Os colonizadores - Capitulo XIV
Longe dos olhos
Nova Camelot fora construída no que outrora era conhecido como Oceania, bem no centro do que fora o deserto Australiano. Hoje a região era um paraíso verdejante com campos de cereais e florestas de clima temperado a perder de vista. Rios borbulhantes e campinas coalhadas de animais silvestres.
A cidade estava encravada no centro deste paraíso natural. De formato circular, a cidade fora engendrada no formato de círculos concêntricos sendo que o círculo externo era composto basicamente por construções fortificadas e muros de 15 metros de altura. Muito embora a humanidade já houvesse superado as guerras internas, sempre existiam aqueles que não se encontravam satisfeitos com o “status quo”.
Os círculos subsequentes da cidade eram compostos por bairros industriais, comerciais, residenciais, áreas hospitalares e no centro da cidade, no círculo mais interno ficava a parte governamental administrativa.
No centro geométrico da cidade ficava a torre do governo planetário, composto por uma única torre de 600 andares. Toda construída em material semelhante ao mármore branco com janelas espelhadas. Coroada por uma cúpula totalmente construída em alumínio transparente de altíssima resistência, onde se encontrava a sala do presidente do planeta.
Poucas pessoas sabiam que esta cúpula era provida de sistemas de repulsão que lhe facultava uma proteção virtualmente impenetrável a quase tudo excetuando-se um bombardeio de classe planetária.
O edifício governamental que centralizava todo o controle dos sistemas unidos era conhecida de todos simplesmente pelo nome de “A TORRE”.
A presidente Edmara estava parada em frente à janela do seu escritório na cúpula olhando a floresta no horizonte. A cidade tinha um raio de 70km, mais mesmo assim A TORRE permitia uma visão plena do horizonte, bem como dos diversos círculos que compunham a cidade. Paradoxalmente, devido a sua altura não era possível ver a base da TORRE. O que levara a surgirem piadas dizendo que o governo via tudo, menos onde enfiava os pés.
A porta da sala se abriu com um leve chiado, quase imperceptível. Mas pela alienação em que a presidente se encontrava poderia ter se aberto com o som de uma turbina de nave estelar que mesmo assim ela não teria ouvido.
Edmara é alta e magérrima, cabelos castanhos e longos quase na altura da cintura, praticamente desprovida de curvas. Seus olhos eram de um castanho bem comum, entretanto guardavam um brilho que a um exame mais acurado demonstravam um certo ar maquiavélico. Entretanto beleza não era com certeza seu atributo chefe. Entretanto era uma oponente de respeito. O que seus inúmeros desafetos derrotados pelo caminho poderiam atestar.
A figura que adentrou no recinto era a antítese doa imagem da presidente. Luciene, secretária de comunicação e segurança da informação. Luciene é alta, praticamente do tamanho de Edmara, entretanto ao contrario desta, suas curvas são fartas e provocantes. Os cabelos loiros acinzentados caem pelos ombros e os olhos castanhos claros preenchem um rosto suave e delicado.
Ela pigarreia de leve, tirando a presidente de seus devaneios.
- Sim Luciene?
- Presidente recebemos a mensagem da frota via onda portadora, eles iniciaram a aproximação final do planeta.
- Ótimo. Mais alguma coisa?
Edmara sabia que a Chefe do setor de informação não subiria até a cúpula para um simples informe.
- O Almirante mandou uma mensagem cifrada, para ser entregue somente em suas mãos.
- Você já decodificou?
- Ainda não. Deixei para fazê-lo na sua presença.
Edmara deu um longo suspiro.
- Será que mordemos mais do que podemos engolir Luciene?
- Por que diz isto? O envio do Almirante para a missão foi uma jogada de gênio. Ele com certeza seria uma ameaça à sua posição na próxima eleição.
- Você acha realmente que aquele homem pode ser manipulado? Acha que se ele realmente não quisesse ir nesta missão ele teria ido?
- Mas então por que ele foi?
A presidente olhou com olhos tristes para o horizonte.
- O que você sabe do incidente em Europa?
A mudança brusca de assunto pegou Luciene de surpresa.
- Sei o que consta nos arquivos confidenciais.
- Você alguma vez se perguntou o porquê dele ter sido o único que não ficou sob controle da criatura?
