O Oráculo de Kerup
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Já há muitos séculos quase ninguém anda pelo centro da galáxia. Depois das guerras imperiais e da grande destruição, praticamente nada restou. Interessante que a vida continuou agitada e incessante nos extremos da galáxia, como se a guerra sequer houvera existido. A queda e desmembramento do império aconteceram em quase duzentos anos. Durante cinquenta anos após a destruição total do planeta Honor Regis e o final da linhagem imperial, ainda ocorriam ferozes batalhas em alguns planetas da periferia do império. Foram quase cinco mil planetas lutando por ideais que nem mesmo eles poderiam descrever com precisão. Após cem anos, com as grandes esquadras aniquiladas, foram formados inúmeros micro impérios, pequenos reinados, mas principalmente, uma infinidade de federações, grupos, alianças e coligações; não mais se podia definir como uma guerra universal, mas centenas de pequenas guerras, com os mais variados interesses. Filósofos viraram generais. Generais viraram reis. E lentamente o equilíbrio novamente atingiu a galáxia. Muito se perdeu. Floresceram grupos de piratas e saqueadores. Por isso, raros planetas permaneceram isolados, distantes de algum grupo de proteção.
Um dos poucos planetas independentes que não foi destruído é Kerup, da constelação Ophiuchus, no centro da via láctea.
É um planeta de terceira categoria que quase não sofreu com a guerra, pois não tinha nenhum valor estratégico militar ou tecnológico. Era praticamente desértico e sua cultura era pobremente agrícola, controlada por alguns monastérios. Para Kerup, o maior prejuízo com a guerra foi a interrupção do comércio, acentuando o isolacionismo já existente.
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Hoje, a única linha comercial para o planeta é o voo trimestral vindo da Confederação M14, mais especificamente do planeta Niu 3. A nave deve ter perto de cento e cinquenta anos de idade e as cores branco e azul claro da confederação não escondem o péssimo estado da fuselagem. O estado decrépito da nave combina bem com o espaço-porto de Kerup.
A nave aterrissou a um quilometro do barracão que serve como departamento de alfândega. Um quilometro de pó vermelho e seco a ser percorrido a quarenta graus centigrados. O sol, aqui, exprime a real noção do que é uma bola de fogo. Sob um céu azul claro, límpido e sem uma nuvem sequer, cada passo levanta uma pequena nuvem de poeira vermelha. Quando o viajante chega ao posto de alfândega está completamente vermelho. A roupa está vermelha, a mochila está vermelha, a poeira fina e vermelha parece entrar em cada poro. Para qualquer pessoa acostumada a um mundo temperado, isto é um verdadeiro inferno. Por trás de um balcão simples de madeira, já gasto pelo uso, um funcionário gordo e sonolento, trajando uniforme caqui amarrotado, examina os documentos e devolve-os melados de suor e pó vermelho. Com um sorriso desdentado dá as boas-vindas a Kerup. Desceram quatro: o capitão, dois tripulantes e um passageiro. O capitão saúda o funcionário com ar de velhos conhecidos.
- Ainda tem uma cerveja gelada escondida, Fagundes?
Um tremor no canto da boca até então sorridente foi o primeiro sinal. Estendeu-se a pálpebra direita e terminou com um berro: - Seu verme niusiano, nunca mais me chame assim, meu nome é Antônio. Entendeu? Antônio.
O capitão, o fitou sério, com a mão sobre o coldre, ambos estáticos por alguns tensos segundos, parecendo inevitável o confronto, quando ambos caíram em gargalhadas. - Seu imbecil microcéfalo, pegue logo a cerveja. - O gordo kerupiano vai até a geladeira, e volta balançando a barriga flácida e trazendo algumas garrafas. Logo estão os cinco bebendo e rindo em volta da pequena mesa. Antônio colocou uma toalha xadrez, porém tão suja e ensebada que melhor seria ter deixado a mesa nua. A cerveja gelada caiu maravilhosamente depois do calor e da poeira. Após comentar o óbvio com o capitão, de onde veio, o que tem feito, o interesse recaiu sobre o único estranho no grupo, o passageiro. Todos o olham curiosos quando o funcionário da alfandega pergunta: - Então Sr. Johnson, o que o traz a Kerup?
