Sequestrado.
- Onde estou?
- Não te interessa, e fica quieto, estou trabalhando agora.
- Como assim? Quem é você, que lugar é esse?
- Ah, meu Deus, todos os novatos ficam incomodando no início.
- Está falando comigo? Por que novato? Aqui está escuro, não sinto meu corpo, não ouço a sua voz, apenas sinto o seu pensamento.
- Na hora certa você vai saber de tudo, agora vai dormir.
- Como assim dormir? Eu estava apenas checando os e-mails, tenho que sair agora para trabalhar...
- Há,há,há, há, isso aconteceu já faz três dias meu caro.
- Três dias? Como não me lembro de nada?
- Você estava dormindo, acontece com todos os novatos.
- Tem outros aqui comigo?
- Sim, tem muitos.
- Mas eu não sinto meu corpo, que está acontecendo, não vejo nada, eu quero sair daqui.
- Aí vai depender se vais saber te comportar. Comece ficando quieto para eu trabalhar.
- Como imaginas que vou ficar quieto se não sei o que está acontecendo comigo? Se sumi há três dias, minha esposa e meus filhos devem estar apavorados. Devem ter colocado a polícia atrás de mim, você deveria estar preocupado também.
- Cara, relaxa, nunca vão me pegar.
- Como você pode ter essa certeza?
- Eu sei o que estou fazendo, enquanto você não sabe nada do que está acontecendo.
- O que posso fazer para cooperar contigo e ter meu corpo de volta e minha liberdade?
- Ah, agora estamos nos entendendo. É muito simples, você apenas relaxa e pensa na tua vida.
- Grande coisa, sem corpo e sem ver nada só me resta pensar na minha vida que você roubou.
- Você está ficando esperto. Ah, você pode dormir aí também, só não poderá se comunicar com os outros. Vocês estão em espaços separados. Esqueça qualquer tentativa de comunicação.
- Cara, você é muito mau, estou começando a te odiar. Que fiz para que você roube a minha vida?
- Pois é, cara, você não fez nada nem por mim nem por ninguém, alguma vez já pensou nisso?
- Ah, tá, então estou me comunicando telepaticamente com um Deus que escolhe os malditos para roubar suas vidas.
- Ah, cara, cansei, você é muito medíocre, sua conversa me cansa, vai dormir e me deixa trabalhar.
- E se eu não te deixar trabalhar o que vai fazer?
- Hummmmm, pergunta errada. Você tem certeza que quer a verdade?
- Claro, não tenho um corpo, não sei da minha família, o que posso perder?
- Bom, depois não diz que não te avisei, se você não calar a boca agora eu te mando para a lixeira do computador.
- Não, não faça isso, enquanto estiver aqui pensando posso ter uma esperança de recuperar minha vida. Vou ficar quieto.
- Agora você está entendendo a minha língua. Cale a boca e aguarde novas ordens.
Quando se faz o silêncio, Jorge percebe que o infeliz está pensando na sua vida, obediente.
Melhor assim, agora pode se concentrar novamente em seu trabalho.
Esse último que capturara, Pedro era o nome da criatura, fora o que mais dera trabalho.
Responsável ao estremo, estava no seu note lendo a correspondência antes de sair para trabalhar, terno e gravata, barba feita, concentrava-se em checar e-mails, watts, MSN e todas as redes sociais que o mantinham atualizado para melhorar seu desempenho no seu empreguinho de merda.
Ah, esses burguesinhos chatos e metidos a malandros, não sabem nada da vida, pensa enquanto acende um cigarro importado.
Ainda não sabe o destino do novato, mas entre tantos geniais que mantinha em sua mente, faltava um medíocre para dar mais realismo ao seu projeto, afinal tinha capturado um legítimo representante do povo, o homem de família, um branco classe média, com algumas dívidas, mas em dia com a receita federal.
Ao pensar nisso, Jorge não reprime uma gargalhada, chega a se afogar entre uma baforada e outra do cigarro, o que provoca um acesso de tosse.
Nesse momento, sente um quase pensar do idiota que retém em sua mente, mas logo volta o silêncio.
Teme que o pânico do novato bloqueie suas ideias, obrigando-o a deletá-lo para a lixeira, pois que ele precisa de suas recordações. Tal parasita alimenta-se de outras mentes para manter a sua viva.
Não sabe como perdera sua memória. Recorda apenas que um dia acordara sozinho em uma cama de hotel, nu, recordando apenas todo o seu conhecimento formal, faculdade, sua atividade como professor, programador de computador, seus conhecimentos de informática, matemática e física quântica.
Sentia-se uma máquina.
Onde os sentimentos? Tivera uma família? Observava casais com filhos na rua e se surpreendia com a sua falta de emoções naquele momento.
