A TIGRESA

Jápeto, 11 de setembro de 2017.

A Tigresa.

Após a partida da Millennium, Alan Claude foi a Jápeto para morar um tempo com os sirianos. Pretendia aprender o idioma e costumes dos xawareks, raça de felinos guerreiros, violentos e honrados.

Desde que começaram a trabalhar com os humanos, os tigres pareciam estar mais felizes. Retomaram a construção das suas navezinhas de caça, prosseguiram com seus treinamentos militares e aceitaram o astronauta brasileiro como um igual, visto suas conhecidas façanhas.

No interior das montanhas, eles tinham seu quartel geral; e nos subterrâneos mais profundos e protegidos; sua cidade, suas fêmeas e crias.

Em sua maior parte, a fortaleza entrava na montanha, como a Cidadela de Rhea. Perto da enorme eclusa de entrada, Alan viu navezinhas de guerra; pousadas em campo aberto contra o céu negro.

Nos barrancos e elevações havia sentinelas enfiados em armaduras de combate sem se perturbarem com a chatice do serviço.

Alan Claude caminhou por longos túneis pressurizados onde suas botas blindadas ressoavam graças à pesada gravitação artificial de 1,5G, e as vozes roucas dos tigres ecoavam de um aposento a outro.

A construção seguira o método padronizado de escavação com maciço uso de maçaricos de plasma para derreter a rocha viva, dando-lhe a forma desejada e depois a instalação robótica dos mecanismos necessários, como fizeram em Rhea. Lá foi uma obra prima de beleza e conforto, seguindo os planos dos terrestres.

Mas aqui o desenho da sua própria base era simples, mais tortuoso e menos esmerado do que qualquer humano ou marciano gostaria.

Parecia evidente que alguns milhões de anos atrás, os ancestrais dos xawareks eram cruéis felinos predadores que habitavam em cavernas e caçavam em bandos.

Alan Claude caminhou por corredores tortuosos; atravessou salas enormes que pareciam cavernas e tentou imaginar como seria em verdade o planeta que dera origem a essa raça tão poderosa e resistente.

Os médicos terrestres dissecaram cadáveres de xawareks mortos em batalha e descobriram que os órgãos internos eram superiores aos dos humanos; coração e pulmões resistentes, fígado de alta capacidade, visão, ouvido e olfato muito mais desenvolvidos que os dos humanos; e músculos poderosos.

A luz branca feria-lhe os olhos, forçando-o usar óculos polarizados. Mesmo assim podia observar detalhes; um veículo com material a ser embarcado para a doca espacial, conduzido por um guerreiro zangado; uma sala de estar cheia de tigres nus de pelo curtíssimo, listrado de amarelo, vermelho ou preto espalhados à vontade na maior camaradagem, em meio a rosnados e brigas; alguns jogavam dados piramidais e apostavam fichas de pedra branca, cinza e preta; outros, numa luta de treinamento empregando dentes e unhas; outros numa prova de coragem, colocando-se cada qual a seu turno contra a parede, enquanto os camaradas atiravam pavorosos machados.

Viu um templo iluminado com velas, onde um lutador cheio de cicatrizes,

ajoelhara-se em meditação perante um ídolo felinóide; viu um refeitório onde soldados abaixados em tatames, comiam carne crua e rosnavam uma cantoria guerreira em coro com uma jovem fêmea nua, de belas pernas e pelo listrado avermelhado e preto; que dançava na maior desenvoltura sobre uma mesa longa ao som de tambores.

Alan Claude ficou fascinado pela beleza da fêmea alienígena, da perfeita forma feminina coberta de pelo finíssimo e curto, atraente e sensual. Seus seios eram tão belos como os das fêmeas humanas. Alan imaginou como seria fazer amor com ela.

Depois soube que se tratava de uma guerreira qualificada da casta superior, uma artilheira chefe táctica do espaço: Tikal Henna, Baharnum de Xel Amarna.

*******.

Alan Claude fortaleceu-se na terrível luta corporal, aprendeu a lutar com

estranhas facas, espadas, machados e armas de energia phaser. Até o fim do ano, já ostentava numerosas cicatrizes por todo o corpo. Seus mestres eram severos e cruéis.

O treinamento xawarek era duro o suficiente como para deixá-lo extenuado ao final de cada dia de 28 horas pelo calendário padrão do mundo deles o planeta Amaru Xel, ou Sírio 4.