- Eu sou... antropólogo, - as mãos inquietas tiram e colocam repetidamente os óculos de aro grosso, que dão a ele um ar intelectual, - estou com um estudo de campo sobre as antigas religiões da galáxia e os monastérios deste planeta podem me trazer uma luz sobre grandes dúvidas anteriores a guerra. Grande parte dos registros na maioria dos planetas civilizados foram destruídos, entretanto Kerup praticamente não sofreu ataques com a guerra. Tenho muita esperança de conseguir avançar nos meus estudos com os monastérios locais.
Imediatamente voltam-lhe à lembrança suas pesquisas, quase dez longos anos viajando por planetas inóspitos, primitivos, destruídos, radioativos, enfim, todo tipo de perigo possível atrás de simples pistas. Inúmeras vezes a viagem resultou apenas em perda de tempo e dinheiro. Mas juntando rastros, indicações nem sempre confiáveis, avaliações incompletas de fragmentos de pergaminhos, tudo levava a Kerup. Os indícios não podiam estar tão errados.
- Sinto desanima-lo, mas acho que perdeu a viagem Sr. Antropólogo, - continua o gordo funcionário, entre um arroto e uma cuspida no chão imundo, - primeiro porque aqui não tem nada além de poeira vermelha e segundo porque os monastérios não recebem ninguém. Na verdade, ninguém conhece sequer a aparência dos monges, até os víveres levados quando da chegada da nave são deixados numa área reservada e o pagamento é recebido por uma fenda na porta.
Após mais alguns minutos de conversa e terminando de beber toda cerveja, os tripulantes e o passageiro deixaram o barracão da alfândega em direção à pequena vila. Mais mil metros em uma escaldante trilha irregular de areia e pedras soltas. Após um leve aclive, já se pode visualizar a pequena vila no fundo de uma baixada. A primeira impressão é péssima, infelizmente as impressões posteriores também. Visto do alto, o povoado parece um labirinto. Entre caminhos estreitos e irregulares sem nenhum ponto de referência, apesar de minúscula, a vila certamente desorienta qualquer um. O capitão Albert levou-os, entre ruelas de casas baixas de pedras vermelhas, até a única estalagem que também é o melhor bar local. Apresentou o Sr. Johnson ao proprietário, um senhor de idade indefinida, nariz adunco e olhar arguto. A pele morena condizia com uma vida sob o tórrido sol kerupiano. Ele cobrou de Johnson três meses de hospedagem adiantado, visto que a nave partiria no dia seguinte e quem ficasse somente sairia do planeta no próximo voo para Niu3, três meses depois. Após deixar o capitão e os tripulantes em um alojamento comunitário com várias camas, seguiram por um corredor mal iluminado. Alguns metros à frente, o estalajadeiro abriu uma porta e mostrou o quarto simples, com paredes de pedras irregulares. Incluía um catre com um lençol quase branco, no lado oposto, uma mesa com uma cadeira e no canto uma pia com um copo. A ventilação se dava por uma janela basculante com um plástico translúcido quase na altura do teto.
– Esse é nosso quarto de luxo senhor, com banheiro privativo.
Pela porta do banheiro pode ver um vaso sanitário e um chuveiro de agua fria. O lugar era tão pequeno que podia tomar banho sentado. Sozinho, a primeira coisa que Johnson queria era tirar a poeira vermelha do corpo e após um demorado banho, deitou-se exausto, observando absorto um inseto que se escondia na ranhura das pedras da parede, todavia sua mente estava nas dificuldades que teria para entrar no monastério, quando bateram à porta. Antes que ele pudesse levantar, a porta abriu-se e o rosto magro do estalajadeiro apareceu.
- Só para lembrar senhor, se precisar de algo, como uma companhia, uma bebida, alguns gramas de "ilusion", por uma pequena quantia posso lhe conseguir, - sussurrou, - não quis comentar na frente dos seus companheiros, pois não sabia quais podiam ser os seus “desejos” - sorriu malicioso. Rápida e silenciosamente, o homenzinho fechou porta.
