O OUTRO ESPELHO

No inicio da segunda semana de teotlec, um vento quente sufocava o amanhecer avermelhado de Aztlán. Na janela de sua quitinete, no nonagésimo terceiro andar da arcologia esférica que ocupava sozinha um terço da periferia sul da cidade, Santiago absorvia a vista. À sua frente gigantescas pirâmides de degraus, montanhas policromas de pedras habilmente empilhadas que marcavam a paisagem há doze séculos. Mirava naquelas construções mais antigas que seu nome; elas riscavam no céu linhas intercaladas com as de modernos zigurates semi-translucidos que flutuavam sobre os persistentes cortiços de adobe do centro.

As novas construções representavam bem a nova classe de ricos, que assim como os antigos sacerdotes das pirâmides, negociavam conceitos. Seus novos inventos imaginários, entretanto, tinham seu valor simbólico facilmente convertido em ouro. Sem os impasses teológicos e morais dos antigos.

Gostava de olhar a cidade assim, de cima. Parecia-lhe especial. La embaixo nas ruas e canais, passo ante passo-remada a remada, tudo era banal e pequeno. Gostava do mundo macro, onde poderia ser um olho a observar a miudeza do mundo. O olho ligeiro do historiador. Observador crítico das contradições do vai e vem diário. Os costumes, a moda, o ritmo, a moral e a ética. Tudo formava um padrão que só se podia ver dali: da janela de sua sala. O mundo enquadrado, filtrado por uma fina camada de vidro engordurado e poeirento.

O fim da noite era cantado pelas vozes guturais dos sacerdotes, que do topo das pirâmides usavam sua língua desconhecida para lançar encantamentos por toda a ilha. O canto lentamente cedia lugar ao chamado rouco das conchas, pontuado por batidas secas de grandes toras de madeira. O sol resolvera iniciar sua caminhada.

À medida que a caneca de chocolate amargo se esvaziava e o sono se dispersava, as elucubrações estéticas e as mal formadas notações históricas davam lugar à consciência de que estava atrasado. - @!&$#%!!! Santiago praguejou ao lembrar-se da voz do contratante ao telefone, dizendo esperá-lo as oito em ponto. Começaria hoje um novo emprego e seu atraso certamente causaria má impressão. Tornou a encher a caneca com chocolate fumegante e assentou o fumo no cachimbo.

Fora indicado à Quetzalcoatl-Xolotl Ltda. por seu primo, o Paiva. A empresa nascera há pouco, de uma fusão inesperada de duas gigantes da informação. Uma representava o que havia de mais moderno em tecnologia computacional, tendo remodelado a paisagem cultural e natural de Aztlán, detinha o monopólio da transferência de cada qbit a circular o globo. A outra, Quetzalcoatl, era a mais antiga e influente empresa dessa Era. No principio do sol os sacerdotes da serpente emplumada moldaram a alma do mundo e ainda hoje são os responsáveis pelos espíritos que moram no tempo. Lado a lado os altos sacerdotes do templo de Quetzalcoatl e os executivos de altas plumas da Xolotl ofereceram dez mil corações às alturas e com o sangue de suas próprias línguas selaram a união das empresas.

Santiago imaginou a dor a qual esses supersticiosos homens se submetiam enquanto um simples documento assinado por ambas partes seria o suficiente. E a troco de que?! Abriram a machadadas o peito de milhares de pessoas objetivando uma paz de espirito ilusória, encenando uma farsa mística que há milênios nublava a percepção do real. Em nome de uma esperança, que ele cria frívola, de que em algum plano superior outros seres inteligentes estivessem observando.

Por entre as baforadas de fumaça espessa viu, no jornal, a foto que ilustrava a matéria sobre o extraordinário feito dos cientistas-músicos da Quetzalcoatl-Xolotl, uma gigantesca instalação cujo centro era uma larga avenida reta com mais de um quilometro margeada por pequenas pirâmides, miniaturas das que ele ainda podia ver da janela da sala. O destino da avenida era similar, mas noutra escala: uma grande pirâmide que era o mainframe da máquina.

