fome, o frio, o medo, a sujeira e a Idade do Ferro...
A morte foi uma benção...
*******.
Cortou as cordas que amarravam mãos e pés do Professor Doutor Valerión.
–Graças a Deus que você chegou, Alois.
–Deus? Quê Deus, professor? Não me fale em Deus. Olhe em volta!
–Ah...! Certo! Desculpe, bobagem minha, estou transtornado.
–Como se meteu nesta encrenca? Procurei-lhe por toda a cidade!
–É longo de contar...
–Conte-me no carro. O barulho deve atrair as patrulhas logo.
–Preciso pegar meu notebook.
–Seja rápido! Droga!
–Tenha calma. Os mendigos não procuraram no poço do elevador.
Rapidamente, Trovão ajudou o professor Valerión a recuperar o computador com o trabalho de toda uma vida.
–Vamos, professor?
–Vamos, meu amigo.
Cambaleando, sangrando, com dor de cabeça, cansaço e tensão nervosa, os dois homens feridos subiram pela escada, até o nível da rua.
–Estamos feridos, Alois. Mas você está pior do que eu. Deve de doer...
–Estamos meio moles, professor. E azarados talvez... Aí está nossa condução.
O carro do Trovão fazia justiça ao dono.
Tratava-se de um Mercedes 98 super incrementado, capaz de fazer mais de 250 kph e estava totalmente blindado.
–Belo carro.
–Entre! Rápido!
Quando subiram no carro, começaram a ouvir-se as sirenes da polícia e a primeira viatura fazia a volta na esquina.
–Maldita praga! – disse o Trovão, girando a chave de contato.
O carro saiu cantando pneus na mesma direção das viaturas.
A primeira, para evitar o choque de frente, subiu à calçada, tombando.
Trovão fez a volta na esquina derrapando e quase arranhando as outras viaturas. Finalmente acelerou e desapareceu na próxima esquina sem dar tempo aos esbirros da ditadura fazerem a volta e iniciarem uma perseguição.
Trovão pegou uma estrada lateral e ganhou distância.
–Os perdemos? – perguntou timidamente o professor recuperando-se do susto.
–Parece que sim, mas essa maldita praga está em todas partes. Não sei como eles sempre me acham, droga!
–Eu sei.
–Você?
–Está nas minhas anotações que você ajudou a salvar.
–Ótimo. E agora me conte como se meteu naquele ninho de lesmas.
–Foi por acaso, o edifício estava na lista de esconderijos prováveis, mas não havia ninguém da organização para guardá-lo.
–Sei, sim. Nenhum edifício do Tabuleiro tem guardas. Há um traidor no meio da Resistência.
–Sei disso. Descobri da pior maneira.
–Maldita hora em que resolvemos confiar nos revolucionários locais, professor.
Nesse momento, o rádio do carro, chamou:
–Bispo, atenda à Rainha, que está em apuros!
*******.
A Rainha era a perigosa Liza, especialista em armas de fogo, que tinha se metido em encrencas ao fugir após ter roubado o segundo CD...
Como tinha entrado nessa fria?
Tudo começara numa festa dos eleitos locais no bairro mais chique de Buenos Aires, porém rodeado por uma plêiade de favelas.
A festa era para ser uma festa chique para convidados não integrantes da elite dominante, funcionários locais que
sustentavam o poder da ditadura, traindo e servindo de opressores dos seus conterrâneos; mas logo virou uma asquerosa bacanal; ao aparecer o pó e as seringas fornecidas pelos imundos degenerados donos da casa aos seus estúpidos escravos para que fizessem gracinhas e vexames que os divertissem, e assim reafirmar seu imundo e sádico domínio.
Um curto vestido preto decotado mostrava parte dos seus seios.
Sua pele branca, escurecida levemente com maquiagem no corpo inteiro, dava-lhe ar comum.
Uma longa peruca preta ocultava seus curtos cabelos loiros, lentes de contato castanhas disfarçavam o azul do seu olhar.
Parecia uma burguesa local, escrava em algum órgão administrativo da ditadura.
O alto figurão, do qual ela devia roubar o segundo disco, ainda não tinha aparecido.