As propostas chegaram a tentar, mas não, ele não podia se expor assim logo na chegada. Não depois de tanto tempo limpo. Houve um tempo em que o nome do Dr. Johnson Milibides era reconhecido na comunidade científica planetária. Foi um conceituado antropólogo e arqueólogo e suas aulas sempre foram concorridas. Isso claro, antes de conhecer "ilusion". Devido as aulas e pesquisas pela universidade do planeta Barnard ocuparem tanto do seu tempo, ele mal percebeu a insatisfação da esposa que, não suportando sua ausência em casa, foi embora levando a filhinha. Sua justificativa sobre quanto o trabalho o absorvia e a obrigação de estudos e capacitações permanentes não a convenceram. Ao contrário do que parecia, uma boa casa, uma razoável conta bancaria, um aero de luxo, não foram suficientes para segura-la. Após a separação, a falta do apoio que sempre teve e inicialmente ele achava desnecessário, o cansaço de noites mal dormidas, acabaram levando-o ao caminho mais fácil. Pouco no início. Usado apenas como energético. Até estar irremediavelmente dependente. Jamais estaria aqui se não fosse a amizade do padre Julius, que trabalhava junto a dependentes químicos. Nessa época estava no fundo do poço. Um farrapo humano. Prestes a ser demitido, conseguiu manter seu emprego pela influência de amigos que ainda acreditaram nele. Longas conversas o levaram a tomar consciência e desejar sair da situação em que se encontrava. E também devia a ele a origem desta investigação que já lhe tomou dez anos. Suas discussões sobre deidades e verdades foram tão estimulantes que resolveu partir para campo. O princípio das religiões, os messias, os profetas, onde está a verdade ou as verdades? Uma década se passou e pouco avançou, mas conseguiu algumas pistas. O próprio padre Julius veio de Kerup. Ironicamente, ele nunca havia contado isso.
Seus pensamentos voltam para a realidade. Para quem nunca esteve em Pueblo Rojo, a capital de Kerup, é uma vila de aproximadamente mil habitantes. Já chegou a ter quase dez mil almas. As ruas estreitas e tortuosas com calçamento de pedras desiguais e espremidas entre as casas baixas, parecem obra arquitetônica de uma criança. Atualmente tem um pequeno comércio decadente, condicionado ao voo comercial de Niu 3, uma grande pedreira, algumas minas, sendo a maior parte delas abandonadas e poucas fazendas próximas, alguns bordeis, nada diferente de qualquer vila. O apogeu da vila foi conseguido com a descoberta de opalas iridescentes de grande valor, embora alguns mineiros empedernidos teimem em afirmar que a maior jazida ainda não foi descoberta, todas análises afirmam que o veio já esgotou. O maior perigo do planeta não está nas minas, mas em campo aberto, nos desertos. As minhocas do deserto (Eisenia kerupiana), monstros que na fase adulta alcançam de quarenta e cinco a cinquenta metros de comprimento, navegam pela areia como se fosse água, são violentas, sendo quase impossível defender-se delas ao surgirem inesperadamente do chão. Como sua parente distante, a minhoca comum (Eisenia foetida), tem o formato cilíndrico e rastejam tanto na superfície como abaixo dela, surgindo subitamente. Pouquíssimos estudos existem a seu respeito, porém sabe-se de reações inesperadas, podendo ser extremamente agressivas. No entanto o que mais interessa nesse planeta são os monastérios que constam serem seculares, anteriores a grande guerra. As pesquisas do Dr. Milibides mostraram uma particularidade, todos grandes religiosos, profetas, messias, sem entrar no mérito da veracidade de sua crença e independente de sua religião, passaram por Kerup. Mesmo os que não estiveram por grande período, pelo menos tiveram uma passagem pelo planeta santo, como é por alguns chamado. Em suas investigações foram desenterradas também algumas lendas. Dizem que o grande monastério tem um oráculo que encerra todo conhecimento do universo e responde a qualquer pergunta. Consta ainda que nos primeiros conflitos da guerra imperial, o imperador perdeu uma frota de duzentos cruzadores e mais de cinco mil corvetas para defender Kerup. Fica a pergunta: por que, se o planeta não representava nada? Depois da batalha de Ophiuchus como foi chamada, a estratégia da guerra foi direcionada para o quadrante do planeta do imperador, Honor Regis, e Kerup foi novamente esquecido.
