OS SOBREVIVENTES

Esta é a compilação de vários episódios já escritos por mim e por minha amiga Priscila Pereira. Os reuni para que a leitura se tornasse mais fácil. Divirtam-se!

Capitulo 1

Não vejo ninguém mais nas ruas, a cidade está deserta. A super bactéria dizimou a população. Começou devagar, - Não se preocupem tudo está sob controle. - dizia o governo, logo milhares de pessoas morriam por semana. Então começaram as quarentenas e os toques de recolher, tudo em vão. O pânico levou à população a loucura, saques, assassinato dos infectados, fizeram de suas casas verdadeiras trincheiras de guerra, ninguém entrava e ninguém saía.

Estou trancada em casa já fazem quase seis meses, minha família toda morreu infectada, não me atrevi a sair ainda, observo a rua pela janela e já fazem três meses que não vejo outra pessoa. Estou sem suprimentos, vou ter que sair de qualquer jeito, ou morro de fome.

Peguei a velha espingarda de meu pai, uma mochila bem grande e com muita cautela abri a porta, não havia ninguém, silêncio completo. Vi o carro de um vizinho, as chaves na ignição. Entrei no carro, dei a partida e funcionou, o tanque estava cheio. Fui até o supermercado mais próximo e vi que havia sido saqueado, as portas estavam arrombadas e todos os produtos revirados, ainda sobrou bastante coisa. Peguei alguns enlatados, toda a comida ensacada que encontrei. Não havia legumes nem frutas, nenhuma verdura. Peguei material de limpeza e higiene pessoal e fui embora.

Rodei a cidade toda e não achei ninguém. Comecei a entrar nas casas, gritava, perguntava se havia alguém, nada. Entrava e via muitos cadáveres, em vários graus de decomposição. O único hospital da cidade estava cheio de mortos. O ar estava contaminado, não dava para respirar. Voltei para casa com a certeza que não havia mais ninguém vivo além de mim em toda a cidade. Ainda tinha que decidir o que fazer.

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Capitulo 2

A luz do amanhecer começou a iluminar o quarto. O despertador tocou pontualmente as 06:00hs. Desliguei-o prontamente e já levantei. Fui até a cozinha, acendi o fogão e pus água no fogo para fazer um café. O vidro em que guardo o pó está vazio. Vou até a despensa e lá tem mais de 300 kgs guardado. Tenho que parar de trazer sempre para casa quando acho. Mas não resisto a tentação.

Faço três tapiocas de coco com leite condensado. Tenho que criar coragem para tentar assar pão outra vez. Que saudade de um pingado com um pão com manteiga na chapa. Balanço a cabeça tentando afastar o pensamento. É um rumo perigoso. Vou até a "casa de maquinas" conferir como está o gerador. Um mostrengo que trouxe de um hospital. O combustível está quase no talo. Olho-o funcionando por uns cinco minutos. Meu orgulho! E pensar que a seis meses atrás não sabia nada de instalação elétrica.

Pego dois galões de vinte litros e abro a porta para buscar o diesel que deixo em latões do lado de fora. Não dou dois passos e já sou derrubado no chão:

-Sai Dalila! Sai Dalila! Para de me lamber. Argh! Que nojo!

Quem acha que cachorro é amoroso nunca criou uma leoa!

Volto para dentro e pego o pedaço de carne de cavalo que tinha tirado ontem a noite e dei para ela. Aproveito que ela está comendo e vou ao galinheiro. Jogo no chão bastante arroz cru e abro o portão para que as galinhas e o galo possam sair. Tenho que arrumar outro cavalo para matar senão a Dalila vai começar a querer fazer umas canjas como café da manhã. Felinos são independentes demais. É gostoso ter uma leoa de estimação mas sinto saudades dos cachorros. A maior injustiça da praga não foi ter matado todos os homens, mas sim ter exterminado os cães.

Passo o resto do dia retirando o gramado da mansão vizinha a que invadi para poder plantar milho. Amanhã vou pegar a caminhonete e vou dar uma volta na cidade garimpar mais coisas. Talvez encontrar alguém. Faz seis meses que não vejo outro ser humano. Quero companhia para conversar. Nem que fosse só para falar que nunca fui tão feliz. Me pego cantarolando:

-"Is the end of the world as we knowed

Is the end of the world as we knowed

Is the end of the world as we knowed

But I feel fine..."

Capitulo 3

Ainda não me decidi a sair por aí, indo de cidade em cidade a procura de mais sobreviventes, se é que havia mais algum. Sendo a caçula de uma família de cinco filhos, morando em uma casa de apenas três quartos, eu sempre ansiei por um pouco de solidão, mas vendo minha família, morrendo um por um, me peguei esperando que existisse alguém, nem que seja só mais uma pessoa, que tenha passado por tudo e me compreendesse, para que pudéssemos conversar.

Estava relutante em sair de minha casa, mas não fazia mais sentido morar em um só lugar sendo que havia todas as casas da cidade e hotéis e pousadas luxuosas. Saí de carro procurando um novo lugar para morar e quem sabe alguma coisa com que me ocupar, alguma coisa que fizesse passar as horas, é incrível como eu estava acostumada com a internet, tv, rádio. Agora nem eletricidade mais havia, tinha que me distrair comigo mesma.

Parei em frente da biblioteca municipal, ainda estava fechada, ninguém se interessou em saqueá-la afinal. Saí do carro e peguei um pé de cabra para arrombar a porta. Não lia um livro, que não fosse sobre informática, matéria na qual fiz minha faculdade e já trabalhava em uma empresa de processamento de dados, desde que saí do colégio. Achava que romances eram para desocupados, perfeito para mim agora.

Depois de passar duas horas na biblioteca já tinha percebido que havia livros sobre tudo o que eu pudesse e quisesse aprender, desde livros de receita, até sobre agronomia, engenharia e contabilidade. Peguei um livro de receitas e continuei minha procura pela casa perfeita.

Depois de rodar por algum tempo, me deparo com uma pequena pousada, quase na zona rural, na placa diz que é uma pousada ecologicamente correta e totalmente auto-sustentável. Animo-me, entro e logo vejo que está intacta, parece que está fechada desde o começo da epidemia. Para minha surpresa vejo que tem eletricidade, graças as placas de aquecimento solar e vejo também que tem água encanada, graças a um poço artesiano e uma bomba que abastece a pousada toda. Benditos ecologistas!

Depois de ver que a dispensa da pousada está abarrotada de todo tipo de comida, vejo vários refrigeradores ligados, olho dentro de um e vejo carne, não como carne desde o começo da epidemia, já que os animais foram os primeiros a morrer. Peguei uma lasca de bacon e corri para a cozinha, nunca havia cozinhado nem um ovo, mas fritaria esse bacon, nem que fosse a última coisa que faria.

Capitulo 4

Estou mais uma vez rodando a esmo pela cidade. Paro a caminhonete em frente a um imenso shopping center e com um maçarico abro uma passagem pela porta movediça de aço. Passeio pelas lojas escolhendo o que me agrada: o gerador de emergência, dois freezeres e um fogão em um restaurante, roupas, vários pares de tênis, mantimentos de todos os tipos, livros, filmes, cds, e mais um monte de outras quinquilharias. A grande verdade é que fora as armas e munições que peguei na loja de material esportivo nada realmente é necessário. Mas é uma das atividades em que mais me divirto. Dalila, minha leoa, também adora, tanto que é só me ver com a chave na mão que já pula na traseira. Nunca imaginei que eu fosse tão consumista. Tive que fazer três viagens para levar tudo o que peguei.

Quando termino de trazer tudo já é final da tarde. Dou um saco de arroz para minhas galinhas e sento na varanda. Aprecio o entardecer entre os prédios ao longe fumando um charuto cubano e bebendo uma garrafa de suco de uva. A coitada da Dalila está se contorcendo na grama, comendo mato toda hora. Deve estar com uma dor de barriga danada. Tenho que lembrar de não dar tanto sorvete e chocolate para ela da próxima vez que for lá. Ainda ficou muita coisa. Mas vou deixar para voltar semana que vem. Ou não vou voltar. Amanhã se minha bichana estiver melhor vou levar ela para caçar. Desta vez a família de javalis que mora no maior parque da cidade não vai escapar. Engraçado já ter encontrado javalis e não ter encontrado nenhum porco. Será que tinham morrido também?

Uma das coisas mais estranhas dessa bactéria era como ela escolhia suas vítimas. Os caninos sim, os felinos não; bovinos sim, equinos não; certos tipos de aves sim; outras não. Trago ainda vívido na memória o passeio no zoológico logo no começo da crise, quando fecharam todos os albergues. Tinham aberto todas as jaulas mas em várias repousavam os cadáveres de animais que a praga alcançou. Lembrava bem dos papagaios em seu imenso viveiro fazendo festa enquanto no do lado jaziam inúmeros tucanos. Foi lá que encontrei a Dalila, comatosa de fome, na única jaula trancada. Não parecia haver nenhum método na escolha, nenhum sentido. Como no fato de eu estar vivo enquanto bilhões morreram. E pensar que a menos de um ano atrás eu acordava na rua, com as pessoas passando por cima de mim e a minha única preocupação era como ia arrumar o dinheiro para comprar o próximo litro de pinga. Era por isso que deixava despertador para acordar. Para me lembrar antes de abrir os olhos que estava em uma cama. De outros, mas em uma cama!

Capitulo 5

Não sabia como era bom tomar um longo banho de banheira, cheia de espuma, água escaldante, ouvindo uma música antiga. Nunca havia me sentido tão relaxada e de bem comigo mesma. Desde o começo da epidemia que me preparava para a morte, estava sempre a espera do começo dos sintomas, estava constantemente tensa e mau humorada, vendo todos morrerem. Agora, depois de quase um ano, me convencia que não iria morrer, sobrevivi afinal, e estava aproveitando a vida.

Os dias na pousada passavam rápido, eu trabalhava na horta, preparava refeições elaboradas graças aos livros de receita, nadava e

até corria um pouco pelos arredores da propriedade, só saía de lá para buscar mantimentos e passar horas na biblioteca. Lá conheci Jane Austin, Emily Bronte, Charlotte Bronte, Gabriel Garcia Marques, Simone de Beauvoir, Charles Dickens e muitos outros. Não me sentia mais tão sozinha.

