A Morte Programada
Houve um tempo em que a natureza propiciava um ar de incerteza à vida de cada ser humano. Este é um costume obsoleto. Hoje, com o avanço da ciência, já é possível saber o momento exato em que alguém irá morrer. Não há mais acidentes e o caos se encontra enjaulado, numa gaiola dourada de estimativas muito precisas, consideradas por muitos como certezas absolutas.
João Nepomuceno estava para comemorar seus 68 anos. Para ele, não havia o que comemorar, pois o sistema havia estimado que sua morte aconteceria naquele mesmo fatídico dia do seu aniversário. Era um sujeito de bem com a vida. Tinha três filhos já crescidos, com suas famílias formadas e netos já nascidos. Sua esposa tinha falecido uns 4 anos atrás. Estava sozinho desde então, mas ainda não estava disposto a embarcar no trem que o levaria ao outro lado para, quem sabe, reencontrá-la. Essa sua vontade fora expressada por ele, durante as festividades de seu aniversário anterior. A família encarou como uma brincadeira. “Ê, Seu Jão! Como sempre aprontando, hein! Haja vitalidade nesse homem!” Gritou o filho caçula. Mas não era brincadeira, João tinha decidido não morrer na data programada. Sabia que isso era uma transgressão para o modo atual de sociedade, mas sentia que poderia muito contribuir para aquele mundo, para sua família. Não havia um ideal por trás da decisão de João, queria apenas continuar existindo, talvez fosse apenas seu instinto de autopreservação.
Um dia antes de sua morte, como usualmente ocorria, os familiares e amigos de João receberam convites para participar da cerimônia. A partir desse momento, a família já poderia começar suas despedidas derradeiras ao ente querido. Existia todo um protocolo que objetivava minimizar o sofrimento e celebrar a vida, principalmente para quem continuasse vivo. Tudo já estava programado. O local do velório já estava reservado, assim como as coroas de flores e as mensagens de despedidas já tinham sido preparadas. Para os participantes do evento, as ausências no trabalho já haviam sido justificadas. Os familiares já tinham sido notificados quanto às licenças luto que lhes seriam concedidas. O planejamento envolvia tudo, desde o controle de tráfego para a carreata que seguirá ao sepultamento, até o agendamento de consultas em psicólogos e psiquiatras.
O problema é que Seu João tinha se antecipado. Antes dos convites serem enviados, decidiu fazer uma viagem, não para o outro lado. Não seria fácil passar desapercebido por todos os controles. Teria que se deslocar sem identidade, sem rastros e para algum lugar distante da visão do sistema. Seguiu em direção contrária às massas migratórias, para um território hostil ou pouco desenvolvido. Comprou um automóvel velho, um pedaço de sucata onde o vendedor não fizesse questão de verificar os documentos de seu comprador. Depois de mais algumas transações irregulares e contatos questionáveis, chegou a uma lanchonete no outro lado da fronteira, num local dito como não civilizado.
Já era o dia do funeral e a família não tinha notícias do morto. Os parentes estavam estarrecidos. Enquanto uns se preocupavam com o paradeiro de João, outros lamentavam a vergonha que viriam a passar. Antes mesmo dos familiares notificarem o desaparecimento, as autoridades detectaram algo de estranho. Os oficiais encaminhados para buscar o cidadão, usualmente uma hora antes do óbito, não o tinham encontrado. O sistema e seus gestores perceberam que, naquele momento, tinham um problema sério. Uma revolução poderia estar em curso.
Todos os familiares, amigos e conhecidos se apresentaram ao local do funeral. O caixão estava lacrado, mas poucos haviam estranhado esse inconveniente. De qualquer forma, tudo seguiu conforme o protocolo já tão bem conhecido. Todas as mensagens de despedidas foram faladas, cantadas, choradas. A procissão de carros seguiu sem percalços pelo trânsito da grande cidade. Os amigos e parentes levantaram e guiaram o caixão, que carregava o peso exato esperado para aquele morto. A madeira foi plantada na terra, as últimas lágrimas derramadas e todos seguiram para suas vidas privadas. Porém, bem distante dali, coincidentemente, Seu João saboreava um sanduíche de presunto, queijo, ovo, alface, tomate e uma azeitona, antes presa ao pão com um palito. Ao terminar, resolveu comer a azeitona e se engasgou. Foi socorrido, mas era tarde demais. Acabou morto.