Buscara terapia, até frequentara algumas religiões buscando a si mesmo, e nada. Apenas um passado em branco e muitos conhecimentos formais. Todos os estudos acumulados e experiência profissional estavam intactos, mas sozinho, em um hotel, em uma cidade estranha, não conseguia recordar sequer onde vivia.
Teve que mentir muito e improvisar para recomeçar nova vida, candidatar-se a vaga de professor com os documentos falsos que conseguira.
Sim, acordara nu e sem memória nem documentos.
Um desespero que se renovava a cada despertar, pois tinha um novo dia de interações de trabalho, mas nada de concreto afetivamente para recordar.
Não conseguiu formar uma nova memória afetiva, apenas cultivava curiosidades sobre seu passado.
Foi então que resolveu desenvolver um chip que implantou em seu cérebro e com o qual conectou sua mente ao seu computador, depois a outros, e muitos outros. Atualmente já perdera a noção de quantos computadores guardavam partes de sua mente.
Talvez tivesse conseguido estar em todo o mundo, como um vírus maldito.
Depois começou a penetrar na mente dos usuários dos computadores onde estava hospedado, e através do computador, capturava estas mentes para a sua, mantendo-os prisioneiros.
Os corpos provavelmente seriam encontrados vivos, com os sinais vitais, mas sem sinais de vida aparente, não imagina como a ciência desvendaria esse mistério.
Era através da memória afetiva de cada hospedeiro que começava a reconhecer as emoções humanas, todavia continua sem lembrar as suas.
Sabia o nome de cada familiar de cada um.
Aproveitava esse conhecimento para dar mais humanidade no seu trabalho e nas aulas.
Inventara um falso passado, esposa que morreu precocemente, sem filhos, sem pais vivos.
Levanta-se, e estira os braços de pura exaustão. Precisa dormir. Quando dorme seus hóspedes podem pensar à vontade e até se comunicarem, mas nenhum sabe disso.
E teriam medo de tentar ele sabe, sim, ele os tem todos em suas mãos.
Deita-se com a roupa do corpo, tendo o cuidado de tirar apenas o sapato.
O sono vem de imediato, pois capturar Pedro fora tarefa complicada e extenuante.
No exato instante em que percebe um silêncio diferente, Pedro imagina que Jorge deve estar dormindo.
Resolve testar, pois sabe que sua situação é desesperadora, e para tentar uma saída terá que correr riscos.
- Olá, podemos conversar?
Nenhuma resposta.
- Você está me ouvindo?
Nada.
Pedro comemora intimamente. Vai começar por quebrar a regra principal, e consegue locomover-se mentalmente em uma zona escura, silenciosa e com raros clarões. Assim continua sua jornada perguntando:
- Tem alguém aí? Às vezes sente uma energia brotar naquele vazio sem ecos, aí insiste na pergunta, mas para sua decepção ninguém responde. Medo, conclui desanimado. Todavia continua a busca. Sem um corpo para cansar, imagina que terá toda a noite para buscar um aliado, ou mais.
De repente, percebe um pensamento submisso:
- Oi, estou aqui ao seu lado.
- Quem é você? Pergunta Pedro.
- Jennifer, responde com o pensamento quase sussurrado. Acho melhor você ficar quieto, ela completa, não podemos nos comunicar.
- Eu sei, responde Pedro, mas descobri que ele está dormindo e não nos ouve.
- Mas como é que estou aqui há tanto tempo e não descobri isso? Pergunta a jovem.
- Medo, responde Pedro. Não podemos nos deixar vencer pelo medo.
- Agora é tarde, já perdi meu corpo.
- Mas podemos nos unir e achar uma maneira de acabar com ele.
- Já pensei nisso diz a moça, mas se ele morrer morreremos junto, estamos presos aqui dentro.
- Ou livres, não temos como saber a não ser tentando. Tenho apenas 35 anos, diz Pedro, não quero viver prisioneiro na mente de um louco qualquer.
Tenho 25, estava fazendo faculdade e trabalhando, era uma jovem feliz e cheia de planos diz Jennifer inconformada. E agora aqui estou, um pensamento solitário dentro de uma mente insana.
Agora você não está mais só, diz Pedro, vamos fazer uma parceria e buscar mais gente. Unidos seremos mais fortes. Podemos vencer essa luta. Acredito nisso.
Jennifer aceita a proposta e toda a noite é dedicada a formar um grupo de resistência.
Quando Pedro percebe que Jorge vai acordar, sinaliza para os companheiros que façam silêncio, até porque o plano de libertação já está traçado, basta conseguir um momento apropriado.
Jorge acorda e fica irritado por ter dormido com as roupas. Toma um banho rápido, um café forte e sai para o trabalho na faculdade onde é professor.