Por mais que estivesse gostando de me redescobrir, viver completamente sozinha estava me abalando psicologicamente, eu queria conversar, brigar, discutir, rir de uma piada, fazer as pazes, sentia falta de abraços e beijos, apertos de mão e do calor de outro ser humano. Comecei a falar sozinha.

Decidi tentar encontrar alguém. Pegaria o carro mais confortável e potente que achasse e dirigiria pelas cidades dos arredores a procura de mais sobreviventes.

Dirigi por várias cidades, em todas elas estourava vários fogos de artifício, se alguém estivesse vivo, com certeza ouviria e iria ao meu encontro. Foi tudo em vão. Ninguém. Não sabia se iria mais longe ou se voltaria para casa. Sentia falta de eletricidade, banhos quentes, água encanada. Sentia mais falta de pessoas.

Capitulo 6

Já estou subindo o rio há pelo menos quatro horas. Dalila acompanha-me um pouco mais para cima. De vez quando ela some e volta com um coelho na boca. Guardo na mochila. Afinal de contas é desfeita recusar. O instinto dela é caçar primeiro para o leão, depois para o filhote e depois para ela. Numa curva vejo na mesma margem que estou uma família de capivaras se deliciando ao sol. Armo o meu rifle para o tiro fatal e... não consigo atirar.

Pai, mãe e quatro filhotes. Meus olhos se enchem de lágrimas. Já tive uma família há uma vida atrás. Ela me traiu e levou minha filha embora. Durante muitos anos a culpei por ter me entregue a bebida. Mas era mentira. Foi a desculpa para largar tudo, para me afastar de todos. Coloco a coronha da arma no chão e fico os observando. Quando a praga começou estava morando em um albergue. De repente as pessoas começaram a morrer uma atrás da outra. Saí de lá, invadi uma adega e ali fiquei por dois meses, bebendo tudo o que tinha direito. Quando dei as caras ao mundo percebi que só havia restado eu em toda cidade. Incrível o que gera mudança nas pessoas. Nunca mais coloquei uma gota de álcool na boca.

Até hoje tenho sido feliz sozinho. Mas a cada dia o desejo de encontrar alguém fica mais forte. De repente vejo Dalila dar um bote na capivara macho. Foi certeira no pescoço dele. Com o rifle dou três tiros na fêmea. Passamos o resto da tarde recolhendo os corpos e as crias. Mais de trezentos quilos de carne e os quatro filhotes para criar. Mas não sinto alegria nenhuma

Definitivamente preciso encontrar outro ser humano. Dirigindo vejo ao longe, bem no centro da cidade, vejo o que me parecem ser fogos de artificio. Emboco a caminhonete para lá.

Capitulo 7

Decidi fazer uma última tentativa, fui um pouco mais longe e achei uma cidade qualquer, como muitas outras, cidade fantasma. Como já decidi que essa é a última cidade em que vou procurar algum sobrevivente, rodo tentando achar alguma coisa diferente, não sei, talvez livros e CDs que não encontro em minha cidade, ou até uma galeria de obras de arte, queria redecorar a pousada com alguns quadros famosos, quem sabe umas esculturas, vamos ver o que encontro.

Encontro uma biblioteca e acho alguns livros raros, não acho nenhuma galeria de arte. Entro em uma loja que parecia ser caríssima, pego todas as roupas do meu tamanho e coloco na mala do carro, coloco um chapéu e uns óculos escuros e vou até o centro da cidade, como sempre, preparo os fogos de artifício e sento em um banco da praça, comendo um pacote de batata frita, para assistir os estouros.

Espero alguns minutos e começo a guardar tudo no carro, geralmente esperava algumas horas em cada cidade, mas já estava cansada, queria ir para casa, duvido que alguém tivesse visto ou ouvido. Estou manobrando o carro para pegar a rua principal e ir embora quando ouço uma buzina, paro imediatamente o carro e olho para traz, vejo uma caminhonete, o motorista buzina sem parar.

Não acredito que existe mais alguém, não acredito! Saio do carro e vejo o motorista diminuindo a velocidade, parando e descendo da caminhonete. Vejo um homem de estatura mediana, magro, moreno e bronzeado, parece que fica muito tempo no sol. Veste roupas caras e confortáveis. Ele vem chegando perto de mim e posso notar que tem os olhos castanhos e um sorriso tímido.

Algo na caminhonete se mexe e chama minha atenção, desvio os olhos do recém chegado e vejo um leão, ou melhor, uma leoa, porque os leões têm juba e esse não tem, saltando da traseira da caminhonete e vindo em nossa direção. Não penso duas vezes e pego meu rifle e aponto para o bicho. Quando percebe meu gesto o estranho pega seu rifle e aponta para mim. Não tiro os olhos da leoa e ele não tira os olhos de mim, não sei o que vai acontecer agora...

Capitulo 8

Não acredito. Um ano sem ver uma alma viva e a primeira que encontro me aponta uma arma!

-Moça, acho que a gente não precisa se tratar com tanta animosidade. Juro que não quero te fazer mal.

-Em você eu acredito. Só não confio muito na sua namorada.

-A Dalila? Hahahaha! Gatinha, volta para a caminhonete. A leoa me olha com um olhar inquisidor. Pode ir, estou mandando. Está tudo bem. Ela volta devagar e pula na traseira do carro. Não tira os olhos da moça.

-Escolha estranha para um animal de estimação.

-O quê eu podia fazer? Não sobrou nenhum cachorro. Gostei do chapéu e dos óculos. Está se escondendo de alguém?

-Não... Mas mesmo sem ninguém para ver uma mulher gosta de se arrumar. Tirou-os revelando longos cabelos castanhos e um lindo par de olhos amendoados. Tinha cerca de 1,60m em um corpo esguio mas muito formoso. Bem, a mim parecia um espetáculo. Não existe mulher feia, você que está vivendo no apocalipse há pouco tempo...

-Você mora aqui?

-Nesta cidade? Sim. O aluguel é barato e os vizinhos não incomodam.

-Você gosta de fazer piada com tudo, não é?

-Estou guardando-as faz mais de um ano. Tenho que aproveitar. Quer conhecer minha "maison"

-Ficaria encantada. Mas vou no meu carro. Ainda não confio na sua amiga. Acho que ela está com ciúmes de mim.

-Para bem da verdade ela tem toda razão.

-Um galanteador. Onde fui amarrar meu burro?

-Em outro burro.

Ela me acompanhou até a mansão que uso como moradia. Para deixá-la mais tranquila tranco Dalila no cercado que tinha montado para ela. Para deixar minha bichana mais tranquila arrasto a capivara fêmea para que ela faça a festa. Pego as capivaras filhotes e as coloco em uma caixa grande. Neste momento ela desce do seu carro:

-Vocês caçaram esses bichos?

-Sim. Eu e a Dalila. Não que tivéssemos necessidade. Tenho quase três toneladas de carne estocada. Mas faz bem para a Dalila. E eu gosto também.

-Três toneladas. Como você guarda tudo isso?

-Em freezers e em um caminhão refrigerado. E não é só isso. Devo ter comida estocada para uma vida inteira.

-E energia?

-Tenho três geradores funcionando e mais três guardados. Tenho feito muitas compras no último ano.

-Mas para quê tudo isso?

-Alguém poderia aparecer...

Fez-se um silêncio constrangedor. Ela rapidamente olhou para o lado e viu o galinheiro. Já era final de tarde então todas as galinhas já estavam devidamente empoleiradas. Começou a passear pelo quintal vendo o pomar e as hortas. Foi até a cerca que separava a propriedade da outra mansão e viu a terra revirada, com vários montes de grama arrancada.

-Você têm trabalhado muito aqui. O que pretende fazer na outra casa?

-Quero plantar milho e feijão.

-Você era agricultor?

-Não. Era um bêbado. Um "borracho" como diziam nossos hermanos. Mas tenho me esforçado para aprender. Acho que não tenho me saído mal.

Ela olha tudo com um visível ar de admiração. Meu coração parece querer saltar pela boca. Quero que ela fique aqui mas como abordar o assunto?

-Quer conhecer o interior da minha humilde moradia?

-Por favor. Têm café?

-É o que mais tenho.

Logo na porta ela para em frente a um aparelho elétrico parecido com um relógio.

-O que é isso?

-Um contador geiser.

-Para quê?

-Quando a praga se revelou em toda a sua ferocidade, a primeira preocupação dos governos foi fechar as usinas atômicas para que elas não explodissem por falta de pessoal. Pelo que soube chegou a haver acidentes graves em duas ou três. Mas em geral conseguiram desativar todas. Mas exitem inúmeros poços de petróleo queimando e ácidos e outras substâncias se derramando no meio ambiente. Até agora, pelo menos por este contador, a radiação não subiu muito.

-Como você sabe tudo isso?

-Até quatro meses atrás uma rádio do governo transmitia notícias todos os dias as 19hs. A Voz do Brasil. Mas agora se calou. Também pesquisei em revistas e jornais velhos.

-Então devem existir outros sobreviventes?

-Com certeza. Mas é como o paradigma do menino perdido. A forma mais fácil dele ser achado é se ficar parado.

Ela de repente olhou para o horizonte por uns dois minutos. Depois sentou-se e começou a chorar.

Nada há de mais desolador para um homem do que lidar com uma mulher chorando. Fiquei ali atônito até que me veio uma ideia tresloucada. Corri até a cozinha, preparei uma mamadeira com leite em pó. Peguei um dos filhotes de capivara e o coloquei no colo dela.

-Ela está com fome. Você pode me ajudar?

A moça parou de chorar e ficou amamentando o bicho.

"Puta que pariu! O que eu faço agora?"

Capitulo 9

Como eu pude chorar descontroladamente na frente de um desconhecido? Acho que guardei para mim todas as emoções desse ultimo ano e quando estava novamente conversando amenidades com outro ser humano eu desabei emocionalmente. Convenhamos que o desconhecido, (como não nos apresentamos ainda?) teve presença de espírito suficiente para trazer a mamadeira e me fazer amamentar o filhotinho de capivara, achei que nunca mais seguraria um bebe novamente, bem, mesmo que não fosse um bebe humano, ainda era um bebe.

Quando consegui me controlar o suficiente o bichinho já havia mamado toda a mamadeira. Levantei-me e fui procurar o cara, que, ponto pra ele, me deixou chorar sozinha. Achei-o na cozinha, preparando uma mesa de café, que parecia mais um banquete, tinha tantos tipos de biscoitos, geléias, bolos, e até pães; tinha também refrigerante, sucos, café e leite.