Liza olhou seu relógio no pulso direito, e com isso, a marca apareceu na sua mão, brilhando com a luz negra do local, assim
como brilhavam todas as mãos direitas do salão, exceto as mãos dos tiranos.
Claro que a marca poderia ser lavada com uma substância especial, com o que desapareceria, pois era tão falsa como sua fantasia de escrava. Não assim as outras marcas no salão, que os desgraçados carregariam até o túmulo.
O professor Valerión teve muito cuidado em marcar todos os membros do Esquadrão com códigos de barras de pessoas mortas em escaramuças com o regime, e cujos corpos os rebeldes ocultaram ou cremaram.
Quando debatia consigo mesma se deveria ir até a entrada para ver os carros que chegavam, o sujeito chegou.
Era um homem jovem e bem vestido, que foi recebido por uma mulher que parecia conhecê-lo.
Liza, antes de tudo pensava como mulher e encantou-se com o recém chegado.
–Pena que deverá morrer – pensou.
Bebeu seu drinque e fez menção de levantar-se, quando viu os dois subirem a escada, sem dúvida procurando os quartos de cima.
–Estragarei essa transa – pensou.
Nesse momento, outro sujeito aproximou-se de Liza.
Ao contrário do primeiro, este era uma sebenta lesma gordurosa e careca, com ar de ratazana e grandes orelhas de abano. Seu nariz parecia de ave de rapina e tinha lábios grossos e indecentes, mãos bem cuidadas; daqueles que não fazem nada; com anéis de ouro e pedras preciosas
Liza percebeu que estava frente a um membro da elite dominante.
–Já está indo embora, gostosa?
–Ah...Não! Estou indo ao andar de cima.
–Posso lhe acompanhar, gatinha?
–Mas é claro! – respondeu Liza, rapidamente.
Liza subiu as escadas.
O nojento passou a libidinosa língua de víbora nos lascivos lábios, e seu olhar de roedor fixou-se nas lindas pernas da moça. Abaixou-se sem nenhuma discrição para enxergar a calcinha de renda cor de alfazema, que a jovem vestia por baixo,
antecipando uma gostosa transa com aquele monumento de mulher.
Os dominadores, quando não eram pederastas ou impotentes, quebravam suas próprias leis raciais e transavam com índias, mulatas e negras; bem mais bonitas do que suas próprias mulheres, que geralmente tornavam-se feias após os quarenta anos.
Ao chegar ao corredor do andar de cima, Liza viu o casal entrando num quarto.
Agora o imundo dominador gordo não era mais necessário.
De soslaio Liza viu que não tinha ninguém por perto e puxou seu batom, olhando fixo nos olhos de rato do sorridente gordo, dirigindo-o ao pescoço dele.
Uma diminuta bala explosiva de três milímetros, recheada com mercúrio e cianureto, entrou-lhe pela garganta de baixo para cima, retalhando o maldito cérebro do imundo ser.
Este caiu como um saco de batatas, morto antes de tocar o chão.
Liza guardou seu batom e correu até a porta do quarto, puxando sua pequena e silenciosa, porém mortífera pistola de balas explosivas; escondida no cabo da sua escova de cabelo.
Era o momento de agir.
*******.
Liza respirou fundo e testou a fechadura do quarto onde entrara sua vítima. A porta estava obviamente trancada.
O som do Heavy Metal estava insuportavelmente alto, o que seria ideal para o que pretendia fazer.
Segurando a pistola na mão direita, com a esquerda retirou um pequeno brinco da orelha direita, que introduziu na fechadura antiga, após retirar-lhe um pequeno pino com os dentes, o qual cuspiu no chão acarpetado, afastando-se um pouco.
A explosão destruiu a fechadura.
Liza meteu o pé na porta que se abriu com violência e entrou.
O alvo e a mulher já estavam nus na cama e abriram os olhos com surpresa.
Liza apontou e atirou. O homem com a cabeça destroçada; ficou imóvel. Imediatamente, Liza pulou na cama e afogou o grito da mulher com o travesseiro, até ela parar de debater-se, morta.