Em compensação tinha outras 28 horas de período noturno para reunir-se, após jantar, numa roda de guerreiros contando histórias antes de dormir.

Alan já dominava a língua xawarek o suficiente como para saber o quê os sirianos pensavam dele, das suas lutas com armas e principalmente dos treinos de voo nas navezinhas de caça triangulares, onde o experimentado piloto antártico brasileiro mais se destacava.

Ele passara todas as provações com honra.

Alan e Tikal Henna entenderam-se finalmente.

Nascera um afeto entre ambos após muitas aventuras de treinamento de pilotagem e as aulas de espanhol, língua padrão antártica. Alan mandara modificar sua patrulheira AR-1 com especificações sirianas e com a sua amiga a testara entre as luas de Saturno em inúmeras missões de exploração e simulações de combate.

Tikal Henna conhecia truques de pilotagem que compartilhou com seu amigo humano. Este ganhara sua confiança com sua coragem e talento, ao ponto ser considerado como um xawarek.

Tikal Henna era ótima lutadora com ou sem armas. Um dia ela o desafiou para uma luta corporal sem armas, completamente nus, como era o costume nas rodas de guerreiros; e ela o derrotara.

Alan já derrotara guerreiros machos, mais fortes do que ele, em luta corporal. Por isso sentira-se humilhado e pedira a revanche.

–Não usou tudo o que sabe, coronel – disse a felina no intervalo – foi divertido para amaciar os músculos, mas agora chega de brincar e vamos lutar de verdade.

Os outros guerreiros não caçoaram dele. Muitos já tinham sido derrotados por Alan e tinham experiência suficiente para saber que ele contivera seus golpes.

–Como aquecimento foi uma boa brincadeira entre amigos – disse o Mestre de Lutas – mas agora vão treinar de verdade, não se contenha, bata forte nela com mãos, cotovelos e pés, bata forte na cabeça para ela ficar fora de combate. Derrube-a rápido no chão e não a deixe levantar, senão ela pode vencê-lo outra vez.

–É minha amiga e não quero machucá-la – disse Alan, inocentemente – nós não temos por hábito lutar com fêmeas.

–Então você perderá de novo e desta vez será ferido. Ela é mais alta e mais forte que você. Esqueça seus costumes humanos. Suas fêmeas devem ser fracas. As nossas aprendem a lutar logo que são desmamadas. Um guerreiro não deve ter pena do inimigo, ainda que seja uma fêmea. Acha que ela não percebeu que você estava se contendo? Ela o desafiou porque já viu você vencer vários guerreiros e também o viu perder com honra para os melhores. Lute para valer, não a insulte poupando-a, senão ela o matará, ou pior ainda: perderá o respeito por você.

Alan não disse mais nada. Tentou não pensar nela como uma fêmea alienígena maravilhosamente bela, da qual gostava cada vez mais.

O sinal de luta foi dado e eles entraram na roda.

Ela tomou a iniciativa, lançando-se sobre ele com violência como uma tigresa sobre uma presa. Alan a esperou na posição do tigre, uma das modalidades de kung-fu, aprendidas com seu protegido tibetano Lobsang Dondup.

Ele a esquivou, deslizando para a esquerda e aplicando um forte golpe de canto da mão direita no pescoço do lado direito dela, que esperava o ataque pela esquerda.

Ela caiu de pé como os gatos e contra-atacou com o pé direito, que passou a milímetros do queixo do homem, que o pegou e o torceu. A tigresa siriana girou no ar, acompanhando a torção para não quebrar a perna e caiu no chão com as mãos; soltando o pé com outra torção.

Alan tomou a iniciativa e lançou-se sobre ela, que girou para a esquerda e ficou de pé em um instante, enquanto Alan girou para o lado contrário para ficar de pé antes do próximo ataque.

Ela pulou de frente, abraçando-o e cravando-lhe as unhas nas costas.

Ele aplicou um golpe duplo onde deveriam estar suas orelhas, mas estavam mais para cima e ela não sentiu nada. Ela enfiou o joelho na virilha nua dele, que gritou de dor sem poder se dobrar para frente, como seria o ato reflexo. Então ele deu-lhe uma cabeçada na testa e ela afrouxou as garras, deixando oito rasgões vermelhos nas costas de Alan, que lhe deu um soco de direita no queixo e ela caiu para trás, chiando.