Gostaria de não precisar trabalhar para ter mais tempo de buscar seu passado, mas tem que se manter.
Por esse motivo muitas vezes dorme tarde nas suas buscas pela internet e ouvindo seus hóspedes e suas memórias afetivas, todavia nada acontece.
Está cansado, muito cansado. Inveja os colegas que têm uma família e uma vida organizada.
Finalmente volta para casa e depois das organizações necessárias e do jantar, senta-se no computador buscando pistas ou novas vítimas, enquanto ouve trechos das memórias dos seus prisioneiros.
Está no seu limite. Assim não vou descobrir nada, pensa ele desesperado.
Pela primeira vez sai à rua sem destino levando apenas as chaves na mão.
Cai uma garoa que ilumina o asfalto com as luzes da cidade.
Alheio à garoa que se mistura às suas lágrimas, continua caminhando buscando não sabe o que.
Jorge não imagina que na sua mente algo de muito inusitado está por acontecer.
O plano de Pedro já está pronto.
Na noite anterior fizeram um balanço dos sequestrados na mente insana. Conta com a ajuda de mais de cem companheiros que estão dispostos a matar ou morrer para acabar com o cativeiro imposto.
São pessoas de ambos os sexos e de idades diversas. Em sua maioria contam com nível superior e gostavam muito de navegar na net e fazer pesquisas no computador.
Foi um deles, Alex, que começou a pesquisar no computador nas bibliotecas online, edições antigas de jornais.
Já que todos estavam na mente de Jorge e ao mesmo tempo conectados a vários computadores, a tarefa foi relativamente fácil.
Alex descobriu então que há cinco anos, Jorge tinha mulher e um filho de 10 anos, quando certo dia, teve um ataque de fúria e assassinou os dois. Já vinha apresentando sinais de psicose, mas nunca procurou tratamento apesar da insistência da esposa.
Após o crime, mudou-se de cidade, e hospedou-se no hotel barato de beira de estrada. Foi quando perdeu a memória, não suportou a culpa que o atormentava dia e noite.
Foi dado pela polícia como suspeito do crime, mas como permaneceu desaparecido as buscas continuavam.
Pedro ouve os pensamentos de Jorge e sabe que chegou a hora.
- Jorge, você está me ouvindo?
- Cala a boca idiota, perdeu a noção do perigo?
- Não, Jorge, você que se engana, nunca estive tão certo do que vou fazer.
- Você quer que te mande para a lixeira?
- Isso não me assusta mais, cara. Esqueceu que estás longe de qualquer computador?
- Aí é que você se engana, volto logo para casa e te deleto.
- Não vai dar tempo.
- Como assim? Você está me desafiando?
- Chegou a tua hora idiota, hoje você vai se foder bonitinho.
- Há, há, há, você só pode estar blefando!
Nesse exato momento mais de cem pensamentos elevam-se na mente de Jorge, causando um burburinho enlouquecedor.
- CALEM A BOCA, IDIOTAS!
O barulho aumenta. Só pode distinguir palavrões e pensamentos de ódio, até que em conjunto, um coro vibra:
- Chegou a tua hora. Aproveita aquele prédio alto e te joga. De cabeça. De cabeça... cabeça... ca... be... ça... ça...
Parecia um eco macabro a martelar cada milímetro do cérebro exausto.
Jorge não suporta mais. Leva as mãos à cabeça e tenta gritar, mas percebe que perdeu a voz. O barulho no cérebro é ensurdecedor, não recorda de ter sentido algo assim na sua vida.
Na rua quase deserta, não percebe um homem solitário que caminha atrás dele calmamente, mãos no bolso.
Magro e de cabelos brancos, aparenta uns 50 anos.
Desesperado e fora de si, qual um robô, Jorge caminha em direção ao prédio quase abandonado, decadente.
O homem viu o estranho esquisito entrar no prédio quase abandonado. Dá de ombros, e continua caminhando indiferente.
Alguns passos adiante ouve o estrondo na calçada e se vira. Trêmulo, usa o celular para chamar a ambulância e vai para casa. Não ousa chegar perto.
Jorge está estendido na calçada, cérebro exposto.
Os sequestrados buscam seus lares e se instalam em seus corpos preservados. Não houve morte cerebral, pois os cérebros estavam intactos e todas as funções físicas preservadas.
Pedro está na sua cama e a casa está vazia no momento.
Sabe que a esposa está trabalhando e os filhos na escola.
Não sabe ainda como justificar o tempo que passou sem comparecer ao trabalho, nem como vai contar para a família o que aconteceu, mas se conforta ao pensar nos companheiros de cativeiro que viveram o mesmo pesadelo e sabe que a polícia e a imprensa devem estar investigando.
Mas isso é algo para resolver depois.
Tem sua vida de volta e isso é tudo.
Jeanne Geyer