- Me desculpe pelo descontrole agora a pouco. - Eu disse timidamente.

Ele parou de arrumar as xícaras e me olhou divertido.

- Quê isso, eu choro como uma criancinha todas as noites.

- É muito bom saber... Quantas pessoas vem para o café?

- Quantas acharem o caminho...

Olhei para ele e estendi a mão

- Meu nome é Lívia, e o seu?

- José Augusto.

Pegou minha mão meio desajeitado, pude sentir que eram quentes e ásperas.

- Vamos comer?

- Claro, desde que deixei a pousada pra procurar outras pessoas que não como direito, parece tudo uma delícia.

Sentamos-nos à mesa e começamos a nos servir.

- Você mora em uma pousada agora?

- Moro, é uma pousada auto-sustentável. Tem energia graças às placas de aquecimento solar e água encanada, tem pomar e horta, tenho tudo o que preciso lá.

- Mas... Você pretende voltar pra lá? Tipo, agora que nos encontramos... Não devíamos ficar juntos?

- Como assim, ficar juntos?

Eu entendia e não entendia o que ele queria dizer ao mesmo tempo.

Capitulo 10

Já estava na minha casa há uns cinco dias. Ela não tinha ainda decidido se ficaria ou não. Desejo ardorosamente que ela fique. A minha mente está um turbilhão e eu volto a me lembrar do porquê era tão feliz sozinho. O lugar que me instalara para ser uma mansão teria que diminuir bastante. Arrumei o melhor quarto para ela e tenho tentado manter minha rotina o melhor possível. Ela têm se mantido feliz arrumando a casa, mexendo na horta, cuidando das galinhas e dos filhotes de capivara. Está até acariciando a Dalila quando estou perto. Mas está insistindo em ir na pousada que ela morava. Arrumei um caminhão baú e prometi levá-la e trazer tudo o que ela quiser de lá. Fiquei com a impressão que esta não era bem a ideia dela.

Meu sistema de água é engenhoso. A piscina da propriedade é olímpica. De tempos em tempos eu passeio com um caminhão-pipa que arrumei e vou até o maior rio da cidade. Com a água que trago encho a piscina. Esta tem sistema de filtragem e dá para usar alguns produtos para mantê-la potável. Uma bomba puxa água dela e enche a caixa da residência. Dá para manter um pedaço de cultura irrigado. Enquanto estou indo para lá me distraio e erro o caminho. Acabo passando em frente a um quartel do exército. Paro e entro para dar uma vasculhada. Nestes lugares sempre tem algo interessante. Encontro comida enlatada de boa qualidade, suprimento absurdo de arroz, feijão, farinha e outros alimentos bem conservados. Pano bom em enormes quantidades. Um arsenal de armas impressionante. E, supra sumo, um painel com as chaves de todos os carros do pátio. Jipes, caminhões, ônibus. Havia até blindados. Tinha um sistema de comunicação operante em uma das salas. Nele escuto uma pessoa que manda uma mensagem. Nela diz que está viva e que mora em um bairro do outro lado da cidade.

Quando volto não conto nada para a Lívia. Tento, mais de uma vez, mas simplesmente não consigo. Prometo que iremos finalmente buscar as coisas dela. Mas digo que tenho que resolver um assunto e peço para que espere mais dois dias pelo menos. Ficamos conversando depois do cair da noite por horas. Colocamos um filme na tela gigantesca da sala e assistimos. Adormecemos juntos ali, debaixo do mesmo edredon. Nossos gostos diferem muito mas deixei ela escolher. Sempre me fala da sua família e da sua vida antiga. Me pergunta também da minha e minto descaradamente. Ela é cada dia mais importante para mim.

O cara como eu escolheu uma ótima casa para morar. A felicidade dele é indescritível. Como nós não vê ninguém há quase um ano. Mas sabe pelo seu equipamento de rádio que ainda existe um governo que funciona em lugares lacrados e que procura sobreviventes da praga. Ele é loiro, deve ter uns três anos a menos do que eu, perdeu esposa e filhos. Olhos azuis, compleição atlética. Conto para ele todos os detalhes de como venho conseguido sobreviver. Não cito a Lívia. O convido para ir ver o lugar onde moro. Ele aceita feliz. Enquanto estamos indo para o meu carro me posiciono atrás dele e descarrego um revólver 38. Assisto pacientemente ele agonizando até morrer. Passo no quartel e quebro o aparelho de comunicações. Amanhã a trarei aqui e assim talvez consiga adiar ir a casa dela um pouco mais. Nunca tinha feito o que fiz e me sinto quase mal por não sentir nada.

Capitulo 11

Estamos dirigindo um caminhão baú já faz umas três horas, estamos indo para minha cidade, pegar minhas "coisas" na pousada. Na verdade eu preferia estar indo sozinha, precisava de um tempo para pensar, tudo estava acontecendo muito depressa, antes eu estava sozinha e sentia falta de ver outras pessoas, agora estou sentindo falta de um tempo só pra mim. Estar sozinha com um estranho o tempo todo é meio estressante. Queria que houvessem outras pessoas, assim ficaria melhor.

Um silêncio pesado pairava no ar, José Augusto dirigia em alta velocidade pela estrada deserta, eu estava quase dormindo quando ele freia o caminhão abruptamente numa curva, quase batendo em um cara de moto. Saímos do caminhão e corremos na direção do novo estranho, que conseguiu desviar a moto a centímetros de um desastre. O estranho usava um macacão de couro, próprio para andar de moto, todo preto e capacete preto também. Saiu da moto, tirou o capacete e uma profusão de cachos louros apareceu primeiro, dando lugar a um rosto angelical, muito alvo, com lábios grossos e naturalmente rosados, olhos muito verdes ofuscados por longos e abundantes cílios negros.

- Não acredito!! Tem mais gente viva!! - A moça disse com voz estridente de alegria.

Ficamos, José Augusto e eu, de queixo caído olhando a moça mais linda que eu já tinha visto na vida. Ficamos estáticos enquanto ela abraçava cada um de nós bem apertado. Ela tinha cheiro de baunilha.

- Então, o que vocês são? Um casal? Irmãos? Só amigos? Espero que só amigos, porque faz mais de um ano que não vejo um homem.

- Só amigos... - Disse eu ainda meio espantada.

- Que maravilha! - Disse dando um beijo escandaloso na boca do José Augusto. Eu dei alguns passos para o lado e quando eles terminaram, eu disse:

- Ótimo encontrar outra garota... Estamos indo até a próxima cidade buscar algumas coisas e voltar para a cidade dele... Quer ir com a gente?

- Claro que quero!! - Disse tirando o macacão de couro e revelando um corpo escultural e levemente bronzeado, vestido apenas com um mini short jeans e um top que cobria muito pouca coisa.

José Augusto que estava mudo até agora disse:

- Será um prazer ter você com a gente... Qual é o seu nome?

- Eu esqueci de dizer né, estou tão animada... Meu nome é Carol. E vocês?

- O meu é José Augusto e o dela é Lívia.

- Ótimo, agora somos todos amigos!

Ela foi subindo no caminhão e se sentou no meio, deixando a janela pra mim, ele subiu e começou a dirigir enquanto a moça tagarelava sem parar e claramente se insinuava para ele. Eu não sabia o que pensar disso.

Capitulo 12

"Quando Alá quer punir os homens, cumpre os seus desejos". Este era um ditado árabe que meu pai repetia sempre. Agora vejo que ele tinha razão. O que que eu faço agora?!

Sempre fui um covarde por natureza. Com medo de tudo e de todos. Um fracasso social. Era o motivo de gozação preferido da turma na adolescência. Morria de inveja daqueles que eram bons em esportes, descolados, pegavam as menininhas. Delas tinha um misto de admiração, desejo e raiva. Estes sentimentos me acompanharam pela vida adulta. Nos meus relacionamentos fracassados, nos meus trabalhos, nas minhas amizades. Até entre a "estranha confraria do vermute, do conhaque e do traçado" em que vivia nos últimos anos era constantemente humilhado.

A Praga no final das contas resolveu tudo. Sozinho descobri que era capaz de fazer coisas incríveis desde que me esforçasse. Mas qual era a vantagem de criar maravilhas sem ter para quem mostrar? Quando esta questão começou a me torturar encontrei a Lívia. Talvez por achar que era o último homem na terra nunca me senti tão confiante ao lado de uma mulher. E como ela é encantadora. Meiga, inteligente, carente e independente ao mesmo tempo. Sentia que não havia rolado a mesma empatia dela comigo, mas não tinha problema. Era só uma questão de tempo, afinal quais eram as opções dela?

Daí apareceu outro sobrevivente. Um homem muito mais bonito e interessante que eu. E pela primeira vez na vida tirei um concorrente do caminho. A lembrança dele agonizando no asfalto, sangrando com os seis tiros que dei em suas costas, não sai da minha cabeça. Mas não sinto culpa ou remorso. Na verdade estou orgulhoso de mim. Finalmente tive uma atitude! Só que para lá de exagerada. Ninguém iria engolir nenhuma desculpa para assassinato. Este terá que ser um segredo a ser levado para o túmulo.

Mas o acontecimento, saber que o governo ainda existe e que há mais gente viva por aí, me deu o desejo de poder fazer ciúme na minha colega (de que outro nome chamar). Fazer com que ela visse também que não era a última bolacha do pacote. Bem, minha vontade estava agora materializada em uma loira de cinema que não para de roçar as pernas e os braços em mim enquanto dirijo. Logo que soube que eu e a Lívia eramos apenas amigos me deu um beijo na boca que me deixou desnorteado. Na verdade estou matutando em tudo isso porque meu "eterno companheiro" já está pensando sozinho. Ela só está no caminhão há uma hora e eu já sinto minha pélvis doendo. Quando em uma curva ela "sem querer" roça nele enfio o pé no breque.

-Moças, desculpe a parada brusca mas tenho que ir no banheiro. Dalila deve estar estressada também lá trás.

-Dalila, tem mais alguém vivo com a gente? Pergunta nossa nova companheira.

-Minha namorada. Ela se sentiu desconfortável em vir na frente. Então está viajando no baú. A pobrezinha ficou vermelha como um pimentão. Minha companheira se segura para não rir.

-Ela deve estar uma fera com você! A loira parece murchar.