Desesperado pela joelhada nos genitais nus, Alan perdeu frações de segundo tentando ignorar a dor, o que deu tempo a ela para ficar de pé e se posicionar para atacar.

Mas o homem reuniu suas forças, ignorou a dor e a gravitação artificial 1,5G; e ficou na posição da serpente para repeli-la, o que daria tempo para a dor dos testículos passar.

Ela percebeu que tinha causado dano e pretendeu aproveitar a vantagem.

Os genitais dos tigres machos eram menores que os dos humanos e estavam protegidos por espessos tufos de pelo.

Tikal Henna lançou um pontapé nos genitais do homem, certa de vencer, mas Alan girou para a esquerda e soltou com força o cotovelo direito no rosto da tigresa, que parou em seco e caiu desmaiada no tatame, ficando imóvel.

–Fim do treino – disse o Mestre de Lutas – o humano venceu.

Os tigres grunhiram unânimes; aprovando a luta honrada. Alan, com o rosto e as costas sangrando; e os genitais quase esmagados; ficou ajoelhado de dor.

–Como ela está? – perguntou, assim que recuperou a fala.

–Acordará logo – disse o Mestre de Lutas mostrando os dentes afiados – você a honrou lutando bravamente. Ela não esquecerá disso.

–Espero que não queira uma revanche. Ela quase me derrotou.

–Ela quase venceu – disse o Mestre de Lutas – e tem direito à revanche pelas regras de combate se achar que a luta não foi justa. Mas ela não fará isso.

Alguém jogou água no rosto ensanguentado de Tikal Henna. Ela acordou

desnorteada e ficou sentada no chão com a cabeça girando. Alan aproximou-se.

–Como você está?

–Já estive melhor.

–Você lutou bem, Henna. Cheguei a pensar que venceria.

–Mas você lutou melhor. Estou honrada, coronel.

–Então... Continuamos amigos?

–Somos mais do que amigos! Você me honrou com seu sangue, coronel.

–Pegue minha mão, Henna. Ajudo você a se levantar, se isso não a ofende.

–Ofender? Isso me honra ainda mais.

Alan ajudou a tigresa a levantar-se, sob grunhidos de aprovação dos guerreiros, que abriram passo para que outra dupla de lutadores entrasse na roda de lutas e esta se fechou em torno deles.

Ambos foram para a sala de banhos, onde se lavaram num jato de água fria; logo uma fêmea idosa costurou habilmente seus ferimentos e aplicou um creme de cor suspeita que secou os feios arranhões das costas do humano.

Alan colocou um pano empapado em água fria no meio das pernas para aliviar a dor dos testículos.

–Dói tanto assim? – perguntou Henna.

–Sim. Outra joelhada dessas e me transforma em fêmea.

O rosto dela iluminou-se num sorriso ao estilo dos tigres; mostrando as presas afiadas. A outra fêmea, divertida, grunhiu e disse:

–Sente-se na banheira, guerreiro, a água fria vai lhe fazer bem. Nossos machos têm o lingam menor e bem protegido; não exposto e sacolejando como o de vocês.

A água gelada o fez sentir-se melhor. Henna enfiou a cabeça na água.

–Ainda está com dor? Consta-me que vocês recuperam-se mais rápido do que nós, Henna. Sinto muito ter batido tão forte. Era o único jeito de derrotá-la.

–Não sinta, coronel. Você foi o único macho que me derrotou até agora. Luto com fêmeas desde sempre, é uma tradição. Com machos esta foi a quinta vez.

–Todas as lutas foram treinamento?

–Machos querendo acasalar. Venci todos e por isso nunca acasalei.

–Então ainda deverá perder uma luta para... Para acasalar...?

–Hoje perdi para você. Quem me quiser, deverá lhe desafiar e lhe derrotar.

–Mas... Não sou de seu povo, Henna – disse ele, estremecendo.

–Eu sou uma fêmea honrada e respeito a tradição. Venceu-me com honra; sou sua por direito; devo acasalar com você... A não ser que você não me queira, coronel.

*******.

Taônia, 20 de dezembro de 2017.

Enquanto em Japeto, o coronel Alan Claude Sarrazin, agora transformado num completo guerreiro xawarek, tentava entender o fato consumado de que havia ganhado uma bela esposa siriana sem querer; Aldo retornava ao palácio imperial, chamado com urgência pelo general Byzar.