Desde a ultima colheita do milho não se falava em outra coisa, mas Santiago ainda se sentiu surpreso ao ler como os ambiciosos técnicos pretendiam usar o computador mais poderoso já composto para dar vida a uma simulação completa de um universo!

A máquina replicaria o universo real em toda sua riqueza e complexidade de interações. O equilíbrio de forças minuciosamente calculado e projetado para sustentar vinte e seis dimensões virtualmente infinitas, emaranhadas em um todo coeso de possibilidades sem conta. Simularia, em um espaço não muito maior que a modesta quitinete de Santiago, infinitas porções de vazio e incontáveis estrelas que queimariam por bilhões de anos. Em torno de uma delas, a matéria dizia, uma simulação de um pequeno planeta giraria e, se tudo corresse bem, nele nasceriam simulações de toda sorte de seres animados. Esperava-se uma simulação, inclusive, do alvorecer de uma civilização humana.

A imprensa tratava o assunto com o habitual sensacionalismo, claro. Qualquer leitor mais experiente notava logo que por trás das certezas apresentadas na matéria havia apenas esperanças.

A arrogância da experiência passou despercebida a Santiago, que encarou tudo como uma extrapolação da natural necessidade de buscar o sentido da vida em sua própria replicação. Estava certo, obviamente.

Nessa altura já estava desperto o bastante para sentir certa urgência de sair. Resolvera usar sua melhor bata para contrabalancear o inconveniente atraso. O tecido amarelo de algodão era trabalhado com complexos arranjos geométricos verdes e vermelhos. A peça estava amarrotada, o que, a princípio, não o incomodou, mas ao ver-se no espelho decidiu imediatamente que era melhor gastar mais dez minutos no desamarrote. Nessas horas sentia imensa falta de uma mulher em casa, alguém que com certeza teria pensado nisso na noite anterior. Mas não era muito afeito a gente. Se mesmo as ocasionais visitas de alguns poucos amigos era suficiente para incomodá-lo, o que seria se enfiasse uma mulher definitivamente no apertado quarto? Se se obrigasse manhã após manhã ao interminável jogo de banalidades que constitui uma relação? Não. Não tinha estomago para isso. Escolheu sozinho o chapéu pontudo de ixtle verde e decidiu combiná-lo com uma sandália do mesmo material, que lhe apertava as canelas. Formando nos pés, um reflexo da cabeça.

Trancou a porta e atravessou os longos corredores de seu bloco.

Esperando um espaço para se espremer na plataforma que descia ao térreo, Santiago acabou se arrependendo de não ter deixado para fumar na barca que o levaria ao centro da ilha. Todos saiam ao mesmo tempo e as plataformas não davam conta da vazão de corpos que precisavam trabalhar.

... Duas, três plataformas passaram lotadas e só na quarta ele conseguiu se encaixar. O sistema de ar parecia ter parado de funcionar novamente, suas roupas grudavam no corpo e ele crispou os lábios pensando no estado lastimável em que iria chegar à empresa. O painel da plataforma piscava sete e vinte e cinco e a impaciência o atingiu. Teria que dar sorte e conseguir embarcar logo no píer; faltava ainda todo o caminho até o centro e o Big-Bang, afinal, estava marcado para as nove em ponto!

Desceu do barco e deu para um pórtico de pedra inesperadamente crua e gasta. As colunas esculpiam, em alto relevo, penas até a base onde uma cabeça de serpente ameaçava morder os calcanhares de qualquer desavisado. Santiago saltou assustado pra trás ao notar que à serpente de pedra gasta, fazia companhia uma de carne e escamas. Preta com listras amarelas, com pouco mais de um metro de comprimento, atacou na mesma hora a canela esquerda de Santiago que sufocou um grito de pavor. Como a memória de um sonho a serpente desapareceu e largou-o com uma careta idiota. Onde a cobra mordera, não havia marca alguma! Nem mesmo uma vermelhidão que pudesse lhe comprovar a sanidade! Apenas um leve dolorido. Que sorte? Ter enlouquecido de maneira tão repentina, ou ser atacado por uma cobra banguela!