Desço da boleia e ando até encurvado de dor. Carol desce atrás, mantendo distância e com um ar assustado. Quando abro o caminhão ela dá um grito e sai correndo, trancando-se com Lívia na cabine. Essa não se aguenta e gargalha. Dalila saltou sobre mim e me lambe sem parar. Quando me solta a levo até as duas.

-Mas, mas, mas... É uma leoa!

-Hahahahaha... Te falei que ela ia ficar uma fera. A Dalila é muito ciumenta, cuidado com ela.

-Pode ficar tranquila Carol. Ela é domesticada, quase tão mansa quanto um cachorro. Pára de ficar fazendo medo na coitada, Lívia!

-Eu é que não me arrisco a sair daqui.

-Eu estou só brincando. Ela é mansa mesmo. Desceu, foi até nós e a acariciou. Nossa nova amiga demorou bastante até conseguir sair.

-Bem meninas, eu vou até ali na frente me aliviar. Sintam-se a vontade para fazerem o mesmo ou só esticarem as pernas. Como se diziam nas viagens de ônibus antigamente; parada de meia hora.

Me distancio uns dez metros. Dalila me acompanha. Quando sinto que estou longe o suficiente começo a conversar com minha bichinha:

-Então Dalila... Vou conversar com você que é dá sua espécie dividir o macho. Que que eu faço agora? Como eu lido com duas mulheres ao mesmo tempo? Ela só me olha, mas parece dar risada - Você ri? O negócio está feio. Quase que eu abro o extintor para ver se apago o fogo daquela loira. Não sei o quê eu faço não.

Depois de deixar a Dalila passear um pouco e dar uma olhada nos filhotes de capivara que estavam em uma caixa grande de metal lacrada, voltamos para o caminhão. Carol agora está mais recatada. Mas a simples presença dela faz minha "fábrica de minhoca" funcionar em ritmo chinês. Chegamos na pousada depois de mais uma hora. Realmente ela é tudo que a Lívia dizia. Um pequeno paraíso. Isso me entristece. Abro um freezer que estava dentro do caminhão e dou um grande pedaço de carne para a Dalila. Deixo a comendo do lado de fora. Solto os filhotes, dou uma mamadeira para cada um deles e os solto dentro do baú do caminhão. Amanhã terei que lavar o chão. Quando entro as duas estão conversando animadas:

-Meninas, o papo está bom. A companhia melhor ainda mas eu estou muito cansado. Já queria ir dormir.

-Que pena. Queria te mostrar tanta coisa que eu fiz aqui. Tudo bem, amanhã eu faço isso. O primeiro quarto a direita no corredor está arrumado. Acho que a ducha quente ainda está funcionando.

-Obrigado. Até amanhã meninas.

Vou até o quarto e tomo um longo banho frio. A noite está quente e tento com o choque térmico colocar a cabeça no lugar. Coloco uma camiseta e uma calça de moleton e deito na cama. Mas não consigo dormir. Fico pensando na nova sobrevivente. Como nós perdeu todos. Mas já viva afastada da família há pelo menos 6 anos. Disse ser representante farmacêutica mas não pareceu entender quando perguntei se tinha ASMA (Agarre Seu Médico Agora). Ou ela é muito sonsa, o que acho difícil, ou se faz. Depois de umas duas horas, quando o sono começa a chegar, vejo a porta se abrindo. A visão é espetacular! Carol entra vestida apenas com uma camisola transparente e uma calcinha. Os cabelos loiros molhados escorrem pelos seus ombros:

-Boa noite, posso entrar?

Capitulo 13

Dormi como um anjo na minha cama, enfim estava na pousada novamente, um lugar que eu considerava conhecido e seguro. Não que eu estivesse desconfortável na casa do José Augusto, longe disso, ele sempre me fazia sentir bem vinda e segura.

Eu notava os olhares lânguidos dele e fingia não perceber, eu sabia que ele não via uma mulher a mais de um ano e imaginava o que ele estava querendo mas eu não me sentia pronta pra isso, ele era um estranho ainda e minhas necessidades físicas não eram de jeito nenhum gritantes, ao contrário, eu estava de boa.

Quando encontramos a Carol eu até que achei bom, agora eles poderiam se aliviar mutuamente e ele não pareceria tão "perigoso", eu até que estava começando a gostar dele, mas estava longe de dar um passo mais carnal. É, até que era bom a Carol ter aparecido, se por um acaso ele gostasse realmente de mim não daria bola para ela, o que eu duvidava.

Quando desci para fazer o café, vi que os dois já haviam se levantado e estavam bem íntimos, estava na cara que tinham passado a noite juntos. Senti um misto de ciúmes e desdém. Ele pareceu meio sem graça quando me viu e se afastou um pouco dela.

- Bom dia Lívia, fizemos café para você.

- Obrigada, não precisava...

- Já estávamos fazendo para nós mesmo... - Disse Carol meio incomodada com minha presença e o aparente esfriamento do José Augusto.

- Você queria me mostrar o que fez na pousada ontem... Vamos ver agora?

- Claro,quer vir com a gente Carol?

- Eu não, vi que tem uma piscina, eu vou nadar e tomar um sol, quem sabe fazer um topless... - Disse olhando para ele maliciosamente.

- Vamos logo então né Lívia, vamos dar privacidade pra moça.

Mostrei o pomar e a horta, o poço artesiano e toda a estrutura da pousada, ele pareceu estar admirado e apreensivo ao mesmo tempo.

- Aqui é um paraíso mesmo... Fico com medo de você não querer voltar comigo...

- Eu estava pensando mesmo nisso... Agora você tem a Carol, com certeza ela volta com você então não vai ter que ficar sozinho.

- Eu queria muito que você fosse comigo.

- Não quero ficar de "vela". Vou ficar muito bem sozinha aqui, e pode até ser que apareça mais alguém não é. - Disse eu dando um sorrisinho amarelo.

- Bem, vou tentar fazer você mudar de ideia até a gente ir embora... Podemos ficar mais um pouco não podemos?

- Claro que podem... Mas eu vou ter que cobrar a diária do casal.

Ele fez uma cara indecifrável, continuamos andando em silêncio de volta para a casa e de longe avistamos a Carol, fazendo topless na beira da piscina e conversando com um rapaz de uns vinte anos ou menos que babava olhando para o corpo escultural dela.

- Olha gente, esse rapazinho entrou aqui. Ele também não sabia que tinha mais gente viva.

Olhei para José Augusto que olhava para o rapaz com um olhar ameaçador que me deu medo.

Capitulo 14

Sinto o gosto de licor de chocolate na boca. Mas não é qualquer licor. É um alemão caríssimo que meu pai havia ganho de um tio que o estimava muito. Bebi quase meia garrafa de golinho em golinho até ele descobrir. Meu primeiro porre. Logo na primeira vez. Fui acordado com o som a todo volume e com uma régua de madeira no lombo. Não sei o que doía mais, as reguadas ou a cabeça. Foi também a última bebida que tomei na adega que invadi a quase um ano.

A um instante estava tomado por uma determinação, uma frieza. Algo maligno. Senti isto quando matei o outro cara. Mas agora Lívia e Carol o conheciam. Não existia impunidade. E ao ter este pensamento senti o gosto da bebida. Estou apavorado. Fico estatelado. Minha vontade é sair correndo, deixar tudo para trás. Mas como? O palácio maravilhoso que construí (e me reconstruí). A mulher mais interessante que já conheci, a outra que foi a que me deu a noite de sexo mais alucinante que já tive na vida. Como abandonar tudo isso?

-Que se vayan todos! Gritei a plenos pulmões. Lívia me olhou assustada. Carol e o nosso novo colega também me olharam sem entender absolutamente nada:

-Está tudo bem, José Augusto? Vejo no rosto de Lívia que ela está realmente preocupada. Mas isto não a impede de dar um passo atrás.

-Agora está. Me afasto dela e vou em direção ao moço. O cumprimento entusiasticamente e pergunto até com um interesse quase verdadeiro:

-Que bom encontrar mais alguém. Mas me diga amigo. Quem é você, como se chama, como sobreviveu?

Ele responde timidamente com o olhar assustado. Deve acreditar pelo meu comportamento que estou com ciúmes da Carol. Ela me olha meio temerosa, meio intrigada. Já deve ter passado poucas e boas na mão de homens ciumentos. Já saiu da água e se cobriu com uma toalha.

-Meu nome é Felipe. Era estudante de medicina na faculdade da capital. Desde o começo da praga estive tentando ajudar nos hospitais, nas brigadas de emergência. Quando o desespero tomou conta tentei ir para a casa dos avós no interior mas lá a desolação era imensa. Estava indo para a cidade ver se encontrava mais alguém vivo. Entrei aqui procurando alguma coisa para comer.

-Mas que falta de educação. Entre, entre. Lívia, como dona da casa, faça as honras.

-Com certeza. Ela abraça Felipe e o conduz para dentro da pousada.

-Nossa turma está aumentando. Que bom. Começo a cantar um antigo jingle de televisão: Hoje a festa é sua. Hoje a festa é nossa. É de quem quiser, quem vier...

Vejo pela segunda vez a Carol ficar vermelha como um pimentão. Mas acho que dessa vez de ódio. Se cansou de ser insultada:

-Que está acontecendo, José? Você está agindo como um idiota! Fala nitidamente contendo a raiva

-Exatamente! Você é a mulher mais exuberante com que já passei a noite. Estou fervendo de ciúme e com isso estou agindo como um idiota.

Em um tom doce, conciliador: Mais que lindo! José, até dois dias atrás eu achava que era a única pessoa que tinha sobrevivido. Hoje já achei mais três. Você não pode me culpar por ficar feliz.

-Mas estou. Por isso é que estou sendo um imenso babaca. Mas quer saber de uma coisa Carol. Eu afoguei em um oceano de bebida o meu passado. Quando acordei, eu não sei o porque, tive a chance de começar de novo. Se a vida de vocês era feliz antes, tudo bem. Podem ficar chorando diante de seus cadáveres pedindo que ele se levantem e lhes façam um café porque o mundo acabou. Eu não vou ficar sentado a beira do caminho. Preciso lembrar que eu existo.

Ela fica me olhando com uma imensa cara de "ué":

-Você quer ser a reencarnação de Erasmo Carlos?