–Qual é o problema, general?

–Suer Dut.

–Outra vez essa praga...

–Ameaçou matar minha sobrinha se você não aparecesse. Afortunadamente, a noticia não foi publicada, graças à senhorita Uio, que nos avisou a tempo. Ele percebeu nossa manobra e mudou de alvo. Ontem ele matou a família imperial com um carro-bomba. O imperador e Alana escaparam.

–Deuses! Ele deve estar bem abalado...

–Está sim. Agora a criança é a única herdeira do trono.

–Correrá perigo se fica aqui. Posso levá-la para a Cidadela, onde...

–Pensamos nisso, capitão, mas o perigo aqui embaixo permaneceria.

–O quê quer que eu faça?

–Preciso de sua ajuda e sua tecnologia, capitão. Não pediria isso se achasse que ainda havia alguma forma de deter o canalha; mas confesso minha impotência para solucionar o problema.

–Conte comigo, general.

–Agradeço e conto, sim, capitão. O rebelde parece estar obcecado com você, quer matá-lo de qualquer forma. Isso pode deixá-lo descuidado.

–Aproveitarei isso. Eu também tenho contas a acertar com ele, general. Vou me expor em Taônia por alguns dias e ele vai aparecer para me matar. Quero minha visita oficial anunciada com antecedência, virei a apresentar o primeiro, digamos, embaixador xawarek de boa vontade em Taônia. Já é hora de que vocês e eles acertem suas diferenças de uma vez por todas.

–Isso é prudente?

–O imperador me disse há tempos que queria trazer os xawareks a paz do Império; você estava presente, general; eu respondi que de momento era impossível. Mas agora a situação está para mudar e Tao precisa se recuperar da perda, com um grande acontecimento. O coronel Sarrazin está providenciando isso na lua deles.

–Como isso pode ajudar?

–Os sirianos são guerreiros terríveis. Aliaram-se com os Yord por necessidade, mas hoje os desprezam porque não têm honra. Eles me apreciam porque cumpri todas as promessas que fiz a eles. Tornaram-se aliados valiosos.

–Tempos atrás você os matava.

–Sim, para defender vocês. Mas estou arrependido. Não eram meus inimigos, eram seres espaciais como eu. Estavam fazendo tudo para voltar ao seu mundo; a briga com vocês foi culpa de vocês mesmos, que...

–Sim, já sei. Isso nos envergonha há gerações.

–Esta é uma hora tão boa como qualquer outra para reparar o dano. Fale disso com o Imperador, assim que ele se recuperar da tragédia e diga a ele que desta vez vou colocar as mãos em Suer Dut e vou entregá-lo a ele para que o esfole, sangre, degole, ou queime os pés dele.

–É provável que seja executado com a roda. Os ossos são quebrados com...

–Se quiser – interrompeu Aldo – na minha base de dados deve haver uma lista de torturas terríveis do meu planeta, aplicáveis a um sujeito como Suer Dut. Terei prazer em ajudar, general. Ele me deve, fui torturado por ele.

–Coloque seu plano em ação, capitão, deixe o imperador comigo, esta não é uma boa hora para você falar com ele.

–Entendo, não se preocupe.

Aldo despediu-se e saiu à rua nevada. Um carro esperava para conduzi-lo ao novo astroporto. Chegara incógnito e assim partiria para a Cidadela, mas antes passou em Japeto.

Após ser recebido pelos mestres de clã das castas superiores, foi conduzido ao alojamento de descanso do Salão de Lutas; duas horas após a luta do coronel com a siriana.

Alan já estava limpo e vestido como um guerreiro xawarek; mas ainda confuso; não conseguia digerir a nova situação que a vitória honrosa lhe trouxe...

*******.

–Você está horrível, coronel.

–Eu... Tive uma luta corporal de treinamento.

–Pelos hematomas e o sangue nas ataduras, imagino que perdeu.

–Pior é que ganhei, capitão.

–Pior?

–Seria longo explicar as implicações da minha honrosa vitória, capitão; assim que melhor me diga a razão da sua visita ao covil dos tigres.

