Fé Cega
Dizia um profeta que se o seguissem em uma jornada longa e árdua, onde muitos pereceriam, os sobreviventes seriam recompensados em um céu parasidíaco.
O povo seguiu seu mestre através do deserto de lava.
Duas gerações o seguiram.
Centenas de mortos considerados mártires para os que prosseguiam.
- A jornada esta quase no fim! – anunciou o mestre.
Todos choraram, emocionados.
Eles recolhiam as lágrimas e bebiam, assim como faziam com o suor e a urina de seus corpos.
Bebiam também a água envenenada de enxofre, que fervia no meio das ilhas de magma endurecido.
Quando um pai ou irmão caía durante a jornada, atiravam seu corpo na lava.
Vagavam a sessenta anos no deserto de fogo.
Alguns já tomados de instintos animalescos sangravam e bebiam a vida líquida de seus irmãos, comiam os restos mortais de seus familiares.
Os poucos que assassinaram com esse fim, descobertos, eram atirados ao mar de lava.
O restante do povo se alimentava da terra rica em nutrientes, pois lá não havia animais e tampouco plantas.
Agora chegavam ao fim da jornada, ao pé de uma montanha.
Uma ponte os levaria daquele inferno.
Por três dias e três noites escalaram as encostas, quanto mais próximo do alto menor era a temperatura e mais respirável o ar.
Sentiam-se felizes, pois estavam cada vez mais perto de Deus.
A decepção não tardou a acontecer.
Uma fissura de vinte metros separava a montanha em duas.
Ao fundo ouvia-se o borbulhar da lava.
O único meio de atravessar, uma ponte velha e estreita, desabara havia há tempos.
O povo começou a se lamentar, com gemidos rasgavam a própria roupa e cobriam a cabeça de cinzas.
Os homens arrancavam suas barbas e clamavam aos céus uma solução.
O mestre, o antigo profeta se pôs a gritar exigindo silêncio.
- Que tipo de gente é você? Esmorecem diante da última prova do seu Senhor? Se for assim melhor que morram! Fervam na lava! – gritou ele.
Havia falado mais naquele momento do que nos últimos quarenta anos.
As pessoas olhavam para o mestre.
Teria ele enlouquecido?
- Mas mestre... Como atravessaremos? – perguntou um ancião.
O velho líder o encarou com um brilho no rosto.
Tomando de seu cajado, para espanto de todos, começou a caminhar em direção ao vazio.
Não acreditaram em seus olhos quando ele andou sobre o ar.
Rapidamente estava do outro lado.
- Fé! Quem se apóia cegamente ao braço do senhor não cai! – esbravejou ele.
O povo começou a correr como uma massa compacta, mas caiam como pedras consumidas no mar de lava.
Pararam assustadas, algumas dezenas já haviam se sacrificado em vão.
Hesitavam, ninguém queria ser o próximo.
Visivelmente irritado o mestre gritou:
- Será que há um entre vós que crê de verdade?
O silêncio tomou conta deles.
Derrepente um grito.
- Eu! Eu acredito! – berrou um rapaz.
O povo abriu caminho enquanto o jovem quase em transe atravessou o nada.
Podia-se perceber o profeta sorrindo ao abraçá-lo.
Virou-se para a multidão.
- Mais alguém tem fé? – perguntou com satisfação.
A turba se atirou às centenas, caindo como um turbilhão, dissolvendo-se no magma.
Tinham apenas um pensamento em sua mente - Não eram dignos!
Um pequeno grupo ficou na margem da encosta, sem coragem de tentar a travessia. Sem coragem de voltar.
- Vamos meu filho você “é” o escolhido! – disse o mestre com carinho.
Estava feliz e orgulhoso.
Ajoelharam em altar antigo e sumiram num turbilhão de luz.
O pequeno grupo que ficara pra trás clamava em vão.
Deus não os carregaria em sua mão suave.
Ficaram lá ainda por um longo tempo, e logo ouviram um estrondo ensurdecedor.
O local onde o mestre e o rapaz sumiram foi despedaçado e um círculo de luz emergiu, alcançando o céu sem dificuldade.
Os que foram deixados para trás ficaram dias e dias clamando em desespero, até resolveram voltar.
Apenas um chegou vivo após retornar por sessenta anos vagando pelo deserto de lava.
Sua história foi escrita em um pergaminho de uma religião secreta.
O rapaz escolhido por sua fé cega abriu os olhos devagar.
Flutuava em um lugar iluminado onde reinava uma atmosfera agradável.
O mestre a sua frente tocava símbolos que flutuavam no ar.
- Finalmente após quase mil anos terrestres vou poder sair daqui!Com o remendo de diamantes reforçados o casco da neve vai agüentar até chegar a minha galáxia!-disse ele.
O jovem se esforçou para chegar mais perto de seu mestre.
- Quando veremos Deus? - perguntou ele.
Uma risada que não poderia ser de nada humano foi ouvida.
- Você não verá seu Deus primitivo tão cedo, mas sua forte energia psíquica me dará o impulso necessário para sair de seu maldito sistema planetário! – disse o profeta com voz sibilante.
- Você não pode ser o mestre! - Gritou o rapaz subitamente assustado.
Tentou se afastar só para descobrir que estava imobilizado.
A misteriosa figura tirou o capuz, e ao invés da figura barbada e fraternal, um rosto de pesadelo.
Semitransparente, tinha a boca fina e sem lábios, os olhos imensos e negros sem pálpebras pareciam mais com os de um inseto.
- Não!Onde está o mestre? – gritou o jovem.
O ser apertou um símbolo de tantos que flutuavam ao seu redor, e glóbulos de luz começaram a envolver o rapaz.
Seu corpo foi desintegrado.
Primeiro a pele, depois o sangue, a carne, músculos e ossos.
Estranhamente apenas o cérebro ficou exposto.
O alienígena tocou outro comando e a valiosa energia psíquica começou a ser drenada.
Tocou em mais um comando e a nave alcançou o hiperespaço, próxima à velocidade da luz.
Disse para si mesmo com amargura na voz alienígena:
-Seu mestre nunca existiu. Assim como não existe seu Deus. Havia apenas um coletor de dados de uma civilização distante, que por infortúnio caiu no seu planeta.
A nave espacial corta o espaço se afastando cada vez mais de nosso sistema estelar.
“De cada milhar que me procura
Um me segue
De cada milhar que me segue
Um me conhece
De cada milhar que me conhece
Um me alcança
De cada milhar que me alcança
Somente um sentará ao meu lado
No trono do Pai”