-Hahahahaha. Essa foi boa! Não. É que eu era um bêbado. Desde que percebi a dimensão da catástrofe nunca mais tive vontade de beber. Ao ver você perto do moço foi a primeira vez em meses. Eu posso ser a pior pessoa que já existiu. Mas a verdade é que sou livre nesse mundo novo. Dane-se que a humanidade inteira morreu. Eu estou vivo. E sou feliz! Não vou jogar essa felicidade fora por nada nem ninguém. Então, mes ami, adeus também foi feito para se dizer: bye bye, so long, farewell.

-Cala a boca! Ela me dá o beijo e o abraço mais apaixonado que eu já recebi. Já me disseram que essa mania minha de ficar citando músicas é para mostrar conteúdo quando na verdade sou uma pessoa vazia. Não sei se é verdade. Só sei que o melhor lugar do mundo era dentro daquele abraço.

Depois de um momento que dura uma eternidade ela me solta e olha bem fundo nos meus olhos:

-Finalmente alguém que me entende!

Capitulo 15

Hoje o jantar foi quase normal, para dizer a verdade esquecemos por algumas horas que éramos os únicos sobreviventes, pelo menos até agora. Felipe trouxe um sopro de brisa, juventude e humor para nosso grupo, José Augusto estava sério, mas não carrancudo, parecia calmo e confiante e até a Carol parecia uma verdadeira dama, ela e José Augusto pareciam ter se acertado.

Comemos uma ótima refeição e em consideração ao José Augusto não consumimos nenhuma bebida alcoólica, ele estava sóbrio quase desde o começo da praga e não queríamos que isso mudasse. Conversamos, rimos, brincamos e fomos dormir felizes e relaxados.

Não consegui dormir então desci para fazer um chá e encontro com a Carol na cozinha.

- Sem sono também Lívia?

- Sim, deve ser a animação, faz tempo que não vou a uma festa.

Carol riu e me indicou a cadeira ao lado dela. Sentei e ela já disse:

- Posso te perguntar uma coisa?

- Claro...

- Você gosta do José Augusto?

Engoli em seco e disse meio indecisa:

- Claro que gosto...

- Não, eu quero saber se você está apaixonada por ele.

- Hum, não. Não estou apaixonada por ele. E você?

- Eu? Bem... Eu gosto dele, no começo me interessei por ele porque ele era o único homem que eu tinha por perto, mas agora que o Felipe chegou e é mais novo e mais bonito... Ainda assim continuo preferindo o José Augusto... Deve ser amor não é?

- Eu não sei, nunca amei ninguém.

- Sério? Nunca se apaixonou?

- Não... Eu era uma nerd dos computadores...

- Ah sei... E o Felipe?

- O que tem ele?

- Acha que pode se apaixonar por ele?

- Não sei. Mas como o José Augusto já é seu, o Felipe é minha única escolha, não é?

- Esse é o espírito menina!

Fiquei triste por ela não entender o sarcasmo...

Capitulo 16

Fiquei olhando para ele por bastante tempo. Como é bom estar apaixonada, até o ronco do outro parece música. E tão inexperiente, tadinho. Tenho que lhe ensinar todo o caminho das pedras. Mas me sinto tão bem ao seu lado. Ainda mais depois da conversa que tivemos ontem. A vida dele tinha sido tão sofrida, tão solitária. De certa forma igual a minha.

Desci na cozinha e sai na varanda para fumar um cigarro. Não conseguia dormir. Já tinha descido antes e conversado com a Lívia. O José Augusto sente algo por ela. Acho que ela também por ele. Que seja, já tratei de tirá-la do caminho. É... O papel da loira burra. Funciona com os homens e com as mulheres que se acham inteligentes. Ela é legalzinha, mas me fez ser aquilo que aprendi a detestar. Antes acreditava ser isso apenas uma coisa reativa. Todos me julgavam antes mesmo de conversarem comigo. Apenas agia como esperavam. Representar o papel que queriam. Mas depois da praga, e das enormes tardes e noites sozinhas com meus pensamentos, percebi como aquilo se entranhou na minha alma. Quando se representa um personagem por muito tempo o que te distingue do próprio?

Fico olhando a fumaça que sai da minha boca se dissipar na noite morna. Ainda bem que meu pai não sobreviveu para ver tudo isso. Era um apaixonado pela humanidade, pela vida. Vereador eterno da nossa cidadezinha. Só se elegia prefeito quem ele apoiasse, dirigia a única escola de samba da cidade, organizava as festas juninas e as outras importantes. Ele entrava em casa e o ambiente se iluminava. Tratava-a com extremo carinho e amor. Até os doze anos. A partir daí a relação foi se esfriando e o ciúme dele foi ficando quase paranoico. Uma lágrima desce solitária. Olho para o céu e peço desculpas para ele. Me sentia tremendamente angustiada com aquele distanciamento sem explicação. Quando entendi tentei machucá-lo de todas as formas possíveis. Ele sempre aguentando estoicamente e eu querendo que ele confessasse o inconfessável. O ódio que a minha mãe tinha por mim por causa disso tudo. Hoje sei o que ele sofreu. Mas por não querer me machucar acabou me traumatizando do mesmo jeito. Mas esta é apenas a cicatriz mais dolorida. Desde que me conheço por gente é sempre assim. E vou fazer o que? Reclamar que sou linda e gostosa? Não querer o que todo mundo quer? Involuntariamente coço a cicatriz que tenho no pulso direito.

Jogo a bituca longe. Porra de beleza do cacete! Abre todas as portas, desperta todas as invejas, escurece todos os julgamentos. Quantas amigas teve na vida? Nenhuma! Admiradoras e inimigas, só. Dos homens era aquela subserviência ou aquela avidez, igual a de lobo de desenho animado. Vou até a adega e abro um bom vinho tinto. Quem não pode beber é ele. Bebo um imenso gole. A imagem do Carlos me volta a lembrança. Desgraçado! Os tapas e murros que ele me deu ainda doem. E mesmo assim ainda tenho saudades. Ele entendia a minha solidão. E se aproveitava bem disso, aquele gigolô! Como o José parece entender, de uma forma esquisita e meio torta, mas tudo bem. Pelo menos não me sentia mais culpada por estar feliz ao meio de tanta desgraça.

Depois do desespero, das pessoas morrendo, dos saques, quando percebi que de alguma forma era imune a doença, me senti profundamente perdida. Mas isto se foi. Pela primeira vez desde a infância ninguém me abriu a porta ou me puxou o tapete só porque sou mais bonita ou porque me deseja. Vivia indo de cidade em cidade com minha moto, dormindo nas casas que um dia já tinham sido de alguém, imaginando suas vidas. Uma felicidade culpada. Ter encontrado essa turma foi a cereja de um bolo que até hoje nem eu mesmo conseguia entender porque é o mais gostoso que já comi.

Sou tirada dos meus devaneios por uma luz ao longe, como se fossem de faróis. Eles se apagam a uns cinquenta metros da pousada. Cinco minutos depois vejo nas sombras uma criatura quase que saída de um filme de ficção científica, com uma roupa branca de isolamento. E com uma espécie de arma nas mãos!

-Se abaixa Carol! José Augusto aparece do meu lado com um rifle e atira na estranha criatura. Fico paralisada e vejo que ele acerta o tiro. Imediatamente um invólucro encobre o "astronauta" deixando-o com a aparência de uma bola. De vários lugares da mata começam a serem disparados tiros em nossa direção.

-Carol, acorda os outros e vão todos para o caminhão. Agora, vai!

Quando entro os dois já estão acordados. Depois que explico que tem gente toda fantasiada atirando contra a casa, nós todos corremos para o caminhão. A Lívia pega o rifle dela e o Felipe o revólver que trouxera com ele. Quando saímos da pousada vejo uma cena que me recuso a acreditar. O tiroteio correndo solto e o José colocando a Dalila no baú! Essa relação com essa leoa vai ter que mudar se não quem vai virar uma fera sou eu! Subimos todos na boleia e saímos em alta velocidade.

-Todo mundo se segura! José joga o caminhão em cima de uma van parada no meio da estrada. Provavelmente a origem das luzes que tinha visto. De repente sinto uma dor aguda na perna direita. Só entendo o que aconteceu quando vejo o sangue:

-Acho que tomei um tiro.

José para o caminhão com tudo no acostamento. Sai correndo do lado do motorista e abre com dificuldade a do meu lado, emperrada por causa da batida. Me pega no colo e me coloca no asfalto na frente dos faróis. Na minha calça de pijama de algodão há um buraco e uma enorme mancha de sangue na coxa:

-E agora Felipe, o que a gente faz?

O moço o olha atônito:

-Não sei.

-Mas você não é estudante de Medicina, porra!

-Então, eu estudo porque eu ainda não sei.

Meu Deus, o José vai bater nele! Ele respira fundo e em um ímpeto rasga minha calça. Manda trazer para ele água. Lava a minha coxa e depois faz um torniquete com uma tira de tecido acima do ferimento. Com o resto do pano da calça manda eu ficar pressionando o ferimento. Me coloca de volta no caminhão:

-Felipe, você sabe onde é o hospital mais próximo?

-Sei, porque?

-Você acabou de tirar seu CRM e vai fazer sua primeira cirurgia!

Capítulo 17

Enquanto lavo as mãos como aprendi na faculdade imagino se fiz tudo direito, repasso mentalmente todos os passos para retirar um projétil incrustado em um osso. Minha sorte foi que o José estancou o sangramento e não se intimidou de me ajudar na cirurgia. Lívia quase desmaiou ao ver o sangue e nem quis entrar na sala de cirurgia. Ficou vigiando se os caras com os trajes espaciais iriam nos achar. Agora a Carol está dormindo, sedada, não sei se o sedativo que dei pra cirurgia foi muito, não estudei para ser anestesista, espero que ela esteja bem.

José tenta me animar dizendo que fui muito bem, mas tenho minhas dúvidas. Se ele soubesse que nunca quis ser médico, que não prestava realmente atenção nas aulas e pretendia sair da faculdade e só não saí porque as pessoas começaram a morrer aos montes e precisavam de toda ajuda possível. Só entrei para a faculdade de medicina para agradar meu pai que deu muito duro para que tivéssemos dinheiro o suficiente para que eu me tornasse doutor. Na verdade eu queria ser ator, cantor, dançarino, qualquer coisa que fosse criativa e me fizesse brilhar.