–Preciso construir as relações entre os sirianos e taonianos, coronel; e você vai usar toda sua influencia entre estes seres para me ajudar. Deverei ir a Taônia nestes dias, com toda pompa diplomática, levando o primeiro embaixador de boa vontade, ou emissário; ou como seja que os sirianos o definam, para encontrar-se com o imperador e dar os pêsames pela morte da família imperial num atentado a bomba; provocado por aquele verme do Suer Dut.

–Não diga! – Alan ficou pasmo e esqueceu a dor dos ferimentos.

Aldo contou os acontecimentos, a conversa reservada com o general Byzar, o plano elaborado às pressas na vinda e concluiu:

–A culpa dessas mortes foi minha, Alan. Eu devia ter me ocupado de caçar esse maldito antes de qualquer coisa.

–Ninguém tem culpa, Aldo, apenas Suer Dut – replicou Alan – vou ver quem entre os mestres de clã poderia ser o tal emissário.

–Ninguém melhor do que o capitão Kern Mokvo – disse uma voz feminina em espanhol na porta do alojamento.

–Henna...! Entre, por favor – disse Alan meio sem jeito.

–Desculpem senhores – disse ela, entrando vestida de guerreira – não costumo ouvir a conversa dos outros. Alan... Vim buscar você e seu convidado para a refeição da noite e sem querer ouvi mencionar umas mortes e um emissário.

–Está desculpada, senhora Henna – disse Aldo.

–Senhorita ainda, mas o serei por pouco tempo, capitão. Vou ajudar no que puder. E Alan precisa aprender que meu nome completo é Tikal Henna; e não simplesmente Henna ou Tikal como ele costuma me chamar.

–E qual é a diferença? – perguntou Aldo.

–Tikal sem Henna é um nome masculino, capitão Aldo. Parece mentira que o coronel Alan, morando conosco há tantos períodos, ainda não aprendeu a falar nosso idioma corretamente.

–Juro que não sabia – disse Alan.

–Sei disso – disse ela, mostrando as presas de forma encantadora.

–Por favor, Tikal Henna – disse Aldo – gostaria de sua ajuda, sim. O que pretendo fazer interessa a todos os xawareks. É o momento de fazer a paz com os taonianos e vocês precisam de outros aliados além de nós. Conheço sua história, vocês passaram milhares de ciclos sozinhos, num meio hostil, sem ninguém que os ajudasse.

–É verdade – disse ela – estivemos sozinhos e quando encontramos alguém, foram os Yord, que só queriam aproveitar-se da nossa força e tecnologia.

–Por isso mesmo está na hora de fazer novos amigos. Eu sou seu amigo, apesar de que antes os combati, porque não os entendia. Mas agora os aprecio, e a prova está em que trabalhamos juntos construindo duas naves estelares; uma para vocês voltarem para casa e a outra para que nós, finalmente, possamos conhecer as estrelas.

–Vão conseguir – disse ela com o rosto iluminado.

–Quero que você me ajude a conseguir um emissário para fazer a paz com os taonianos, eu estou fazendo tudo o que posso para que eles não tenham medo nem ódio de vocês; acredite em mim.

–O capitão Mokvo é o emissário ideal, capitão Aldo – disse ela, com os olhos amarelos brilhando – agora ele está feliz com a nossa nave quase terminada, graças ao material que vocês compraram em Taônia para nós.

–Ele aceitará? Preciso um grupo grande de guerreiros para me acompanharem, já que haverá a possibilidade de um atentado por parte de Suer Dut.

–Aceitará, capitão. Vocês são os primeiros amigos que nos ajudaram de

verdade para que possamos voltar para casa – disse a siriana fazendo um gesto a uma fêmea que estava do lado de fora do alojamento. Em seguida sentou-se frente à mesa onde Aldo e Alan conversavam.

–Mandei trazer comida, capitão. É melhor comer e conversar aqui; o refeitório é muito barulhento – disse a guerreira – Agora me conte tudo.

–É simples, o rebelde me odeia e quer me matar. Vou me expor a ele, para que me encontre em seguida e me ataque. Nossa chegada já está sendo noticiada com estardalhaço, porque eu quero que ele saiba a hora exata em que vamos chegar. Eu preciso aparecer bastante e estarei indefeso, a não ser por um localizador por satélite sob a pele e algumas armas escondidas na roupa. Os taonianos são espertos, mas não tanto como nós. Temos recursos que eles não conhecem. Nós ensinamos algumas coisas novas a eles, mas não tudo o que sabemos.