- Claro, acho que todo mundo. Mas a explicação é simples, a mente dele estava em um estado de alerta total, e me parece que é um estado praticamente continuo. Os cientistas fizeram inúmeros exames e comprovaram que ele está praticamente o tempo inteiro processando o ambiente numa velocidade muito acima do normal.
- Sim, O incrível Almirante Alberto. O homem-lenda. Você sabia que ele me deu uma palestra sobre ética e moral na minha época de faculdade? Pois é, era uma coisa vê-lo falar.
- Sim, suas palestras eram muito disputadas. Eu infelizmente nunca pude ver nenhuma.
A presidente parecia distraída, mexendo de sua caneta eletrônica, fazendo riscos aleatórios em uma tela sensível ao toque que fazia o papel de tampo de sua mesa.
- Europa foi uma situação única. Sabia que o Almirante é bem mais velho do que aparenta?
Luciene estranhou mais uma vez a mudança brusca de assunto. A presidente estava estranha naquele dia, como se seus pensamentos estivessem fluindo aos trancos. Muito longe da conhecida acuidade de pensamentos que lhe era característica. Em todo caso achou melhor não comentar nada.
- Mas não somos todos senhora presidente? Com as técnicas de estética altamente avançadas de hoje ninguém é obrigado a manter uma aparência desagradável. Esteticamente falando.
Mal tinha pronunciado as palavras se arrependeu. Estava cônscia da diferença brutal entre sua aparência de modelo e a aparência pouco atrativa da presidente. Mordeu de leve o lábio e esperou o sermão sobre como a casca externa era uma cobertura irrelevante e desprovida de significado se o interior não fosse igualmente belo.
Entretanto, mais uma vez ela se surpreendeu. A presidente realmente parecia estar com outras coisas na cabeça.
- Sim, mas ele é mais velho do que isto. Ele é inclusive mais velho que o Espaçonauta Esoj. O almirante já estava por aqui muito antes da terceira guerra. Alguns, poucos, acreditam que ele precede a primeira guerra, aquela do século 20.
Luciene sentiu seu queixo cair, bater no chão e voltar ao lugar.
- Mas isto é impossível.
- Luciene você conhece o apelido dele?
- Sim. Iceberto, mas ele não gosta disto.
- Na verdade ele tem um outro apelido, em círculos bem mais restritos, ele é conhecido apenas como Gama.
- Gama?
- Na antiga religião ele diziam que Deus era o Alfa e o Ômega. Bem, diziam que Deus Criou o homem a sua imagem e semelhança, este seria o Beta. Mas o homem traiu a confiança de Deus e comeu do fruto proibido, perdendo o direito ao paraíso. Então Deus expulsou o primeiro homem e a primeira mulher do paraíso e eles povoaram a Terra.
- Sim, já conheço estas estórias. Muitas falhas de lógica e tudo mais. Eram mantidas por dogmas de fé que não permitiam as pessoas questionaram as incongruências deste conto de fadas.
- Sim, mas o importante é que existe uma lenda bem menos conhecida que diz que Deus então resolveu criar um substituo para o homem. Uma versão, digamos, mais bem-feita. Como o primeiro homem seria o Beta, ele criou ...
- O Gama !!! Isto só pode ser uma piada.
- Garanto-lhe que estou falando sério. Não sei efetivamente como ele começou a existir, esta lenda, estória, mito é tão boa quanto qualquer outra. Mas que o Almirante, o homem-lenda está aqui a muito tempo, é um fato.
- Como pode ter tanta certeza?
- Você acompanha minha carreira política Luciene.
Mais uma guinda de assunto, a cabeça de da chefe de informações já estava começando a doer.
- Sim senhora presidente. Acho que todos nos miramos na senhora como exemplo de força, perseverança, tenacidade...
- Chega, chega. Não é preciso este discurso padrão. Nem eu acredito mais nisto. Bom o fato é que só cheguei onde cheguei por força do Almirante. Ele, na época, pressionou o presidente Borghausen a se retirar para que eu, até então uma jovem e promissora administradora da colônia de Marte, assumisse a cadeira. Claro que aconteceram inúmeras reuniões, discussões, conchavos, mas ele guiou tudo com mão de ferro. E aqui estamos hoje.
