A MALDIÇÃO DO OUTRO LADO DA VIDA – Capítulo 1

É maravilhosa a ignorância que faz os homens pensarem que são capazes de compreender a complexidade da natureza. Aqui estamos, perdidos num planeta finito que paira no espaço, tentamos aprender como as coisas funcionam, usamos o que aprendemos para construir uma vida, e nessa vida vivemos, de olhos fechados para a realidade, tentando ver apenas o que nos importa, buscando elucidar fatos que não cabem em nossas mentes limitadas.

Desisti da faculdade de filosofia no segundo, e de um tempo para cá venho tentando expandir minha consciência para provar do que há além destas tristes páginas humanas. Viajei pelo mundo atrás de peças de um quebra-cabeças que eu sequer sabia se existia.

Presenciei fenômenos naturais, visitei tribos nativas, conversei com pessoas centenárias. Notei que o conhecimento que as pessoas tinham décadas atrás era menos cientifico que o atual, tudo era muito incerto, e isso abria espaço para certezas sobrenaturais. Perceber isso me fez passar a ignorar o que a ciência já descobriu e pensar como uma mente antiga – mas isso não me deu resultados.

Demorei quase três anos para concluir que o científico e o intocável caminham juntos. Disso eu passei a tentar entender a consciência humana – a única coisa que é sobrenatural ao mesmo tempo que pode ser científica. É impossível falar de consciência sem tocar na palavra alma, conversei novamente com velhos nativos, e dessa vez tive explicações animadoras. Unindo todas as informações que obtive, de todos os lugares diferentes, no fim, todas diziam que a alma é intangível ao corpo; ela existe, porém está em nós de forma que não podemos provar.

O universo é tão grandioso que nós, ou nossa existência em si, é insignificante, somos pequenos demais para fazer alguma diferença, e ainda assim fazemos, não no universo todo, mas aqui, entre nós. Sabemos da existência das estrelas, por exemplo, mas não podemos tocá-las, não podemos ter certeza de que são como vemos e medimos, e mesmo assim sabemos que elas estão lá... acreditamos nisso. A ciência é um exercício de fé, estão paralelas o tempo todo, o que eu precisava era ver o ponto onde elas se cruzariam.

De volta em casa, certo dia, um homem tocou a campainha. Era um sujeito normal, uns quarenta anos, eu diria. Sentados no sofá, ele me disse que viera para auxiliar em minha pesquisa. No momento eu quis perguntar como ele sabia de minha pesquisa, mas só quis saber como poderia me ajudar. Ele me entregou a mochila que trazia consigo e disse que tudo ali dentro era de seu bisavô.

Havia ervas de vários tipos em pequenos vidros, mapas feitos à mão, desenhos, anotações, pedaços de jornais antigos e uma pedrinha de metal prateado sem brilho. Depois que o Sr. Scott foi embora, eu analisei tudo que ele tinha trazido, e o que mais intrigava era uma anotação que dizia exatamente o seguinte:

“O outro lado é como um reflexo estilizado de tudo que existe aqui. Todos os objetos daqui existem lá, mas feitos de um metal opaco. As pessoas são corpos de luz.

Adentrei o outro lado alguns minutos antes do sol se por; contei em meu relógio duas horas de estadia lá, mas quando voltei o sol estava no mesmo lugar. Ao conferir com outro relógio notei que haviam se passado cerca de dois minutos. O tempo no outro lado passa mais rápido.

É difícil de respirar lá, o ar tem gosto de algo queimado. O corpo parece muito mais pesado do que é, talvez a gravidade seja diferente. No tempo que fiquei lá tive a sensação de que meu corpo estava se ressecando todo, senti muita sede.

Dias depois de ter retornado, adoeci – sentia dores de cabeça, meus olhos falhavam, meus pensamentos eram quebradiços e meu corpo não obedecia minhas vontades. Vez ou outra ainda me assolam esses sintomas.

Obviamente, outro lado é permeado por algum tipo de radiação que não se propaga aqui, pois a amostra de metal que eu trouxe de lá não apresenta nenhum rastro radioativo.

Resolvi encerrar minha busca. Meu corpo e minha mente não estão preparados para degustar outra realidade. Talvez com anos de evolução os homens sejam capazes de entender a coexistência do aqui e do lá.”

As outras anotações eram basicamente complementos dessa. Os desenhos mais complexos mostravam seres humanos sobrepostos, como numa fila; e um outro desenho fazia a mesma coisa com um mapa mundi, como se demonstrasse vários mundos enfileirados. Não havia sequer uma explicação escrita dos desenhos, então tudo que pude fazer foi deduzir. Os recortes de jornais pareciam aleatórios, e sobre as ervas nada se falava.

Quando o Sr. Scott voltou, dias depois, conversamos muito sobre a obra de seu bisavô. Ele mesmo havia descoberto aquelas coisas enterradas na antiga casa da família, nem mesmo chegara a conhecer o bisavô. Ele buscou, na época, informação com seu avô, e este lhe disse que o pai era ausente, passara boa parte da vida estudando a realidade, e no fim da vida tinha ficado louco, e aos poucos perdia suas capacidades físicas, primeiro parando de se mexer, até não conseguir sequer respirar.

Finalmente perguntei ao Sr. Scott como ele tinha conhecimento de minha pesquisa, e o que a aventura de seu bisavô poderia ter a ver comigo. Apesar de muito interessante, eu não via ligação alguma com meus temas alvos. Ele disse-me que há tempos vinha procurando pessoas que continuassem o que seu ancestral havia começado, e havia se empenhado completamente nisso durante o último ano, assim me encontrara.

Expliquei ao Sr. Scott toda minha vida, minha perseguição ao intocável. Ele parecia interessado, mas não acompanhava todos os raciocínios com pleno entendimento. Ele relatou que a morte do bisavô não fora natural, alguma coisa do outro lado voltou com ele e o destruiu aos poucos, por isso queria elucidar aquilo tudo, queria saber o que era o outro lado, onde ficava, por que motivo recebia esse nome. Me dispus a ajuda-lo e ele fez o mesmo. Ele tinha muito mais contatos e informações que eu, mas era muito preso a lógica, por isso não entendia grande parte do assunto, logo, a minha parte era juntar as peças que ele encontrava.

O Sr. Scott então revelou-me que aquelas amostras de plantas nos vidros que me entregara haviam morrido todas no mesmo dia que seu bisavô, era da casa dele, como relatara seu avô. De algum modo, as plantas morreram, mas não se desfizeram, ficaram exatamente do mesmo jeito, e sem dúvidas isso tinha a ver com a misteriosa decadência do homem que visitou o outro lado.