Olhou para os lados e sentiu-se aliviado por ninguém ter presenciado a cena. Embora fosse verdade que um expectador pudesse ser prova de que fora mesmo atacado por uma serpente, seria prova também de sua fraqueza. Isso se não fosse um desses indecentes que andavam a gravar pessoas em situações vexatórias para rir-se com os amigos mais tarde. De qualquer modo, não desperdiçaria o tempo milagrosamente ganho na rápida viagem da barca matutando numa possível alucinação.

Atravessou a entrada e se viu em um amplo salão. Pequenos globos luminosos, do tamanho de uma bola de ullamaliztli, flutuavam por toda a área irradiando uma luz dourada que não fazia sombras. Por toda a superfície das quatro paredes, caprichosos glifos contavam, em baixo relevo, a história dos fundadores da empresa e dos Deuses que abençoaram o projeto. Num canto à direita, uma mulher trabalhava apressada com o cinzel na mão, finalizando a narrativa.

Vários grupos de jovens executivos usavam a sala para fumar pequenos cachimbos e incomodar qualquer infeliz que tivesse de utilizar aquela entrada com suas vozes esganiçadas e discursos antiquados. Belos rapazes e moças competiam entre si para a instalação da miséria. Eles exibiam orgulhosos seus miraculosos brinquedos brilhantes e uma dentição azulada, imitação de um novo ídolo que os jornais inventaram semana passada.

No centro do salão, um opulento totem de Tezcatlipoca vinha do teto ao chão. Feito de alabastro finamente esculpido e ornado com bem trabalhadas gemas de turquesa, rubis e jade. Parecia emitir um suave brilho branco que distorcia o ar ao redor, como uma miragem que o calor constrói no horizonte. Por um minuto torporizou Santiago.

Dirigiu-se a um balcão a esquerda, onde encontrou um garoto entrincheirado que lhe perguntou que desejava. Antes de poder responder uma voz atrás de si chamou-o:

– Você é o Santiago?! Sem poder decidir se era uma pergunta ou uma afirmação, limitou-se a inclinar a cabeça. O dono da voz atravessou claudicante o salão e estendeu-lhe energicamente a mão. Nem o imperador poderia resistir a tamanha vontade de cumprimentar.

Era um homem de meia idade, baixo e de peito largo. Apresentava o estomago alto de quem teve músculos bem desenvolvidos e parou de se exercitar ao envelhecer. A cabeça incomodamente cúbica e pequena olhava séria para todos os lados, em constante patrulha. Cobria-lhe as costas uma bonita capa vermelha de detalhes infinitos e o escudo redondo no braço esquerdo revelava ser um dos cavaleiros-águia, provavelmente aposentado por invalidez.

– Pode me chamar de Sr. Palhares, foi comigo que o Paiva falou. Eu sou seu superior aqui e antes de dizer qualquer coisa eu preciso saber se você está ciente do tamanho da responsabilidade que está assumindo nesse serviço?

– Bem, eu li so... Palhares não o deixou term... – É melhor que esteja, porque uma fortuna bem considerável está sendo investida nesse experimento e nada vai dar errado enquanto eu estiver por aqui. Venha comigo.

Uma firmeza tremula dava o tom na fala de Palhares e traía seus bem ensaiados gestos. Anos acumulados de autoafirmação finalmente recompensados por um pequeno título na hierarquia empresarial. Provavelmente usava as noites de folga para praticar a assertividade, garantindo que conseguiria extrair cada gota de autoridade que seu crachá lhe permitia. Era, porém, inteligente o bastante para nunca cruzar a linha do respeito. Ninguém com quem já trabalhou poderia dizer um ‘A’ sobre sua conduta. Um orgulho, certamente.