O catre duro não atrapalhou o sono de Johnson. Habituado a pouco conforto em suas viagens, acordou bem-disposto e faminto. No refeitório soube que o capitão e os tripulantes já tinham partido. Fazer refeições sozinho não era incomum para ele. Mesmo quando docente na universidade de Barnard, sempre se alimentava sozinho. Tido como esquisito por seus pares, nunca foi totalmente aceito. Todos o cumprimentavam, mas ninguém sentava a sua mesa. Poucos reconheciam sua genialidade. Um sorriso sardônico iluminou sua face quando imaginou que ainda haveriam de aceita-lo, não como um igual, mas como uma mente brilhante, superior. Com um chacoalhar de cabeça expulsou as memórias e sentou-se para o desjejum. Assim que terminou o café, pediu ao estalajadeiro indicações de onde comprar material e mapas para uma viagem.
3
- Ele está chegando.
- Bem antes do previsto. Por que não fomos notificados com antecedência?
- Desculpe eminência, nosso informante perdeu contato quando Dr. Milibides deixou o planeta Barnard sem avisar a universidade. Pensávamos que ainda permaneceria na pesquisa teórica por algum tempo.
- Não pensem, apenas informem - o timbre rouco da voz do prior tem o efeito aterrorizante, emudecendo o jovem eclesiástico. O aposento pouco iluminado era bem conhecido do jovem, pois ali o atendia sempre, a sua frente o prior encontrava-se sentado em uma cadeira de madeira escura de espaldar alto com uma escrivaninha cheia de papeis e pergaminhos.
- Seu avanço precisa ser impedido a qualquer custo – murmurou quase inaudível o prior. Surpreendeu-se por ter sido ouvido, quando o noviço respondeu: - Ele vem pelo deserto, eminência, poucos conseguiram fazer essa travessia.
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Dunas vermelhas era tudo que ele via. Como se fosse um mar de areia, tão-somente a mesma paisagem para qualquer lado que se olhasse. Johnson andava devagar, seguindo o conselho dos nativos, procurava andar por partes rochosas, evitando as baixadas arenosas. A sua volta o vento brincava em redemoinhos tornando ainda mais difícil sua marcha. Já fazia seis horas que havia deixado a vila, contrariando a indicação dos nativos preferiu o caminho reto através do deserto pois seria uma jornada de cindo dias contra outra de duas semanas seguindo pelas montanhas. Todas outras recomendações foram rigorosamente seguidas, como os víveres a serem comprados para a jornada. Visto ao longe parecia um kerupiano enrolado em pesados mantos, que mantinham a temperatura corporal de trinta e sete graus, bem melhor que os cinquenta graus externos. Seus lábios já apresentavam rachaduras e sua pele descamava em alguns pontos. “Não vou sobreviver a mais um dia nesse inferno”, pensou. Suas pernas enterravam-se até a panturrilha na areia enquanto andava pela encosta de uma duna, sempre subindo. Ao atingir o cume pode vislumbrar uma região de terra firme com árvores a alguns quilômetros ao norte. Desviaria alguns graus de sua rota, mas mesmo assim seria interessante para uma parada segura. Colocou mais uma “pastra” na boca. A pequena fruta esverdeada, semelhante a uma uva, vai soltando liquido lentamente, dando a sensação de aliviar a sede. O kerupianos da loja de víveres mereceu cada moeda recebida. Suas indicações das necessidades na viagem foram precisas. Diferente do estalajadeiro e do guarda da alfandega, este, não mostrou nenhuma curiosidade sobre o estrangeiro. Mostrou ser um exímio conhecedor de caravanas pelo deserto, dando indicações preciosas sobre itens necessários, uma pequena barraca, quantidades de viveres, inclusive impedindo-o de levar excessos, pois isso o cansaria demasiado durante a jornada