–Sábia medida – disse ela – boa estratégia.

–Nós não somos tão honrados como vocês – acrescentou Alan Claude – somos mais bem trapaceiros e truculentos.

–Você não é assim, coronel – disse ela, com olhar doce.

–Não me conheceu em outras batalhas. Mas prossiga, capitão.

–Talvez Suer Dut não usará bombas, como usou para matar a família imperial, talvez ele queira me capturar vivo para me torturar, como já fez antes.

–Vai permitir que o capturem? – disse a siriana com pelo e orelhas em pé.

–Vou deixar que me capturem. Não posso confiar em nenhum taoniano e meu pessoal terrestre não tem a capacidade necessária para esse tipo de caçada, é aí que entram os acompanhantes xawareks, vocês são os únicos em que posso confiar.

–Estou honrada, capitão.

–Eu disse a verdade, senhorita.

A tigresa arrepiou o pelo de satisfação e perguntou com olhos brilhantes:

–Como podemos lhe ajudar?

–Vocês são caçadores com habilidades superiores às nossas. Assim que eu for aprisionado e levado pelos rebeldes sem honra; os xawareks vão seguir a pista de Suer Dut até o esconderijo onde eu estiver preso e o capturarão, de preferência vivo, para ser executado posteriormente com bastante sofrimento pelo carrasco do Imperador. Quanto aos capangas dele, seus camaradas poderão matá-los à vontade, com ou sem sofrimento. Para mim é indiferente.

–Você é temerário. Esse é um plano xawarek.

–Se isso for um elogio, senhorita, obrigado – disse Aldo – vamos ao que

interessa a vocês: o imperador pedirá desculpas publicamente pelo incidente que levou à guerra, algumas centenas de ciclos atrás, quando ninguém aqui era nascido. Ele realmente não odeia vocês; ele quer a paz. Garanto isso, mas eu quero mais, eu quero que eles e vocês aceitem ser aliados. Preciso de todos trabalhando juntos aqui encima e não eles isolados lá embaixo sem saber de vocês; que ao final de contas, vão lançar às estrelas uma nave construída com peças taonianas.

–É uma situação lamentável – observou Alan.

–Sim. Preciso muita gente a mais na estação espacial e na doca estaleiro; e não tenho. Meu pessoal também está construindo uma nave, como sabe; e isso ocupa todos os técnicos, humanos e xawareks em três turnos de trabalho. Preciso dos taonianos para trabalhar, mas não os trazemos porque os poucos que sabem que vocês estão conosco, têm medo de vocês. E vocês têm ódio deles. Mas isso acaba aqui e agora, minha nova amiga, senhorita guerreira Tikal Henna; vocês devem parar de odiar os taonianos, porque não vejo honra nesse ódio.

–Quando o ódio entra na toca – disse a siriana – a honra escorre pela latrina.

–Que bom que entendeu – suspirou Alan, ainda dolorido.

–Há honra em esquecer os erros lamentáveis do passado – disse ela – Vou entrar em contato com o capitão Mokvo e explicar a situação.

–Eu fico muito agradecido a você, guerreira.

–Eu vou preparar a nave, Aldo. Vamos com você.

–Não é preciso, Alan. Posso cuidar disso com Mokvo, assim que...

–Não insulte um guerreiro e uma guerreira honrados, deixando ambos para trás numa batalha – disse ela – nunca coloque sua honra acima da nossa.

–Se é uma questão de honra, quem sou eu para discordar? Sejam bem vindos à empreitada, guerreiros. Se eu quiser sua amizade, senhorita; devo entendê-los.

–Então entenda que estamos divididos em castas; os Baharnums a casta superior; guerreiros, pilotos, capitães estelares e engenheiros de batalha. Logo depois estão os Mahabs, cientistas, médicos e pesquisadores em todas as ciências. Depois os Viros; soldados, construtores, artesãos e artistas; por último os Badras; operários fabricantes de naves e armas, plantadores, criadores de animais e escribas. Todas elas são castas honradas e respeitadas. Tanto que um baharnum pode trabalhar junto com um badra numa empreitada honrosa.

–Existem os que não têm castas?

–Sim, os Yord; ou seja, banidos de todas as castas, porque roubaram, mentiram e mataram sem honra; os ladrões, mentirosos e assassinos. Não temos isso aqui.