Depois foi até a porta para ver se alguém estava vindo. Ninguém à vista, a música estava bem alta. Ótimo.
Liza revistou as roupas espalhadas, achando o segundo disco.
Tranquila, feliz quase, colocou-o entre os seios, guardou a pistola na bolsa e saiu, fechando a porta.
Passou por cima do cadáver do dominador gordo e desceu ao salão, misturando-se com as pessoas alegres e drogadas.
No bar, esvaziou de uma vez uma dose de Grant's sem gelo.
Riu alto, pegou seu casaco de peles, e saiu à francesa pela porta da frente à rua fria onde tinha começado uma chuva fina e persistente.
Caminhou devagar até seu Miura 97, que chamava a atenção entre os velhos e ruinosos carros nas ruas de Buenos Aires. Saiu devagar, dirigindo com cuidado nas ruas de paralelepípedos molhados pela chuva fina.
O chão brilhava demais e as luzes quase não iluminavam nada nessas condições.
Finalmente, saiu do trânsito e rumou por uma ruela secundária rumo ao cais.
Seus amigos deviam estar impacientes, senão preocupados.
*******.
Buenos Aires tinha sido uma bela, cidade, nos anos sessenta, trinta e tantos anos atrás, como em 1964, ano em que nasceu
na Rússia o professor Valerión.
Excelente vida noturna, casas de tango e um luxo único na América do Sul.
Com a divisão, na Nova Ordem Mundial a cidade era apenas a capital da Argentina Norte, desmembrada da rica e produtiva república da Argentina Sul; também chamada Andínia, cuja capital era Viedma, planejada para ficar em poder do inimigo da raça humana.
Só que algo saiu mal aos tiranos. A situação virou, e ficaram com o Norte.
Antártica tomou conta da Andínia com ajuda do Chile, inimigo declarado da Nova Ordem Mundial depois do que aconteceu com Pinochet.
Passou a sofrer embargos econômicos e calúnias das autodenominadas "organizações pela defesa dos direitos humanos".
Hoje, o norte parece a Roma do fim do Império. Onde os malditos estivessem, sempre era marcante a diferença entre ricos e pobres.
Liza pensava no mundo que conhecera quando menina, quando isto nem se sonhava que pudesse acontecer e os que vaticinavam estas desgraças eram chamados de loucos e criminosos; presos pelos autodenominados defensores dos mal chamados "direitos humanos".
De repente viu um carro no retrovisor. Achou que fosse um carro da estúpida polícia local; mas era uma viatura do governo mundial.
Procurou não dar importância, mas logo o veículo encurtou distância com os tripulantes de olho nela.
Viu que seria detida, e isso não podia acontecer...
Ela apertou o acelerador e em segundos tomou considerável distância. Foi aí que as sirenes começaram a uivar...
–Justo agora! Isto não pode acontecer, droga!
Já era tarde e o trânsito estava diminuindo, o que ajudou à jovem a tomar distância dos perseguidores.
O Miura 97 era um excelente carro, não comparável ao Valiant 91 dos esbirros da Nova Ordem Mundial.
O carro não rendia todo o que era de esperar-se pelas péssimas condições do calçamento há muito esquecido pelos traidores, que só procuravam poderes e honrarias do Governo Mundial.
Liza tentou despistar os inimigos, mas não tinha jeito. Outra viatura juntara-se à primeira.
Nem pensar em ir ao esconderijo onde era esperada pelos amigos. Devia levar o inimigo longe da toca, e pegou a Avenida General Paz para sair do centro e afastar-se do cais.
–Não acredito que hajam achado os corpos – pensou – E menos ainda que eles possam me atribuir o crime. Deve ser outra coisa. De todas maneiras, não posso me permitir ser detida e revistada. Tenho muitas armas no carro, além do disco.
Acelerou o mais que pode e tomou uma boa distância, suficiente como para que não lhe acertassem com armas pesadas.
Então, pegou o rádio:
–Tabuleiro, aqui a Rainha! Responda!
–Fale Rainha!
–Estou em xeque na Avenida General Paz.
–Avance para o Setor Cinco. O Bispo está por lá.
–Certo. Rainha desliga.