Desceu a duna em direção ao minúsculo oásis. Assim que chegou à base da duna a terra começou a tremer, derrubando o antropólogo. Ao se levantar, assiste estupefato o chão se abrir poucos metros a sua frente e uma minhoca do deserto sair. Seu corpo cilíndrico anelado tem um diâmetro de quase três metros. Ela suspende-se pela altura de duas palmeiras e na extremidade a boca abre-se deixando entrever duas fileiras de pontiagudos dentes brancos, cada um do tamanho do braço de uma pessoa. Johnson sequer esboçou defesa, o que teria sido inútil. Permaneceu estático, paralisado pelo terror. O monstro cego, guia-se pelo som e vibração dos passos. Por alguns segundos o verme pareceu observar silenciosamente à procura de sua caça e com um estrondo retornou ao interior da terra deixando uma grande quantidade de dejetos. A terra que ele absorve enquanto se locomove abaixo do solo, é processada e o resíduo eliminado em suas subidas a superfície. Johnson permaneceu imóvel por uns bons quinze minutos. A descrição assustadora que os Kerupianos fizeram da minhoca do deserto era um arremedo perto da verdadeira. Nunca se sentira tão perto da morte e tão apavorado como nesses segundos frente a esse ser monstruoso. Durante algum tempo Johnson permaneceu como uma estátua, suas pernas não obedeciam. Um brilho incomodo incidia em sua face, fazendo com que se protegesse com a mão. O sol a pino fazia brilhar o monte de excrementos do verme, o reflexo vinha de um ponto, como se houvesse um espelho. Lentamente ele chegou perto e viu o que refletia: uma pedra brilhante. Pegou a pedra e limpou da poeira e do barro em sua túnica, revelando então uma magnifica opala iridescente. Tinha o tamanho e formato de um ovo, translúcida, sua coloração variava entre um azul claro e arroxeado e no interior pontos brilhantes brancos como se fossem estrelas no firmamento. Nunca vira uma pedra de tamanha beleza. Mesmo com a insuficiente pesquisa que fizera antes da viagem, dava para saber que uma pedra daquelas devia valer mais que uma nave estelar. Enquanto guardava a pedra ele ponderou, o monstro deve ter passado por uma mina, então a crença de veios não descobertos era verdadeira. Isso poderia ter um efeito devastador sobre o planeta. Uma corrida desenfreada de garimpeiros. Após um tempo, sentindo-se relativamente seguro, continuou a andar lentamente até o pequeno oásis. Com as pernas ainda trêmulas, resolveu dormir ali e só continuar sua jornada no dia seguinte.
O oásis era minúsculo. Uma fonte protegida por pedras no centro e algumas palmeiras rodeando uma estrutura de casa em ruínas. A capa que o protegeu do calor sufocante do dia, agora servia de agasalho para a noite gélida no deserto. Após uma frugal refeição enrolou-se tentando se aquecer e esperar o sono. Relembrando o susto da tarde refletiu que estava na hora de parar com essa vida errante. Tinha quarenta e cinco anos, não era mais um adolescente para correr atrás de fantasias. Mas logo sua característica de superação prevalece. “Se estou aqui, vamos ver aonde consigo chegar”. E foi com essa disposição que acordou de manhã. Quando o sol brilhou avermelhado ele já estava de pé iniciando sua jornada. Dirigiu-se em direção ao sol, para a cadeia de montanhas aonde encontrava-se o mosteiro principal. Com boa vontade teria mais quatro dias de viagem, talvez cinco. O calor o obrigava a paradas frequentes. Embora desgastante, o terreno era fácil de ser vencido e não teve mais encontros inesperados com animais ou monstros. No meio do quarto dia já podia ver o mosteiro, uma construção robusta com uma torre altíssima lembrando uma agulha, no cume da cordilheira. Já não tinha mais água quando iniciou a subida. A desidratação lhe dava vertigens quando tentava acelerar a marcha, porém a visão do mosteiro no alto servia como um incentivo. Se não fosse isso, já teria desistido, pois a sede e a fome associadas à dor do cansaço, lhe pressagiavam que o mais prático era deitar e morrer ali mesmo.