–Foram vocês, então que deram nome aos rebeldes taonianos...!

–Nossos mestres de clã logo perceberam a ruindade desses indivíduos; mas precisávamos alimentos e materiais diversos para sobreviver nesta lua sem ar.

–Fizeram pacto com o diabo e deu no que deu.

–Não entendi, capitão.

–Lutamos contra vocês por causa deles – interveio Alan – os taonianos sabiam que os Yord eram sustentados por vocês. Todas essas mortes inúteis de xawareks seriam evitadas, se vocês tivessem insistido mais em conversar e aliar-se aos taonianos, em vez de remoer por gerações a morte inútil dos primeiros emissários.

–Vamos começar de zero e criar uma nova era – disse Aldo – antes das naves ficarem prontas fundarei uma colônia xawarek no Gopak Uio, dependendo do êxito do meu plano. Se vocês me ajudarem a vingar as mortes da família imperial e a restaurar a paz no império taoniano, será considerado um ato de honra pelo imperador. Eu o conheço bem. Além disso, esse mundo deve a nós, e indiretamente a vocês.

–A nós?

–As indústrias trabalham como nunca, produzindo elementos para ir às estrelas, para as estações espaciais e a doca. A nave estelar Empreendimento NX está sendo construída com materiais taonianos; assim como a minha nave ainda sem nome. Nunca houve tanta prosperidade em Taônia antes de vocês se aliarem a nós.

A comida foi trazida.

Aldo não tinha idéia do que lhe esperava.

As iguarias sirianas eram pedaços de carne de wok crua, submersa num molho de vinagre e tempero fortíssimos; crustáceos taonianos vivos, esperneando desesperados dentro de uma tigela funda e algumas frutas trazidas dos subterrâneos de Japeto, onde os sirianos há séculos cultivavam jardins hidropônicos com produtos do seu mundo, trazidos na antiga nave-mãe naufragada.

Alan, em todos esses meses na base xawarek; já tinha aprendido a comer a exótica comida.

Aldo nunca experimentara tais coisas.

–Peço desculpas pela comida improvisada, capitão – disse Tikal Henna – não é típica do meu mundo original. Os crustáceos originais, zhiris, trazidos de Amaru Xel, não sobreviveram para se reproduzir em todos estes milhares de ciclos. Nossos antepassados tiveram muita sorte de achar estes khajs; mais ou menos parecidos aos nossos zhiris; nos lagos gelados do Gopak Uio... E é o que temos.

–Nunca comi os verdadeiros – disse Aldo – não saberia diferenciar a qualidade, a não ser que um dia possa ir a seu planeta.

–Eu também não saberia, porque nunca os comi; mas estes estão frescos e são deliciosos – disse ela – espero que quando a nossa nova nave volte de Amaru Xel para levar o segundo grupo para casa, o capitão lembre de trazer de lá bastante comida fresca e você... Nós todos, possamos experimentar uma verdadeira comida xawarek.

–Mal posso esperar – disse Aldo, estremecendo.

–Mas até esse dia chegar vamos comer estes, que estão bem frescos – disse ela, pegando um khajs com os palitinhos hashi e submergindo-o na tigela com molho por alguns segundos, antes de colocá-lo na boca, para mastigar-lo com deleite.

–Estão bem frescos; capitão – acrescentou ela – experimente, antes de comer a carne de wok. E beba um pouco de suco de...

–Frescos demais, diria, estão se movendo! – disse Aldo espantado.

–Claro que estão vivos, capitão – replicou ela – nunca ofereceria khajs mortos a nenhum convidado. Não seria educado.

–Aproveite a comê-los antes que o ácido do vinagre os mate; capitão. Depois de mortos não ficam crocantes – disse Alan, pegando outro.

–Ah! Sim, claro.

*******.

Continua em: A TIGRESA II - AMOR INTERESTELAR

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O conto A TIGRESA forma parte da saga inédita MUNDOS PARALELOS, Fase 1, Volume 3, Capítulo 26, páginas 130 a 138, cujo início pode ser encontrado no Blog Sarracênico, Ficção Científica e Relacionados, sarracena.blogspot.com.

O Volume 1 da saga pode ser comprado em:

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Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 10/09/2016
Reeditado em 01/11/2016
Código do texto: T5756228
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