Luzes do céu
Eu estava com a minha família. Estávamos saindo de Brasília de carro. Iríamos para Caldas novas quando escutamos o primeiro impacto. O carro patinou no chão seco, como se tivesse sido erguido alguns centímetros do chão e uma onda sonora intensa estilhaçou os vidros. Meus filhos estavam gritando confusos e assustados e meu marido estava alarmado, tentando, ao mesmo tempo, acalmar as crianças.
Eu saí do carro para ver o que havia acontecido. Ao longe, na lateral da estrada havia fumaça subindo em direção ao céu, como se uma explosão tivesse acontecido. Não muito atrás outro carro estava parado e um casal olhava para o céu. Eu fiz o mesmo.
Uma luz intensa ofuscava o azul turquesa do céu claro proveniente da enorme bola de fogo que riscava seu caminho deixando atrás de si um rastro de fumaça negra rumo ao horizonte.
Bum! O som veio primeiro como uma explosão abafada, ou como se tivesse acontecido muito longe de onde estávamos. O ar parecia repelido por uma força descomunal e invisível, então, as árvores começaram a se inclinar e da luz na linha do horizonte surgiu o enorme cogumelo de fogo. A onda de choque me arremessou para longe e eu perdi a consciência.
Quando acordei, pude ver no céu outras estrelas cadentes (inevitavelmente pensei em fazer um pedido) e mal reparei à minha volta. Minha cabeça estava confusa e então vi o meu carro capotado a cem metros de onde eu estava. Carlos e as crianças não estavam lá, mas havia sangue. Havia manchas de sangue espalhadas por todo o interior do carro.
Olhei em volta tentando avistar qualquer sinal deles, inconsciente do desespero que crescia dentro de mim explodindo na forma de um grito perdido entre o nome do meu marido e um lamento inconsolável.
O outro carro havia sido arremessado para fora da estrada e algumas árvores estavam caídas. Uma nuvem negra subia em colunas vinda de onde ocorrera o impacto e eu desci até o outro carro para ver se havia alguém por lá - ou de alguma forma irracional, na esperança de encontrar minha família.
- Carlos! Gabriel! Sheila! - eu continuei chamando esperando que alguém me escutasse.
Dentro do veículo não havia ninguém, mas vi um sapato no mato logo adiante. Usando a lanterna do celular - que só agora me tornei capaz de lembrar - para iluminar, percebi que o sapato estava - de fato - em um pé e não demorei a descobrir que o dono, tanto do sapato quanto do pé, estava morto.
Era o rapaz que estava com a moça olhando a bola de fogo celeste. A mulher não estava em lugar algum.
Voltei, então, para o meu carro e - me esforçando ao máximo para me concentrar - procurei por vestígios, ou algo que eu pudesse rastrear e que me levasse à minha família.
Agora com a luz do celular, consegui encontrar gotas de sangue que seguiam pela estrada.
Caminhei durante algumas horas, ou foram minutos, ou segundos. O tempo me parecia um conceito completamente distante, enquanto em minha cabeça, flashes - o meteoro, a explosão, os meus filhos sorrindo em casa, o beijo do meu marido, as nossas noites de amor, o sangue no interior do carro, as gotas de sangue que eu estava seguindo na estrada - ficavam se revirando em um caos frenético me impedindo de entrar em choque.
Continuei mesmo cansado, com fome, com sede e sem ao menos reparar que eu também estava sangrando de um corte em minhas costas e outro em minha cabeça.
O rastro mudou de direção e saiu da estrada. Outra vez, pequenos pontos brilhantes rasgavam o céu indo para os confins do planeta. O rastro entrava no mato alto que ocultava o chão irregular e cheio de buracos. Segui do ponto onde sangue manchava o capim, rezando silenciosamente para que todo esse sangue não significasse que nem meu maridou, muito menos meus filhos estivessem gravemente feridos. Mais à frente, outro capim apresentava gotas vermelhas, e mais alguns passos depois avistei talos quebrados junto a mais sangue.
Eu não sei dizer que hora era aquela. O céu não estava com seu costumeiro negro e nem consegui ver estrelas. Era como se toda aquela fumaça estivesse formando uma película agourenta e impedindo até mesmo que a lua brilhasse.
Afinal, avistei o que parecia ser uma (cabana?) construção de uma casa abandonada. Não procurei mais por vestígios de por onde eles deveriam ter ido. Meu coração me dizia que era lá que estava a minha família.