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A subida foi árdua e era madrugada quando chegou frente a enorme porta de madeira culminando em formato de arco. Seu tamanho era imponente. Devia ter no mínimo dez metros de altura. A aldrava com um demônio mordendo uma cobra em círculo não era exatamente o que se esperaria na porta de uma casa religiosa. Mas não era de todo incomum, apareciam em algumas igrejas de religiões pré-imperiais que Johnson já havia estudado. Aparentemente o som metálico não acordou ninguém. Bateu novamente e quando percebeu que não seria atendido, acomodou-se junto ao contraforte da abadia para proteger-se da areia que o vento trazia. As noites ao relento tiveram um efeito de cansaço cumulativo. Mas apesar do corpo dolorido ele pode aproveitar o amanhecer com a visão de todo o vale, e do deserto vermelho sem fim. Do alto da montanha tinha uma vista belíssima.
Johnson bateu novamente sem efeito. Passaram duas horas até que a grande porta foi aberta. Um monge com o rosto oculto por uma túnica marrom escura de algodão grosseiro com um pesado capuz fez sinal para que ele entrasse. Foi levado até o refeitório onde foi-lhe oferecido um pobre desjejum. Sempre acompanhado pelo monge que por voto de silencio, irritantemente, nada falava. Passou quase toda manhã num jardim interno, com um pequeno, porém exuberante horto, com uma fonte ricamente esculpida da história kerupiana pré-império. O sol já estava alto quando foi levado até a presença do prior.
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Demorou alguns segundos até que Johnson se acostumasse com a penumbra.
- Sente-se Sr. Milibides. – A voz rouca vinha do fundo da sala. O monge magro e pálido, tinha uma idade indefinida, o cabelo totalmente branco lhe concedia um aspecto de austeridade. Seu porte imponente irradiava nobreza, qualidade pouco comum a um eclesiástico. Johnson pensou, eu poderia estar frente a um monarca de alguns mundos e não teria mais majestade que este homem.
Contou que era oriundo de Niu 3 e já habitava a cinquenta anos em Kerup. Ajudou a construir o monastério, anterior a criação de Pueblo Rojo. Bastante culto, o prior, que se chamava Audrius, tinha uma conversa muito agradável e convincente. Foi gentil e hospitaleiro. – Um chá sempre melhora nosso humor, principalmente depois de uma jornada como a sua. – Não era uma oferta, era uma determinação. E após uma batida de mãos, entra silenciosamente um noviço, servindo-lhes uma chávena de chá negro e forte.
Um tremor insistente na pálpebra superior irritava Johnson. Não pelo tique em si, mas pela evidência inegável de seu nervosismo. Johnson detestava demonstrar qualquer sinal de fraqueza. Como um jogo de xadrez, os dois homens se estudavam.
– O que veio fazer aqui Sr. Milibides? – Disparou inesperadamente o prior.
Não era mais tempo de subterfúgios, Johnson demorou alguns segundos e foi totalmente honesto: – vim fazer uma pergunta.
Audrius o olhou interrogativamente.
– Não a você, – continua o professor, – ao oráculo, da casa do saber.
A jogada foi certeira. O silencio do prior confirmou a afirmativa. Mas não como Johnson queria. O abade recuou e parecia desviar-se da verdade.
– Somente eclesiásticos podem entrar. Sinto muito, mas você fez uma viagem inútil.
– Sei de viajantes que passaram uma vida para chegar a Kerup e poder fazer uma pergunta, conforme manda a tradição do monastério. Sei também de leigos que falaram com o oráculo, – retruca sem pensar.
– Sabe de alguém que visitou o oráculo e voltou? Conversou com algum? Sua pesquisa carece de profundidade filho, você arranhou a superfície e julga-se sabedor da verdade da vida.