Demorei o máximo que pude para ir ver se a Carol estava bem, dei uma volta demorada em todo o hospital, chequei o estoque de medicamentos, peguei os remédios que ela iria precisar, dei uma olhada na cozinha, saímos tão rápido da pousada que não levamos comida nenhuma, logo iríamos precisar. Achei algumas coisas, quase nada. Procurei as máquinas de salgadinhos, doces e refrigerantes que tem aos montes em hospitais e peguei um estoque dessas bobagens e não tendo mais nada para fazer, voltei para o quarto. Tomara que ela esteja acordada, tomara, fiz uma oração mental.

Cheguei no quarto e a primeira coisa que vi foi que ela ainda dormia. José e Lívia estavam sentados no sofá ao lado da cama e pareciam conversar algo muito importante e íntimo que logo foi abafado quando notaram a minha presença. Verifiquei os sinais vitais da Carol e fiquei muito aliviado em perceber que estava tudo bem, mas não gostei da aparência dela, estava branca demais e não parecia estar dormindo e sim em coma, não queria me desesperar ainda, iria me sentar, distribuir meu estoque de salgadinhos e esperar.

Capitulo 18

Ela não pode morrer. Não pode. É muita sacanagem! Minha mente está um turbilhão de pensamentos conflitantes. Mas me mantenho impassível enquanto ajudo Felipe a remover a bala da coxa de Carol. O pouco que sei da área da saúde foi de um curso de auxiliar de enfermagem e dois anos trabalhando em um P.S. de hospital. E mais o que estudei de primeiros socorros para a eventualidade de algum acidente. Comecei a fazer quando passei a me estruturar depois da praga . Mas esse pouco conhecimento grita em coro com todos os meus instintos: Eta mediquinho ruim! Vontade de tirar a porcaria da pinça da mão dele e eu mesmo retirar a bala. Se eu não “sugiro”, o cara não coloca nem um soro em uma mulher que perdeu o tanto de sangue que ela perdeu. Calma, calma. Olho o rosto dela, era algo mágico. Os lábios grossos, os cílios grossos que contornavam aqueles olhos verdes encantadores, agora fechados.

Pensar que está deusa deitada agora nessa mesa cirúrgica pode gostar de mim. Para! Para! Tira este pensamento da cabeça. Era algo que já me decidi. Nada vale mais do que a oportunidade de reescrever meu destino que estou tendo agora. Acontecesse o que acontecesse. Ele finalmente conseguiu tirar o projétil do fêmur. Por sorte não atingiu nenhuma artéria, se não ela teria morrido. Agora é só suturar. Isso se o “Seu Doutô” conseguir parar de tremer a mão como se tivesse Parkinson. Coitada, vai ganhar uma cicatriz feia. Talvez não seja tão ruim assim. Vai torná-la mais humana, esteticamente falando.

O olhar do Felipe me procura buscando aprovação. Falar o que? Que o cara devia ter feito economia? Parabenizo-o pelo bom trabalho. Mas mais tarde, quando as coisas, e ele, se acalmarem, vamos ter uma conversa séria. Já faço a anotação mental de pegar tudo o que puder de livros e materiais básicos de medicina. Alguém vai ter que estudar este troço! Enquanto vou limpando-a e também a mesa e o resto da sala do pronto socorro, penso nesta confiança nova. Parece um tipo de superpoder, sei lá. Do pouco que me lembro de filmes e séries apocalípticas, os heróis sempre tinham sido algum tipo de líderes antes das desgraças. Mad Max era policial antes do mundo virar um deserto. Eu nunca disparei um tiro antes e acertei o cara em traje de isolamento de primeira. Talvez nem fosse isso o principal. Pressentir a chegada deles e suas intenções, ter mantido a cabeça fria durante o tiroteio, a ideia de jogar o caminhão na van deles. Nada que pudesse corresponder ao que eu era antes. Mesmo essa intuição. Desde quando ainda se transmitia a Voz do Brasil e eles pediam que os sobreviventes procurassem o governo, desconfiava que não era coisa boa. Mas no que poderia interessar aos que não foram infectados matar ou capturar os que sobreviveram à infecção?

-Felipe, ela parece estar estabilizada. Que tal levá-la para uma enfermaria.

-Boa ideia. Transferimos ela para uma maca usando um lençol e depois a levamos até uma enfermaria. Só há uma entrada para ela precedida por um corredor largo. Assim ficamos menos expostos a uma surpresa.

-Felipe, ela parece estar bem. Vou dar uma olhada na Lívia, tudo bem?

-Tranquilo, José. Pode ir.

Como se desse para ficar tranquilo com esse palerma. Vou até a porta do P.S. onde deixamos o caminhão. Lívia está lá, com um rifle na mão, olhando para todos os lados, assustada.

-Tudo bem, minha vigilante. Posso te contar um segredo. Essa sua pose e essa sua preocupação não vão adiantar nada.

-Porque não? Você mesmo que pediu para que eu ficasse aqui fora vigiando.

-Desculpe por essa. Eu estava desesperado. O Felipe, que deveria saber o que fazer, parecia uma barata depois de uma dose de detefon. Você parecia que ia desmaiar vendo o sangue da Carol. Foi a solução que eu achei. A verdade é que a cidade não é tão grande assim e esse era o lugar lógico para nos procurar. E o hospital tem tantas entradas que é besteira ficarmos vigiando qualquer uma delas. Agora que sabem que estamos armados e que os esperamos, vão ser mais cautelosos.

-E o que te torna uma autoridade nas intenções deles ou em estratégia militar.

-Nada. Absolutamente nada. Eu sempre gostei de ler, de assistir documentários. O que o povo chamava de cultura inútil. Muita coisa agora venho usando. Nunca plantei antes, mexi com energia elétrica, tive felinos de estimação. Nunca tinha pego em uma arma de fogo. Nem mesmo em jogos de fliperama. Não sou autoridade em nada. Mas tenho certeza de que ficar aqui olhando para as sombras não vai nos ajudar.

-Tá bom. Vou entrar. A Carol está bem?

-Até agora está. Vai dar uma olhada. Eu vou soltar a Dalila para ficar no seu lugar.

-Hahaha. Então não é inútil. Você só quer alguém com mais experiência.

-Não queria ferir seus sentimentos. Vai lá para dentro, você está despedida.

Vejo ela entrar mais relaxada. Um tremendo cara de pau ou um gerente de crises? “Nome? O que é um nome? Teria a flor outro perfume se tivesse outro nome?” Ou a merda outro fedor? Abro o baú e vejo minha leoa cheirando a caixa de metal onde estão os filhotes de capivara. Estes também devem estar famintos e o estoque de leite em pó só dá para hoje. Pego uma das capivarinhas e solto fora do caminhão.

-Boa caçada, Dalila. Ela parte que nem um foguete. Alcança sua caça menos de quinze metros de onde o caminhão está estacionado. Depois que a mata, faz menção de voltar com ela na boca. Gesticulo com as mãos:

-Vai Dalila! Vai! Come aí mesmo! Não traz para cá não. Ela parece entender e começa a comer em um gramado ao lado. Aproveito e limpo o grosso da sujeira da caixa e preparo uma mamadeira para as três que sobraram. Vou ter que inventar uma estória para a Lívia. Tomara que não tenha sido aquela que ela amamentou. De novo fico pensando nesta minha nova frieza (ou calculismo). Enquanto a minha leoa destroçava sua caça só pensava em um documentário sobre grandes felinos. Como uma epifania vejo a causa de estarmos sendo caçados. Sinto meu sangue congelar.

Encontro Lívia sentada chorando em uma poltrona na enfermaria onde a Carol está.

-Tudo bem?

-Tudo. Na verdade não. Estou assustada, José. Este tempo todo sempre pensei que na hora que encontrasse alguma forma de poder constituído, alguma coisa organizada, estaria salva. Agora justamente aquilo que era a minha esperança quer me matar. E eu não consigo imaginar o motivo! Se pelo menos eu tivesse a menor conjectura do porque eles querem me fazer mal eu não ficaria tão desesperada. Você consegue entender isso?

-Sim. Me sento ao seu lado. Como será que posso explicar o que eu mesmo estou me esforçando para entender.

-Eu tenho uma teoria meio louca. Uma vez eu vi um documentário sobre uma empregada doméstica irlandesa do começo do século XX que vivia em Nova York. Mary Mallon era o nome dela. Ficou conhecida como Mary Tifóide.

-Como? O que isso tem a ver com a gente?

-Você vai entender. Ela contraiu uma forma branda da febre tifoide na Irlanda. Quando imigrou não tinha nenhum sintoma. Infectou dezenas de pessoas antes de ser descoberta. A polêmica foi grande porque ela não era culpada de nada, mas mesmo assim teve que ser mantida segregada até sua morte, trinta anos depois. E na autópsia descobriram que ela ainda era capaz de transmitir a doença. Conhecendo essa estória, não fica difícil imaginar um motivo para que os que sobreviveram porque não se expuseram a superbactéria queiram matar aqueles que sobreviveram apesar do contato.

Vejo o horror se estampar na face de minha amiga enquanto ela compreende as implicações do que eu disse:

-Não devemos discutir isso com o Felipe?

-Por enquanto e pelo que eu vi, confio mais nos seus conhecimentos sobre medicina do que nos dele.

Nessa hora ele aparece com uma sacola cheia de salgadinhos, doces e refrigerantes. Encerramos o assunto e fingimos estar falando sobre a Carol.

Capítulo 19

Chegando do front, não pude nem descansar, logo fui chamado ao posto de comando. O Capitão me esperava ansioso:

- Como foi a missão, soldado?

Respirei fundo e soltei tudo de uma vez, nervoso:

- Tivemos uma baixa, Capitão. E um de nossos carros foi avariado.

- Como assim, tenente! A missão era para ser rápida e extremamente fácil. - Disse ele quase espumando pela boca, notei que uma veia bem no meio de sua testa estava bem saltada.

- Eles tinham armas, estavam alertas e se moviam com muito mais facilidade do que nós, esses trajes de isolamento são muito desajeitados.

- Não quero saber de desculpas! Tratem de achá-los e acabar o serviço! - Berrou ele e saiu da sala.

Sentei na cadeira mais próxima e tentei relaxar um pouco, antes de voltar e procurar os sobreviventes. Meu amigo, o tenente Gomes, entra na sala e diz:

- Fiquei sabendo do couro que vocês levaram dos sobreviventes...

- Pior cara, o Carvalho morreu. Está muito perigoso andar lá fora agora, não sei porque temos que capturar os sobreviventes.