Saíram e deram de frente para a avenida larga que ilustrava a matéria no jornal. Obviamente era ainda mais impressionante que parecera em duas dimensões. Palhares guiou-o a uma saleta à margem e fê-lo entrar

no ambiente mais vazio que Santiago já vira. Um único globo de luz flutuava emitindo um amarelado fraco que mal tocava as paredes. Só quando ouviu o ranger da cadeira em que Palhares sentara percebeu que a sala não era completamente desmobiliada. Bem no canto havia uma mesa pequena, empilhava-se em cima meio metro de códices, objetos de pedra, pequenas telas brilhantes e mais uma centena de insignificâncias.

Por um momento Palhares apenas olhou-o com firmeza. Sentado com as pernas abertas e braços cruzados sobre o peito. Crendo ter passado tempo o bastante para causar algum desconforto, soltou um ruído agudo ao chupar os dentes da frente (uma bela performance, há de se notar) e começou:

– Você será o principal segurança da porta de acesso ao mainframe. Se qualquer coisa conseguir penetrar na sala central, a culpa será toda sua. O serviço dura dois dias; sem pausa. Esse é o tempo que durará nosso experimento. Retirou de uma gaveta um rolo de pergaminho que provavelmente plantara ali há dez minutos. – Os compositores me garantiram que essa será a duração: 48:39’59’’. Um universo inteiro será criado e chegará ao fim enquanto você segura a bexiga aqui fora – pausou ansioso para o momento em que a evidente comicidade atingisse Santiago ... Irritado continuou: – Bom, as questões técnicas você não precisa saber. Agora pegue seu crachá e vista o uniforme. Você já deveria estar no seu posto.

Palhares esperou do lado de fora da saleta enquanto Santiago trocava-se. Depois o guiou apressado pela larga avenida.

Santiago caminhou firme. No meio do caminho começou a sentir certo medo lhe soprando a nuca. Sem problema. Cria, ingenuamente, que era o medo comum de iniciar novo emprego. Era normal. Inda mais um emprego desses! Estava a participar da historia, ora. Iria ver o nascimento e a morte de um universo. Ainda que não fosse real.

Pareceu motivo para sentir medo. E sentir aquele medo foi uma descoberta. Estando ali, vendo aquela pirâmide-máquina crescer a cada passo, pensou pela primeira vez nos seres que poderiam nascer ali... Naquele software. Eles teriam certeza plena (se é que uma simulação pode ter certeza de alguma coisa) de que tudo era real. Que todas suas memorias se deram na realidade real.

À medida que se aproximavam, começou a sentir a pressão no ar. Técnicos invocavam deuses por aqui e ali. Músicos trabalhavam em telas que se erguiam como totens do chão, acertando as ultimas linhas da programação. Homens desfilavam com suas tangas, capas e plumas - alguns carregando grandes cubos de aço (Palhares informou que eram peças fundamentais na configuração da nous-sala, mas se complicou ao tentar explicar como os sacerdotes estavam configurando a noogênese no experimento), alguns fingindo preocupação olhando para o céu. Outros só desfilando mesmo, aproveitando a oportunidade de estar ali.

Embora não fosse possível prever exatamente o que ia acontecer, todos esperavam que a vida aparecesse ali, e seria fantástico se chegasse a construir uma civilização, o experimento, contudo, seria um sucesso só de manter o universo estável o suficiente para a formação de um punhado de estrelas.

Estando finalmente aos pés da grande pirâmide, puseram-se a escalar os degraus íngremes da face colorida da construção. Subiram-na até a metade e entraram por uma porta de metal ao lado da escada.

Por dentro, a construção era um labirinto de apertados corredores mal iluminados. Canos os seguiam no teto e nas paredes, por toda a extensão. Goteiras respingavam nos ombros e cabeça de Santiago ocasionalmente, contribuindo para a desmistificação da impressão que a face externa causara. Mas a mística (como todo o resto alias) é uma questão de ritmo. De repetição. O constante plink-plink marcava o contratempo de incontáveis passos. Andaram por uma eternidade. Subindo, descendo, cruzando portas, à direita, à esquerda.