Seu tom paternal antes de explicativo era inoportuno. Buscava colocar o professor numa posição inferiorizada e na defensiva. E notando a irritação do professor, o prior optou por temporizar.
– Desculpe se o ofendi, não tive essa intenção. Não se aborreça, você teve dias exaustivos, vamos descansar. Você é meu convidado. Conheça o monastério, para admiradores de arquitetura, temos um estilo praticamente único, pré-imperial. Amanhã continuamos nossa conversa. – Levantou-se indicando o final da palestra.
7
Depois da reunião ele foi levado ao refeitório onde teve um almoço sóbrio com vegetais e frutas secas entre os discretos e silenciosos abades. Enquanto comia calado, pode observar melhor a solida construção. O refeitório encontrava-se numa nave colateral com altíssima abóboda ogival e janelas em arcos góticos. Toda estrutura com encaixes em pedra. Além da magnificência da construção, a acústica perfeita ampliava os mínimos sons, exigindo então silencio absoluto. Após a refeição, o conduziram a um dormitório rústico, similar ao dos internos, e somente quando se sentou no catre sentiu o quanto estava ainda cansado. Mesmo com toda excitação da situação acabou dormindo e acordou com o vento frio que entrava pela janela que esquecera aberta. O céu tinha adquirido uma coloração arroxeada. Logo anoiteceria. Ele desceu os degraus de pedra gastos pelo tempo, até o térreo. Deixou-se ficar no jardim já conhecido. Encontrava-se em um banco de pedra absorto com seus pensamentos, quando percebeu um dos noviços que saia para o exterior e aproveitou para acompanha-lo. Mesmo com a luz mortiça do crepúsculo pode observar bem o entorno do mosteiro, o caminho por onde subiu pela montanha, com o deserto a frente, o caminho pelo planalto adjacente em direção a uma pequena mata e nas costas do monastério um declive com um grande vale que se estendia a perder de vista. O que parecia ser uma vegetação rasteira no fundo do vale, com um olhar mais atento e acurado, revelou ser uma infindável quantidade de cruzes. O vale era um enorme cemitério. Quem desconhecesse a história, imaginaria que somente uma guerra causaria tantas mortes. Johnson Milibides passou a noite pensando nisso.
Sinos saudavam a aurora quanto passos surdos começaram a ser ouvidos pelos corredores do monastério. Johnson deixou-se ficar preguiçosamente na cama por mais meia hora. Quando levantou, os monges já estavam ativos em seus afazeres e o café já havia sido retirado do refeitório. Um pouco aborrecido e com fome, solicitou de um noviço silencioso um encontro com o prior. Após meia hora, o mesmo trouxe a resposta (por escrito), marcando uma reunião para o meio da tarde. Durante o almoço sua eminência sentou-se ao lado de Johnson, porém não conversaram. Ao término da refeição, quando já se retiravam, o irmão Audrius sugeriu que conversassem fora do mosteiro, quando aproveitaria para mostrar as grutas e mausoléus que certamente seriam de seu interesse, se não religioso, mas como antropólogo. Rodeando o mosteiro, em um pequeno declive, quase oculto pela vegetação, uma abertura estreita como uma rachadura numa grande pedra, entrando por baixo do mosteiro, conduz a um salão com paredes de pedras, e quando iluminado por archotes localizados nos cantos, revelava três tuneis. Dois abertos e o do centro bloqueado por uma rocha. O monge tirou um archote da parede e entrou no túnel da esquerda, estreito, em declive, com magníficas esculturas em baixo relevo. Audrius explicava, durante o caminho, o significado das imagens. O caminho sinuoso vai mostrando grande parte da história religiosa do planeta, a continuação da apresentada na fonte do jardim, e para surpresa de Johnson, acabam retornando ao salão principal pelo túnel da direita.
- E... o corredor do meio?
- É onde está localizado o oráculo. A rocha que bloqueia a entrada só pode ser aberta a cada cinco anos, e nunca sem uma oferenda de grande relevância.