- Quando "eles" fabricaram e soltaram a super bactéria não contavam que poderia haver pessoas imunes a ela, não tem como começar uma nova população com esses infectados ainda vivos lá fora.

- Então porque não podemos matá-los de uma vez? Porque temos que capturá-los?

- Porque "eles" querem estudá-los, antes de eliminá-los, saber o que tem no corpo deles que os fez sobreviver... pode ser útil para o repovoamento no futuro.

- Tanto faz pra gente né, estamos vivos ainda porque precisam de alguém que faça o serviço sujo pra "eles". Vou procurar esse raio de povo infectado antes que me julguem um inútil. Te vejo mais tarde.

- Ei, calma amigo! Cuidado com as palavras. Você vai acabar se complicando. A gente não sabe de nada ainda. Boa sorte lá fora.

Refiz meu esquadrão, peguei um carro novo, colocamos nossos trajes de isolamento e fui atrás deles. Tinha um palpite de onde encontrá-los.

Capítulo 20

Estou em uma imensa floresta e corro assustada. Sei que algo me persegue. A vegetação é fechada e me machuca enquanto a atravesso. Estranhamente não sinto dor, apenas uma pequena comichão na coxa direita. De repente caio em uma ribanceira. Devo rolar por uma eternidade. Quando finalmente consigo parar, não consigo mexer mais minhas pernas. Meu estômago todo se revira e sinto um enjoo enorme. De repente surgem do meio da mata os meus perseguidores. Cinco figuras vestindo trajes de isolamento. Carregam cintos de couro nas mãos. Sinto de longe sua maldade. Duas param e tiram seus capacetes. São minha mãe e minha irmã mais velha. Começam a gargalhar como loucas ou bruxas. Os outros três continuam avançando em minha direção. De alguma forma sei que são meu pai, meu irmão e Carlos. Grito desesperada.

Acordo arfando e toda suada. José Augusto está sentado na cama, ao meu lado, Estava segurando minha mão. Sinto uma náusea absurda. Rolo pela cama e tento vomitar no chão. Ele pega um lixinho e segura embaixo do meu rosto. Só sai bile, mas mesmo assim não consigo parar.

-Felipe! Felipe! Vem cá!

Ouço apenas o barulho da porta se abrindo. Pressinto que além dele, a Lívia também entrou. Que ótimo...

-Segura um pouco aqui a Carol que eu vou preparar uma medicação anti-emética. Qual você sugere? Sinto uma provocação no tom do José.

-Qual você costumava fazer no P.S. ?

-Em casos assim plasil intravenoso.

-Pode fazer.

Penso em reclamar, pois detesto injeção, quando percebo que em meu braço tem um acesso venoso com curativo.

-Põe alguma coisa para dor de cabeça. A minha parece que vai explodir. Falo quase em um sussurro. Lívia assume o lugar ao meu lado enquanto ele vai preparar a medicação. Volta depois de cinco minutos e instala um pequeno soro. Traz três barras de chocolate nas mãos.

-Pega um refrigerante para ela, Lívia.

-Mas eu estou muito enjoada, José.

-Assim que você melhorar um pouco você vai tomar sim. E vai comer esses chocolates.

Dez minutos depois realmente me sinto melhor. Estou deitada nas pernas de José enquanto ele acaricia meus cabelos. Ficaria assim uma eternidade apesar da cabeça latejando. Mas vejo o curativo na minha perna. Faço um esforço, sento, começo a comer um dos chocolates e peço que ele abra o refrigerante.

-No soro tinha dipirona?

-Tinha, duas ampolas. Mais plasil.

-E você não achou nenhuma máquina de café aqui, não é? Da próxima vez vão com calma com a morfina, está bem?

-Vejo que alguém era uma boa representante farmacêutica.

-Na verdade foi curando ressacas e acordando em P.S. mesmo.

-Hahaha! Igual a mim.

-José, falando sério. Quem eram aquelas pessoas que atiraram em nós? E onde nós estamos?

Ele dá um suspiro fundo. Olha bem fundo nos meus olhos. Já me preparo para dar um pití quando ele vier com alguma mentira bem intencionada para me acalmar.

-No hospital da cidade. Sobre aquelas pessoas, não sei. Acho que são os que conseguiram se isolar a tempo. Por algum motivo eles querem nos capturar ou matar. Na verdade, temos que sair daqui o quanto antes porque aqui é o local mais provável de nos procurarem.

Fico atônita por alguns instantes. Não tanto com o que ele fala, mas com sua calma.

-E você fala isso neste tom?! E por que não fomos embora ainda?

-Tínhamos que parar para cuidar de você. Agora podemos ir.

-Então quer fazer o favor de tirar a bunda dessa cama e vamos sair dessa merda, porra! Tento me erguer, mas sinto uma enorme vertigem e volto a me sentar. Ele se levanta e me deita.

-Calma, moça. A gente já vai sair. Mas eu não ia para lugar sem saber que a minha loira estava bem. Pisca um olho para mim e sai. Que desgraçado fofo! Meu ” protetor”. Estou lascada. Devia ter alguma outra coisa no soro, pois sinto-me sonolenta...

Acordo dentro de uma ambulância. Amarrada na maca pelos pulsos, pelos tornozelos e pela cintura. O Felipe está sentado ao meu lado. Tem duas almofadas sob minha cabeça.

-Precisava de tudo isso Felipe?

-Seu namorado se preocupa muito com você.

-Ele e a Lívia estão ali na frente?

-Não, ele está com a Dalila. A Lívia está dirigindo outra ambulância com as capivaras.

-Com a leoa? Sinceramente já não sei de quem tenho mais ciúmes.

Abre-se abruptamente a portinha de vidro que separa a traseira da cabine. José grita:

-Gente, se segura! Acho que vi um outro par de faróis de longe. A gente vai acelerar

Capítulo 21

Estou feliz em finalmente dirigir sozinha, só eu e os filhotes de capivara. Tudo estava tão confuso, tão assustador, a Carol havia sido baleada e estávamos fugindo de alguém, ou alguma coisa, eu não sabia direito. Fiquei feliz de deixar o José Augusto dirigir a ambulância que levava a Dalila, e a Carol ainda dopada em uma maca e o "doutor" Felipe supostamente cuidado dela. Precisava pensar, entender tudo, eu era uma mente da informática, que criava programas de computador, resolvia problemas, era tão fácil, certo ou errado, se estava errado eu consertava. Agora isso não servia para nada. Não conseguia consertar nada mais .

Vejo o José Augusto acelerando a ambulância, olho mais adiante e percebo que outro carro está vindo em nossa direção, que droga! Penso rápido e tento resolver esse problema. Piso bem fundo no acelerador e sigo o José Augusto de perto, vejo que ele toma um desvio antes que chegássemos muito perto do outro carro, percebo que o carro que está vindo é igual aquele que nos atacou, não vamos conseguir fugir, está muito perto.

Decido não seguir meu companheiro, noto que a ambulância é bem maior e mais forte que o carro que está vindo, então decido acelerar o máximo que posso e seguir em direção ao outro carro, seguro bem firme no volante e antes que eles pudessem desviar eu atropelo o carro com toda força. Quando me recupero do choque, dou a marcha ré e torço para a ambulância estar funcionado. Por sorte ela funciona na hora e antes que dê para ver o estrago do outro carro já estou tomando o caminho que o José Augusto seguiu.

Logo vejo que eles estão voltando, de certo para me procurar, passo reto por eles e dou sinal para me seguirem. Estou tão nervosa com o que acabei de fazer, a adrenalina corre pelo meu corpo e meu coração está a mil por hora. Sorrio ao pensar que poderia ter morrido, ou quem sabe ter sido capturada. Não é hora de viver com medo, se escondendo, se vamos continuar vivos temos que encarar os riscos e não ter medo de viver, realmente viver e não só sobreviver.

Capítulo 22

Inacreditável! Inacreditável! Um ano sem ver ninguém e a primeira pessoa que eu vejo simplesmente joga uma ambulância em mim! Saio do carro e olho o estrago. Toda a parte dianteira esquerda do pequeno sedã está amassada. A última cidade que passei foi a quinze km. A próxima não deve estar longe. De qualquer forma está mais próxima. Solto meu corpo no banco e o abaixo. O jeito é dormir até amanhecer.

Mas como? Era muita injustiça, no final das contas. Um velho de 60 anos sobreviver, enquanto sua esposa, seus quatro filhos e seus dez netos não. Ver toda sua família morrer, ver todos os seus amigos morrerem. E viver. Para que? Há seis meses rodo de cidade em cidade, procurando uma companhia. Alguém para conversar. Ah Meu Deus! Hahahaha! Fiquei tão feliz ao ver os faróis. Esqueci que não se aborda as pessoas a noite. Uma pequena surpresa nessa vida tão monótona. Pego um cobertor no banco de trás e jogo sobre mim.

Acordo, saio do carro e contemplo o amanhecer. De longe vislumbro os contornos de algumas construções. Eles estavam vindo de lá. Se tinham medo, é que existe algo para se temer. Melhor que nada. Ao longo da estrada começa a se delinear o contorno de um outro veículo. Uma van. Bem, sejam quem forem desta vez não tem porque me atropelar. Percebo que eles vão diminuindo a velocidade ao me verem. Param a uns vinte metros de distância e saem. Quatro pessoas vestidas de astronautas e com rifles nas mãos, apontando para mim:

-Não é a toa que os outros me atropelaram. Vocês assustam.

Um deles ergue um dos braços e todos param de avançar. Com outro abaixam as armas. É o líder deles. Sua voz sai como de um microfone:

-Somos representantes do governo. Procuramos sobreviventes. Mas não tivemos contato com a praga como vocês. Temos que nos proteger e temo que as roupas que usamos para isso assustem.

-Vocês, existem mais pessoas como eu?

-Já encontramos algumas, mas poucas quiseram vir comigo. Precisamos de vocês para achar uma vacina para a superbactéria.

-Quantos sobreviveram sem se infectar.

-Milhares que eu saiba. Talvez milhões pelo mundo todo.

Começo a chorar. Mesmo sendo apenas um professor de História, sei das implicações de ser uma cobaia. Mas, poder ser útil. O doce canto de sereia do martírio...

-Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, digam a todos que vou!

-Um sábio. Obrigado. Por favor entre na van. Homens, vamos voltar. Encontraremos nossos amigos um outro dia. Temos um convidado de honra para escoltar.

Entro na van. Eles me dão pão e uma espécie de refrigerante. De repente sinto muito sono...