Creio que você também só está onde está por pressão dele. Não me entenda mal. Sei que você é competente a toda prova.
- Sim, realmente senhora presidente- havia um ressentimento velado no tom de voz da chefe de informação- realmente foi por indicação dele que eu assumi a Secretaria de Comunicação e informação da União planetária. Mas meu curriculum nunca deixou dúvidas de minha competência.
- Eu sei minha cara. O ponto, é que, paulatinamente o Almirante montou todo o staf superior da União Planetária e creio que isto se estendeu também pela frota estelar. Não se trata de nepotismo, todas as suas escolhas são pessoas de inegável competência. Eu acredito que ele projetou esta missão a muito tempo.
- Mas por que presidente. É uma missão extremamente perigosa. Porque ele faria isto? Não a missão dos colonizadores, mas a missão dentro da missão. O confronto com as entidades que nos deixaram os casulos em Europa. Por que ele faria isto?
- Porque a missão principal Luciene não é o confronto. A missão principal são os colonizadores. Uma cortina de fumaça dentro da cortina de fumaça. E porque ninguém mais pode confrontar as entidades além dele.
- Mas ele levou Haline, AJ e Lucas. Ele arriscaria sua família?
- Ele não levou sua família, levou a melhor artilheira, o melhor piloto e o melhor médico. Se sozinho ele é formidável, que tipo de adversário você acha que eles são quando unidos? Que tipo de semente acha que eles podem plantar?
- Semente?
- Luciene, a missão não é encontrar um novo planeta para a humanidade expandir, fora do sistema solar. É encontra o berço para uma nova humanidade.
- Como assim.
Por mais que se controlasse Luciene sentiu uma pontada de desespero se insinuar em sua mente. Aquele desespero de saber que foi deixada para trás no final da excursão e que não teria com quem voltar para casa.
- Nossa sociedade está decadente, nossos valores estão perdidos. Alberto planejou a criação de uma nova humanidade. Ele selecionou os melhores fisicamente, intelectualmente e moralmente. Ele partirá para o combate com as entidades, mas não para criar um lugar para onde iremos fugir. Mas para criar um lugar onde não poderemos chegar. Um berço para uma humanidade mais pura e nobre, que realmente poderá ocupar seu lugar nas estrelas.
- Isto é impensável! Ninguém tem este direito e ninguém conseguiria arquitetar uma operação desta e passar desapercebido. A logística, a manipulação de informações... é impensável.
Luciene sentiu suas pernas fraquejarem, e mal viu quando desabou na cadeira que a presidente colocou às suas costas.
- Eu sou a chefe do setor de informações de todos os planetas unidos. Algo deste vulto nunca teria passado desapercebido por mim.
- Sinto muito minha cara. Mas assim foi.
- E o que me impediria agora de trazer esta informação à tona. Garanto que o conselho supremo não aprovou isto.
- Sim. É verdade. Mas você negaria esta chance à humanidade? Um novo começo? Uma nova aurora?
- E se eu decidisse negar?
- Eu lhe diria que já não está mais em suas mãos. Toda a informação referente, as referências, planos e organização foi armazenada nesta torre.
- E você irá me proibir o acesso a informação. Voltamos aos negros tempos de tirania e controle de informação?
- Não. – Os olhos da presidente tinha uma tristeza imensa – A informação é sua. Pelo tempo que a TORRE existir.
- Assim é melhor. Isto não pode ficar encoberto. Você sabe disto.
- Sabe por que o Almirante me escolheu para presidente Luciene.
De novo o mesmo assunto, Luciene tinha suspeitas que a presidente estava perdendo as faculdades mentais.
- Você já perguntou isto antes.
- Mas eu não lhe respondi. Ele me escolheu porque eu também acredito que é chegado o momento de a humanidade dar o passo adiante. Acredito com todas as fibras do meus ser.
Com uma calma imensa a presidente pressionou a sua caneta eletrônica. Um clique suave se ouviu.
Luciene teve um rasgo de entendimento.
Então, a TORRE de Camelot foi envolta por um brilho cegante . Segundos depois o que restava era apenas uma cratera vitrificada onde se erguia a sede do governo de todos os planetas unidos.
Nas profundezas do espaço, os colonizadores estavam agora sozinhos.