Tendo perdido completamente o senso de direção, sem saber mais se estava acima ou abaixo da terra, Santiago viu-se em uma ampla sala branca. O susto acometeu seus pés, que pararam de repente. Com aquele vira-sobe-desce-vira sem sentido, tinha entrado em um estado hipnótico, que o impediu de perceber o momento em que efetivamente entrara na sala. Mas estava lá.

Era profundamente branca! Não se via as quinas; as paredes, chão e teto pareciam uma só parede coberta com uma luz branca que não se propagava nem iluminava. Uma luz que ficava pegada à superfície. Chegou a encharcar a sandália e subir, gelada, por entre os dedos de Santiago.

A parede oposta à porta por onde entrou, entretanto, era o exato oposto. Negra como o vazio. Não refletia nada. Era um buraco sem profundidade. Palhares tomou a frente e se encaminhou para ela. Parou e apontando para um pequeno furo nessa parede, um furo que mal caberia seu dedo, sorriu para Santiago. – Esse é o seu serviço!

– Essa é a porta de acesso ao mainframe. Ela não deverá ser usada nesse teste. Você só tem que ficar aqui e impedir que qualquer um se aproxime dela. Os observadores-buscadores ainda não chegaram, mas já devem estar a caminho. Um grupo deles ficará nessa sala estudando as telas de observação em tempo real. Disse apontando para a parede oposta. Em volta da porta, havia quatro grandes telas cinza. – Eles são profissionais, mas ninguém... Se aproxima... Da porta... De acesso. Jamais uma frase soara tão entediante, cada pausa continha em si o infinito. Palhares tinha mais um feito para se orgulhar.

Antes de sair largou uma caixa térmica com comida aos pés de Santiago.

Ele não ficou sozinho na sala por mais de dois minutos. Logo os observadores-buscadores começaram a chegar. Nada de especial em suas feições ou trajes. Os técnicos, Santiago pensou, são sempre seres eussociais, de carapaças idênticas. Sempre.

Eles se ajeitaram em umas poucas cadeiras dispostas e algumas poucas mesas. Deviam ser uns trinta, no máximo. Isso nessa sala. Santiago sabia que haveria outros. Em outras partes da pirâmide. Outras equipes designadas a observar outros aspectos da experiência.

Santigo se empertigou quando os outros entraram. Achou que seria bom manter-se estatua. Não olhar nos afazeres dos outros e torcer para não ter problemas com o seu.

Do alto de sua inercia notou uma senhora-carapaça se aproximando com vistas sorridentes. Uma mulher pequena, de muitos equinócios. Parou a poucos palmos dele e lhe deu um largo sorriso. Um daqueles bem honestos. – Oi, eu sou a Florinda. Sócio-buscadora. Disseram-me que você é o rapaz que vai guardar a porta, o Santiago. É isso? Limitou-se a acenar com a cabeça, mas correspondeu o sorriso; mesmo que não se pudesse dizer que Santiago era do tipo adorável, não era do seu feitio negar camaradagem.

– Muito bom! Fico feliz que você esteja guardando a porta do universo. A tentação é grande, mas seria desastroso se alguém tentasse meter-se nela agora. Arruinaria meses de trabalho, senão anos. Falava com as mãos cruzadas sobre o ventre, inclinando levemente o pescoço. Mantinha um constante sorriso e os olhos apertados, como se não tivesse colocado apenas tabaco no cachimbo de manhã.

Curioso, Santiago arriscou – Mas...

– Porque alguém iria querer usá-la? Ora, através dessa porta é possível fazer upload de uma consciência para dentro da simulação. Imagine se você pudesse viver um milhão de vidas? Alguém que se infiltrasse no programa poderia “encarnar” como um individuo de alguma espécie inteligente que evolua ai dentro. Ele estaria sujeito às leis desse universo, claro. Então teria que morrer como qualquer outro... Qualquer estrutura de matéria precisa ruir, se você quer trabalhar com o tempo isso é inevitável (e se você não quer trabalhar com o tempo, nada vai acontecer nunca, então você quer trabalhar com o tempo). Ela desenhou os parênteses com as mãos enquanto falava rápido. – Mas as peças básicas permanecem imutáveis.