Capítulo 23

Até que enfim um dos sobreviventes se entregou sem brigas, tiros e fugas, se bem que esse era um idoso já, devia estar cansado da vida, devia esconjurar os céus por ter sobrevivido e além disso o coitado tinha sido atropelado pelos outros sobreviventes em fuga, de certo pensaram que éramos nós.

Estamos voltando para o front, não vamos seguir os outros, já temos um para mostrar para o general. Olho para trás e vejo o senhor capturado, resignado, com as mãos cruzadas no colo, olhar perdido, não sei se no futuro ou no passado, mal sabe ele o que o aguarda. Chego a sentir pena dele, definitivamente eu não sirvo para esse trabalho.

Quando chegamos, antes de retirarmos nosso traje de isolamento mandamos o sobrevivente vestir o traje que estava preparado para ele, não tivemos resistência. Levamos a vítima para a área especial , onde só os médicos tinham permissão de entrar e lá me despedi do pobre senhor cansado da vida. Diferente dos outros que passaram por ali para nunca mais voltar, esse senhor não gritou, não chorou, nem esperneou, olhou para mim com um olhar calmo e perguntou:

- Esse é o meu fim, não é?

- Claro que não, senhor, só irão fazer uns testes...

- Não minta para mim filho, tenho idade para ser seu pai, fale a verdade, por favor.

Engoli em seco, não sabia o que responder.

- Não sei exatamente o que acontece lá dentro, só sei que nunca mais ninguém voltou...

- Obrigado filho, não se preocupe, faz tempo que quero estar perto dos meus que já morreram...

Entrou com uma calma que beirava a ansiedade de rever seus entes queridos. Eu não aguentava mais isso, se "eles" soubesse que eu queria estar lá fora, ser um dos sobreviventes ao invés de caçá-los, provavelmente logo eu seria exterminado também.

Saí sozinho com a desculpa de coletar informações sobre o paradeiro do grupo que perdemos, na verdade eu estava mesmo indo atrás deles, só que não iria entregá-los, queria conversar com eles, quem sabe até me aliar a eles... Sabia que "eles" logo saberiam mas estava disposto a tentar.

Capítulo 24

Ficou excelente a janela extra que construí no sótão da mansão. Dá para ver quase todo o entorno dela. O sistema de alarme também é bom. Antigas campainhas que funcionam com pilhas. Uma maravilha. Pena que praticamente inúteis. Como quatro pessoas podem se precaver de um ataque? Como que para corroborar meus pensamentos uma estrela cadente risca o céu. Não consigo pensar em um pedido. Falo olhando para o céu:

-Deixo para Você escolher. Até agora não posso reclamar de nada.

Olho para o quintal e vejo uma sombra passeando. Dalila está solta, alimentada com pouca carne várias vezes ao dia. Afinal, mesmo tendo se mostrado útil e fiel, continua sendo uma leoa. A única coisa que segura uma gata em casa é comida. Que falta fazem os cachorros! Me pergunto se a praga atingiu os gansos. Uns três deles, se conseguir fazer com que ela não os devore, seriam muito úteis. Depois que dormir um pouco, vou atrás de um. Talvez chame alguém para vir comigo. Ah, como seria bom sair com a Carol. Mas não posso. Ela ainda está mancando do tiro que tomou faz dez dias. Iria parecer que quero afogar, não capturar, o ganso.

Dou risada. Meu Deus, como é chato ficar aqui em cima! Não é a toa que o cesto de vigia no alto do mastro principal das antigas caravelas tenha adquirido significado tão intenso. É um caralho ficar aqui neste caralho...

-Para quem tem que ficar vigiando, você está muito desatento. O que é tão engraçado?

Olho para trás. Nossa, não me canso de admirá-la. Como ela é linda! Realmente estava distraído para não escutá-la chegando. Está sentada na penumbra, em uma cadeira ao lado da escada. Dou mais risada ainda:

-Você tem um senso de oportunidade excelente, hein minha loira? Estava pensando em você.

Ela vem em minha direção mancando e com a mão na coxa direita:

-Por isto estava tão distraído? Me abraça e me beija. E o que eu tenho de tão divertido?

-Posso listar um caminhão de coisas. Estava pensando como é ruim ficar aqui e que precisamos de um sistema de alerta mais eficiente. Queria ver se ainda existem gansos para a gente deixar por aqui.

-E o que isto tem a ver comigo?

-Queria sair com você. Mas quem ia acreditar que eu queria capturar a pobre ave.

Ela me olha com uma expressão típica feminina que eu nunca consegui definir. Não sei se é chateação, sarcasmo, o que é. Este franzir das bochechas, olhar sério...

-Não acho graça. E se fosse, o que eles tem a ver com isso?

-Já te expliquei isso. Por mais que eu não queira, acabei liderando. Então tenho que agir como líder.

-Isso não te dá o direito de fazer o que quiser?

-Eu falei líder, não chefe. Aliás, deixa eu dar uma olhada em volta. Ponho os binóculos, que estão seguros no meu pescoço por um cordão, nos olhos e observo o horizonte. Sinto aquela pequena convulsão de novo. A ansiedade, o "frio na barriga", a taquicardia. Uma parte da mente parece que começa a funcionar sozinha: Será que fui rude?

-Como está sua perna? Está doendo?

-Depois de subir esta escada, o que você acha? E não mude de assunto. Me abraça por trás e beija o eu pescoço. Desencana, querido. Você não é Presidente da República. Só está em um grupo de quatro pessoas que querem sobreviver. Só isso. E ninguém te elegeu chefe de nada.

-Verdade, verdade. Mas por enquanto sou. Largo o binóculo e correspondo ao abraço. Quando encontrar outro otário para fazer o serviço, vou cuidar só do que interessa. Dou um beijo demorado e lhe aperto junto a mim. Ela me empurra:

-Me larga e vai fazer o seu trabalho, vai! Vou olhar por outra janela. Ao longe começam a romper os primeiros raios de sol do amanhecer. Isto quer dizer que meu turno de quatro horas está acabando. Dou um grande bocejo:

-Tomara que a Lívia já esteja acordando. Dá última vez ela atrasou meia hora. Estou morrendo de sono.

-Duvido. Quando subi estava roncando. Estou sem sono, fico no lugar dela.

-Tem certeza?

-Eu não sou de porcelana não, viu. Ei! O que é aquilo?

Olho para a direção que ela aponta. Uma luz bruxuleia por entre as casas e muros ao longe. Olho com o binóculo e consigo distinguir que são dois faróis. Toco o alarme e entrego os binóculos para a Carol:

-Não perca eles de vista! Saio correndo pela escada. Vou até a sala de entrada onde deixei um fuzil carregado. O pego e saio gritando pela casa:

-Acordem! Acordem! São eles, acordem!

Capítulo 25

-Meu Deus, como estes caras conseguiram escapar?

Faz duas horas que estou aqui, a dois quilômetros deles, e ainda não me perceberam. É muita ingenuidade deixarem luzes acesas em um mundo em que não existem mais pessoas. O posto de observação deles é no sótão. Nossa, a hora não passa. Mas tenho que esperar, se chegar perto a noite vou acabar tomando um tiro a toa.

Saio com a van quando surgem os primeiros raios de sol da alvorada. Passeio bastante de um lado para o outro com os faróis ligados, até ter certeza que eles me perceberam. Paro a 500 metros da casa e continuo o percurso a pé. A uns trezentos metros ergo meus braços. Sai um homem com um fuzil apontando para mim:

-Parado aí! Nem mais um passo!

-Calma, calma. Venho em paz.

-Nós já experimentamos da sua paz. Quem me garante que seus colegas não estão ao nosso redor?

Bem, chegou a hora da verdade. Nunca imaginei que estaria tão calmo. Lentamente tiro meu capacete:

-Por isso. A partir de agora nunca mais vou poder voltar. Estou contaminado.

Ele me olha estupefato. Saem um moço e uma mulher de detrás de um muro. Também estão me apontando fuzis. Provavelmente a vigia deve ter um:

-Vocês podem parar de mirar esses troços em mim Aposto que devem ter aprendido a usar eles ontem.

Capítulo 26

Um caminhão baú e uma van trafegam tranquilamente pelas estradas desertas, José Augusto dirige o caminhão, com Carol ao seu lado e Dalila no baú. Lívia dirige a van, com Felipe ao seu lado e o soldado dormindo no banco de trás. Todos estão em silêncio, um silêncio pesado, cheio de fúria, pensamentos turbilhonados, desejo cego de vingança.

O soldado havia contado tudo para eles, o plano para a aniquilação dos cidadãos irrelevantes para a nova sociedade, a escolha de quem seria relevante e as instalações secretas à prova de contaminação construidas para essas pessoas. Contou sobre a captura dos sobreviventes para "estudo" e descarte e o mais importante, disse como deveriam se proteger. Pegar as estradas menos importantes, se dirigir para o lugar mais isolado da antiga civilização e acima de tudo, usar a cabeça para descobrir formas de achar outros sobreviventes, talvez futuramente formar uma discreta, quase invisível, resistência.

José Augusto pensava em como conseguir transformar um bando de pessoas comuns em soldados treinados para a resistência, Carol imaginava onde poderiam conseguir um esconderijo seguro o suficiente, Lívia tentava controlar um desejo borbulhante de vingança, se ela pudesse, exterminaria os exterminadores, Felipe se queixava mentalmente de não ter prestado atenção nas aulas de medicina, de não ter se esforçado para ser um bom médico, agora todos dependeriam dele para emergências médicas e estariam ferrados, o soldado continuava a dormir.

Lívia chama o soldado uma, duas, três vezes e nada, então pede para Felipe ver se ele está bem, Felipe se solta do cinto de segurança e vai até o banco dele, toca em sua testa e vê que está ardendo em febre. Assustada Lívia pega seu walkie talkie e chama José Augusto.

- O soldado pegou a bactéria.

- Tem certeza?

- Ele está com muita febre.

- É o começo, não tem mais chance para ele.

- O que vamos fazer?

- Nada, enterramos quando ele morrer.

Continuaram a viagem, ainda em silêncio, rumo a nova vida inimaginável que levariam daqui em diante.

Fim da temporada

Aristoteles da Silva e Priscila Pereira
Enviado por Aristoteles da Silva em 04/09/2016
Reeditado em 26/10/2016
Código do texto: T5750411
Classificação de conteúdo: seguro
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