8
Saindo do salão, o ambiente seco do exterior era bem melhor que o ar abafado interno.
- O que você deseja tão ardentemente saber, filho de John?
- Para alguns, descobrir os segredos do mundo é a única forma de viver.
- Para muitos, descobrir os segredos do mundo foi a morte – ele retrucou. – Você poderia usar drogas mais fáceis como o "Ilusion". Mais fácil de obter e o resultado seria semelhante.
- Sério? Um monge apologista de drogas?
- Não distorça minhas palavras, você me entendeu muito bem. A verdade é perigosa. - O monge se vira e sua visão dirige-se para o “vale da morte”, um cemitério de mais de dez mil sepulturas. – Todos esses pensavam como você. Um túmulo a mais não fará a mínima diferença para o universo.
Permaneceram algum tempo em silencio.
- Não entendo sua religião, seus mosteiros nesse planeta inóspito, sem fiéis, sem nada.
- Você vê apenas um pedaço da história. Este já foi um planeta verde em sua infância. Milhares de anos antes do império. Um planeta rico de vida, com exuberante fauna e flora, mas infelizmente também tinha grande riqueza mineral e isso foi a sua destruição. O homem destruiu rios, poluiu o ar, tudo em nome do lucro. A extração desenfreada destruiu o planeta. A história da humanidade está aí, não é preciso muito para provar. Mesmo em planetas que se desenvolveram isolados, a evolução foi igual: guerras, sangue e mortes. O homem não é mau, é cruel. Tem necessidade de ser cruel e impiedoso, é a sua natureza. O homem está no mundo para destruir. Essa é sua função. Seu instinto homicida causará ainda mais aniquilações de espécies e destruições inimagináveis. Porém junto com essa devastação aparentemente insana promoverá a evolução da espécie realmente importante, aquela que transcenderá. O homem é o traidor da criação, porém sua ação deletéria é fundamental para os desígnios do Senhor. E a verdadeira religião também tem o seu papel na história. Por isso estamos aqui. Agora você sabe. Já pode ir. Siga seu caminho.
- Não, ainda quero falar com o oráculo. Tome. – Retira do bolso e atira para o monge a pedra. - Isto é suficiente?
O monge empalideceu olhando a esplendorosa opala. – Aonde conseguiu essa pedra? Como a minhoca do deserto não o matou?
Na verdade, apenas confirmou, o que já sabia, que Johnson não estava ali por acaso. Voltou para o salão e em alguns minutos retorna.
- Está feito. O oráculo está liberado. Agora que a caverna foi aberta, permanecerá assim por dois dias. Pense bem no que vai fazer.
- Não acredito em você, acho que posso suportar o conhecimento.
- Ali estão dez mil pessoas que pensaram o mesmo. Sabem a verdade agora.
Johnson não queria acreditar, mas não tinha argumento para negar o que o monge falava.
- Mas... e todos religiosos que estiveram aqui?
- Somente voltaram os que não entraram na caverna.
- Então, não aprenderam nada, sua vinda foi em vão.
- Claro que aprenderam, filho de John, aprenderam sobre paciência, sobre humildade, sobre limites, inclusive do conhecimento. Todos precisaram deste estágio. Só então puderam difundir suas verdades. A sua necessidade é tão clara como a agua, não existe altruísmo em você, apenas miséria e motivos egoístas. Não, não retruque, - interrompe ele, percebendo o esgar e intenção de réplica no rosto de Johnson, - não é a mim que precisa convencer, procure no fundo de sua alma e convença-se do que é preciso realmente. O que você procura verdadeiramente? O que lhe trará paz?
Johnson sentou-se na frente da abertura da caverna e pareceu abstrair-se do mundo.
Ali, ao lado de sua pequena barraca permaneceu sentado meditando por dois dias. Então levantou-se, arrumou sua mochila e foi embora sem olhar para trás.
Ao passar pelo prelado que o observava, ele pergunta mantendo seu passo arrastado no caminho poeirento: - Você tentou proteger a mim ou a sua fé? – E continuou caminhando, sem esperar a resposta que nunca veio.