Florinda retirou um pequeno objeto metálico de um bolso, mas pareceu não perceber. Continuou explicando, bondosamente, o funcionamento da máquina.

– Ele permaneceria consciente após essa “morte”. A fina linha de sua consciência se juntaria as outras incontáveis que estão passando por todo canto e ele poderia “reencarnar” simplesmente chegando a tempo em qualquer corpo vivo em formação. Mas, diferente dos nativos, ele poderia lembrar-se de tudo. Todas as outras vidas, de qual a real natureza desse universo e até o que comeu de manhã, antes de se tornar um semideus alienígena.

Ela deu um passo para a direita, ficando quase ao lado de Santiago e mais próxima da porta de acesso. Santiago, ouvindo interessado, imitou-a, voltando a ficar entre ela e o pequeno furo.

– Você pode estar imaginando que em algum momento isso ficaria sem graça, e pudesse até se tornar uma tortura... Depois de, digamos... Vinte mil encarnações? Pode ser. Quem sabe? Mas quando a morte começa a ser uma presença real na sua vida, quando você tem idade pra perceber nos ossos que ela está chegando; porque você pode percebê-la conceitualmente desde muito jovem, claro. Mas, acredite em mim, em algum momento ela deixa de ser um problema intelectual, filosófico, e você começa senti-la como alguém que está ali. Te olhando fixamente da outra mesa.... A ideia de ter mais algumas vidas fica bem atraente.

Ela continuamente virava os olhos para os outros buscadores, como se tentasse apontar os possíveis criminosos que tentariam enganar Santiago. Mas ele, encantado com solicitude daquela senhora, permanecia atento à conversa.

– Mas ainda bem que você está aqui. Nesse teste é importante que não haja contaminação das possíveis espécies nativas.

Tocou-lhe levemente o braço e se afastou ainda sorrindo, olhando para o chão. Santiago ficou com aquela sensação boa de quem acabou de ter uma conversa limpa. Que sorte! Pensou. Ter podido experienciar esse tão sofisticado fundamento da complexa interação humana. A base mais pura de toda a sociedade. Mas mal teve tempo de exibir seus bem formados trinta e dois dentes e foi, num susto, expulso da terra dos sorrisos.

Eram nove horas.

Um forte estampido fez tremer a pirâmide toda. Santiago demorou a perceber o som que parecia sair da máquina. Um som baixo e grave. Rouco. Ininterrupto. Como o zumbido de uma abelha em velocidade reduzida.

O tremor foi diminuindo, mas o ruído continuou até dissolver-se e se tornar indiferenciável do resto da realidade. As telas continuavam cinzentas... Mas a cor estava, agora, materializada. Tremulante. De súbito implodiu, surdo, para um negro vazio. Imediatamente começou a tremeluzir faíscas invisíveis. Manchas amorfas começaram a surgir e tudo estava lá, como sempre havia estado.

O universo existia.

Tudo era simultâneo, Santiago percebeu. O tempo estava formado, do inicio ao fim, no instante em que o espaço se ajeitou. O absoluto mar fotônico hiperaquecido e a ruína das memórias de infinitas anãs negras. Grandes aglomerados de matéria transcendiam o espaço-tempo e os primeiros nêutrons se estabilizavam. A primeira gigante vermelha e o ruflar das asas do ultimo inseto. (Os observadores-buscadores levavam as mãos ao ar. Sussurros de aprovação e tapinhas nas costas fizeram-se ouvir). Um fio de colágeno unindo duas células e uma decadente anã branca, sussurrando o ultimo facho de luz da existência. O primeiro beijo (Enlouqueceram! Choravam e improvisaram uma dança desengonçada em volta das mesas. Florinda voltou os olhos marejados para Santiago, sua expressão era um misto de orgulho e algum outro sentimento indefinido). A ultima morte. Um abraço. A primeira orbita. O ultimo arrebol. A caça que perde o jogo. Eu e você. Um flerte na entre aula. Um óvulo fecundado. O primeiro sonho que coloniza o espaço. Um necronauta que retorna, e não sabe o que viu.