Corri em direção à velha construção abandonada com a pulsação do meu sangue retumbando como tambores em meus ouvidos. Entrei pelo portal e não os vi. Caminhei pelo que deveriam ser cômodos e então escutei vozes sussurrando e um pequeno gemido. Virei a esquerda e entrei por mais um cômodo e então, finalmente os vi.
Carlos estava pressionando um pedaço da sua camisa no supercílio de Gabriel - de onde todo o sangue devia ter vindo - e Sheila estava sentada de costas enquanto uma mulher (lembrei-me dela, era a companheira do rapaz morto lá atrás) fazia-lhe tranças.
- Marcos! - disse Carlos surpreso - Meu Deus você está vivo! Você está bem! - ele veio e me beijou afetuosamente.
- Papai! - disseram Gabriel e Sheila, ambos vindo me abraçar.
Eu chorei ainda ignorante das minhas dores físicas, e feliz por estar abraçando cada um deles novamente.
- Você está machucado, amor! Vem cá. - disse Carlos me puxando para o canto em que estava anteriormente e levantando minha camisa.
- Quem é você? - perguntei à mulher que me olhava com olhos murchos de tanto chorar.
- Elizabete. - ela respondeu sem qualquer prazer. - Meu marido…
- Sinto muito. - eu lhe disse abaixando os olhos, antes que ela completasse a pergunta da qual ela já sabia a resposta.
- Porque você vieram para cá? - perguntei virando-me para encarar Carlos - Porque não chamaram por ajuda?
- Shhhhh! - Carlos colocou os dedos em meus lábios, de repente alarmado. - Como você nos achou aqui? Você notou alguém seguindo você?
- O que? - levantei-me.
- Você viu se alguém estava seguindo você? - agora quem perguntou foi a mulher.
- Não! - eu disse - do que vocês est...
Um barulho ensurdecedor de distorção metálica - como se fosse feito em uma edição de audio - acompanhado por luzes intensas do lado de fora fez toda a estrutura capenga estremecer derramando poeira do teto precário.
- Corram! - gritou Carlos e as crianças saíram em disparada seguidos pela mulher.
Carlos me segurou pela mão e saímos juntos correndo, tentando não perder nossos filhos de vista.
Estávamos já do lado de fora e eu vi as crianças se embrenhando no mato alto - ficando totalmente fora de vista, já que o mato as cobria até a cabeça. Elizabete à nossa frente foi, de repente, içada por um (tentáculo?) de metal reluzente que lhe atravessou o corpo e senti Carlos ao meu lado me puxar de um vez fazendo-me cair de costas no chão a tempo de vê-lo gritar de agonia enquanto sangue jorrava de sua boca e ele saia de meu campo de visão.
A luz me cegava e eu não consegui ver de onde vinha, mas o barulho ainda era audível, como uma gargalhada apavorante rejubilando-se com o nosso pavor.
Levantei-me e pude ver o brilho da luz refletida nos olhos das crianças que se escondiam no mato, nos assistindo. Fiz um sinal para que não se movessem e olhei para trás.
Uma figura de dois metros estava parada segurando o corpo inerte do meu marido. O homem com quem me casei e a quem prometi ser fiel até que a morte nos separasse. Lágrimas escorriam dos meu olhos e uma dor maior do que qualquer dor física que eu estava sentindo me rasgou por dentro. Gritei.
- Quem são vocês? Porque estão fazendo isso?
A silhueta largou Carlos no chão e um dos tentáculos o pegou pela perna elevando-o em direção à luz.
Aquilo parecia um homem muito alto e magro. Ele caminhou em minha direção e eu pude, afinal, distinguir sua aparência.
Pele escamosa e reluzente, parecia não ter cor, e seus órgãos - ou coisas que se pareciam com órgãos - eram fosforescentes e visíveis através da cutis. Olhos castanhos não maiores que os de Gabriel, que tinha sete anos, um nariz subdesenvolvido e a boca que nada mais era do que um traço fino em uma cabeça desproporcionalmente alongada.
Ele estava na minha mente! Tentava descobrir onde estavam as crianças e eu estava tentando resistir
- Vai se foder! - gritei e com uma pedra que catei dos destroços da construção o ataquei.
Sem muito esforço ele conseguiu segurar meu braço e eu senti o peso do seu olhar me tirando a consciência. Ele me pegou no colo e caminhou em direção à luz.
O mundo ficou de ponta-cabeça e eu olhava para o lugar onde pela ultima vez avistei os meus filhos. Eles não estavam mais lá e senti-me feliz por isso. Senti-me feliz por não ter que vê-los sofrer o mesmo destino que Carlos, ou o meu. A escuridão me engolfou ao mesmo tempo em que fui envolvido na luz diabólica e misteriosa.