Liza conhecia bem a cidade, à qual chegara com os membros do Esquadrão, para conhecer os pontos antes de agir. Memorizara mapas e tinha horas rodadas nos setores numerados pelos revolucionários do Tabuleiro que apoiavam as operações.
Liza girou à direita e subiu a rampa que conduzia a uma avenida.
Os perseguidores derraparam na brusca mudança, mas não desistiram, indo atrás dela, que pegou a rua que levava à uma zona de parias, dissidentes do regime, gente considerada marginal porque não aceitava o estado de coisas que imperava,
nem queria receber a marca.
Liza pegou o rádio de novo.
–Bispo, aqui a Rainha! Você está perto?
–Estou em xeque na saída do Setor Cinco!
–Eu também, mas podemos fazer o mesmo que fizemos em Londres.
–Em Londres? Ah! Sim! Gostei, vamos lá!
–Aqui Tabuleiro. O Peão está In Passant, no Setor Quatro.
–Certo Tabuleiro – disse o Trovão – Rainha, vai agora mesmo! Direita!
–Direita – disse Liza entrando na rua em que Trovão fugia dos seus inimigos em direção contrária.
Viu as luzes do grupo quando estava a poucos metros do outro, num cruzamento.
Liza e Trovão viraram violentamente, à direita, saindo em direções opostas pela rua transversal, e os perseguidores, agora três carros de cada lado, bateram-se de frente com estrondo. Quatro veículos pegaram fogo, e dois conseguiram recuperar-se, embora amassados, retomaram a perseguição pela rua lateral.
–Resista, Rainha, o Peão está aqui! – disse o rádio.
Em segundos, outro carro somou-se à perseguição, um carro diferente, preto, sem distintivos, do mesmo tipo dos carros do governo. Uma bazuca emergiu pela janela, disparando um foguete que destruiu o primeiro carro, transformando-o numa fogueira com seus ocupantes. No retrovisor ela viu o carro misterioso passar pelos destroços em chamas e alvejar o segundo carro, destruindo-o ao igual que o primeiro.
–Rainha! Prossiga!
–Obrigada Peão.
Liza acelerou, agora sem perseguidores, com o Peão e o Bispo nas ruas paralelas para cobri-la, se fosse necessário.
Não lamentou as mortes dos policiais, fato corriqueiro. Estava preparada para o pior e sua autopreservação vinha em primeiro lugar. Além do mais, eles tiveram sua chance. No carro do Trovão, o professor Valerión fixava os olhos nela, cada vez que os carros passavam por uma esquina.
–Ela é valente.
–Sim. Como está sua ferida, professor?
–Foi só um pequeno corte. Mas você está pior do que eu, Alois.
O Trovão estava gravemente ferido próximo do olho esquerdo, talvez fosse um pedaço de parede que bateu nele quando estava sob fogo fechado no Setor Nove. Mas o sangue estava seco e o Trovão, guerreiro completo, fora treinado para ignorar a dor.
–Devemos tratar esse ferimento, Alois.
–Mais tarde, professor.
–Chamarei ao Dr. Blanes pelo rádio.
–Não! – disse o gigante – Estamos perto do esconderijo e devemos manter silêncio no rádio. Não se preocupe comigo.
–Como queira, Alois. Mas você deve estar sofrendo.
–Não mais do que você; com esse corte na cabeça. De momento estou muito ocupado para pensar em sofrer, professor. Isso é secundário.
*******.
Antes de meia hora chegaram ao cais e entraram na garagem dissimulada entre montes de maquinaria e sucata.
O Peão fez meia volta para voltar ao esconderijo do Tabuleiro. Liza desceu de imediato e foi ver o amigo.
–Trovão, querido, obrigada por... Céus! Vocês estão feridos!
–Não é nada, Liza, vamos entrar – disse o gigante.
Os três entraram na improvisada sala de computação, onde o jovem Darlán e Syd, o Homem das Facas os esperavam.
Trovão sentou-se, esgotado pelo cansaço e a tensão, e Liza, após entregar o disco; procurou no estojo de pronto socorro algo para aliviar a dor do amigo e para atender ao ferimento do Professor.