As imagens seguiam-se despreocupadas.

A perturbação tremelicante incapacitou Santiago. Mais proveitoso teria sido contratar um homem cego para o serviço. Alguém que visse o que máquina havia produzido não teria condições de ser coisa alguma, quanto mais de vestir uniforme e proteger o patrimônio alheio!

Por outro lado, talvez fosse o plano, visto que Santiago seria incapaz de dizer se ficou ali, em mármore, por vinte minutos ou doze anos. Provável que estivesse mais grisalho (Ou quem sabe até calvo!).

Por outro lado ainda, qualquer outro mineral faria o serviço igualmente bem feito. Os observadores-buscadores, a essa altura, estavam vidrados demais para tentarem qualquer coisa que tornasse o trabalho de Santiago difícil. Trabalhavam sem deixar o fascínio morrer nos olhos.

Após uma porção insondável de tempo, a atenção de Santiago nas telas começava a vacilar. O que não era mau, já que assistir o que lá se passava não era absolutamente o motivo de seu pagamento. As imagens desconexas de incontáveis ‘vidas’ eram reproduzidas aleatoriamente nos painéis. Viu um velho magro apoiado em seu cajado, andava numa planície magicamente branca em meio a uma batalha em que só um dos lados lutava. Mulheres sujas usando peles de animais que desenhavam em cavernas escuras a luz de tochas.

Estufou o peito. Inspirou profundamente. Arqueou as costas até fazer a coluna estalar. Expirou pela boca, sonoro, tentando passar para outro o enfado que começava a sentir.

Nas telas uma criança era adorada como um deus numa terra de pirâmides lisas. Viu crepúsculos de todas as cores, por entre arvores retorcidas e em planícies abertas. Um homem ajoelhado rasgava o próprio ventre com uma faca afiada, enquanto seus companheiros assistiam impassíveis. Homens emplumados derramavam sangue em paisagens estranhamente familiares. Viu uma mulher masculinizada dando a luz em meio uma turba de rostos espantados. Um homem dedicava seus últimos minutos a olhar para o céu, enquanto chamas lhe devoravam as pernas.

Reorganizou a distribuição de peso sobre as pernas. Transferiu setenta por cento dele para a da esquerda, aliviando a direita que já começa a protestar na sandália apertada.

Estava pensando se a recorrente coceira no nariz era mesmo uma questão dérmica ou apenas uma nova ocupação que seu cérebro tinha lhe arranjado. Quando viu, na tela mais a esquerda. Seus olhos e boca formaram círculos perfeitos. O suor escorreu farto pelas têmporas e pescoço. As mãos tremiam.

...

Outro Santiago.

Viu-se em cada pequena ruga que começava a marcar o canto da boca. Viu-se alienígena em roupas estranhas e numa pose abestalhada. Viu-se com amigos que não conhecia, rindo um riso debochado que lhe tirava toda a dignidade. Reconheceu-se em um tique irrelevante de alisar os pelos das costeletas enquanto o olhar vagava. Desconheceu-se numa língua estranha e em uma gesticulação absurda. Sentiu na boca o amargor de uma bebida amarela que o outro bebia.

No tempo suspenso, temeu um encontro impossível. Num gesto automático e infantil, tentou tapar os olhos com as mãos. As pernas, geladas, fraquejaram. Talvez tenha caído sentado. A súbita compreensão atingiu-o na cara, como o tapa de um pai. O pescoço lentamente virava a cabeça para todos os cantos, maquinalmente. Os olhos olharam profundamente cada ponto, cada partícula da sala que já não poderia ser só uma sala. Viu, mas não enxergou. Chorou. Buscou no vazio olhos que pudessem lê-lo como palavra escrita.