–Aqui não poderão atender-me. Tenho que voltar para Antártica.
–Resista, Alois. – disse Darlán, dedilhando no terminal – já estou solicitando um avião para tirar-nos deste chiqueiro!
–Será questão de uma hora no máximo – acrescentou.
–Melhor tente descobrir o código, agora – interveio Syd – já tem os dois discos e o professor aqui. Não perca tempo com Alois. Ele aguenta!
–Sim – disse Valerión – coloque os discos.
De imediato apareceram palavras intercaladas com o código, sem que Darlán as pudesse compreender.
–Falta algo, professor.
–Eu sei. A chave. Deve ser uma coisa simples. Uma palavra, por exemplo.
–Sim, mas qual?
–Verifique as letras mais utilizadas, Darlán.
–Verificando.
–Não acredito que seja difícil. Eles não são tão expertos assim, agora que estão por cima. Estão confiados em que
embruteceram o mundo nos últimos cinquenta anos, com drogas, televisão, ensino cada vez pior e ordens subliminares. Acredito que neste estado de coisas não mais estão precavendo-se tanto, como antes.
Ao cabo de alguns minutos de trabalho digital, foi aparecendo a Verdade...
*******.
Enquanto Liza injetava morfina em Trovão, sofrendo mais do que ele, os outros fixavam a vista no monitor do terminal, onde o código foi aparecendo.
–Certo, camaradas – disse o professor – o código é 666, o número da Besta do Apocalipse. Tem sentido.
–Malditos sejam – disse Darlán.
–Claro! – disse o Homem das Facas – Três vezes seis, dezoito!
–E o valor de dezoito é nove! – disse o professor – por tanto a letra que equivale à letra "A", é a nona letra do alfabeto.
–A nona letra é a letra "I", professor – disse Darlán, feliz com o achado.
–Sim, Darlán, programe um traslado a partir da letra "I".
–De imediato, professor.
–Não disse que seria simples? – disse Valerión – Eles nos subestimaram.
Nisso apareceu a primeira mensagem transcrita ao alfabeto comum.
–Aqui está, professor – disse o jovem.
–“... Encomenda recebida no dia combinado. Colocaremos o pagamento na conta na próxima semana, após os testes...."
–Maravilhoso! – disse Valerión – Agora podemos entrar no E-Mail deles, sem problemas e sem sermos detectados.
–E ler todas as ordens dos malditos – disse Darlán.
–Graças a vocês, amigos – disse Valerión emocionado – arriscaram suas vidas para isto!
–O senhor também se arriscou, professor. Deve ter lhe custado muito para conseguir os documentos para a fabricação dos foguetes atômicos.
–Não foi tão perigoso assim, Darlán. De todas maneiras demonstramos que a tirania pode ser derrotada, amigos.
Liza interrompeu:
–Trovão está perdendo sangue de novo, professor. Temos que tirá-lo daqui.
–Calma – disse Darlán – o avião deve estar chegando em minutos.
–Certo. Recolham tudo. Darlán! Tire o disco rígido e prepare a explosão e o incêndio para não deixar nada. Antes do amanhecer deveremos estar em Antártica, onde somos livres! – disse o professor.
Mais uma batalha tinha sido travada com êxito pelo Esquadrão Shock.
Seria questão de minutos até que chegasse o avião de pouso vertical que os conduziria à Antártica.
Outras batalhas se seguiriam, muita gente ainda deveria morrer.
As feridas de Alois Stülpnagel uma vez curadas, talvez voltassem a se abrir em outras batalhas, até que um dia, talvez não muito distante, não houvesse ninguém por perto e Trovão morresse, mais isso, não importava.
O que importava era a Causa.
*******.
Continua em: SUA SUPREMA INTELIGENCIA
*******
O conto ESQUADRÃO SHOCK forma parte integrante da saga inédita
Mundos Paralelos ® – Fase 1 - Volume III, Capítulo 25, Páginas 114 a 124; e pode ser encontrado no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados, sarracena.blogspot.com.br.
O volume 1 da saga pode ser comprado em:
clubedeautores.com.br/book/127206--Mundos_Paralelos_volume_1