O Rei das Ruínas
O REI DAS RUÍNAS
Miguel Carqueija
I
Finalmente conseguimos permissão para visitar as célebres ruínas do Rio de Janeiro. Esta megalópolis, relíquia dos séculos mais bárbaros da humanidade, foi muito melhor preservada que New York, Tóquio ou Berlim. Certamente nem todos os seus bairros resistiram; Copacabana, por exemplo, ruiu quase totalmente. Entretanto o Centro está em excelente estado e grupos excursionistas, por brincadeira, chegam a habitá-lo.
Da imensa cúpula-estação, construída no alto do pico do Corcovado, Sônia e eu iniciamos a visita. Ao lado da cúpula fica a gigantesca estátua do Cristo Redentor, milagrosamente poupada à destruição nos ataques atômicos. Não nos cansávamos de admirá-la. Entretanto, lá de baixo, a cidade-fantasma nos chamava.
Munidos de plantas e outras coisas necessárias, tomamos lugar no besouro posto à nossa disposição. Dispensamos guia, pois de um modo geral esta classe só serve para atrapalhar. E assim começamos a viagem.
- Não esqueçam – dissera o rapaz – o bip do besouro funciona continuamente. Em caso de ausência prolongada dos ocupantes, passa a emitir sinal vermelho. É apenas uma precaução, pois os bips individuais do pescoço acompanham a pessoa onde quer que vá. O rádio, porém, fornece ainda melhor comunicação e blá, blá, blá...
Quando conseguimos nos livrar dele, Sônia tremia de impaciência.
O besouro era uma maravilha automática, que podia flutuar nas correntes ascendentes de ar como um urubu. Pousava com grande suavidade e podia ser controlado por todos os lados. Seguindo, como havíamos combinado, um roteiro improvisado, rumamos para a velha Avenida Central, ou Rio Branco. Dizem que foi uma das mais engarrafadas, e dos quinhentos metros em que pairávamos podíamos crer nisso. As vidraças encurvadas do carro iam ajustando a imagem com nitidez, à proporção em que nos aproximávamos. Que incrível aglomerado de ruas e construções que mais pareciam enormes armários de gavetas! Já tínhamos visto esses trambolhos em fotos e filmes, mas ao vivo sempre produz um choque.
SÔNIA – Olhe para aquilo – a humanidade devia estar mesmo enlouquecida naquela época.
O esqueleto carcomido era de um arranha-céu de uns trinta andares, pelo que pude calcular. Seria, talvez, o lendário Edifício Avenida Central. Consta que dele saiu o Marechal Deodoro da Fonseca, para proclamar a República. Talvez pelo seu tamanho, achava-se agora muito atingido. Seu terraço havia sido arrancado; a chuva tinha acesso ao seu interior. Efetivamente, seu subsolo era uma piscina, e as perspectivas futuras do outrora campeão da cidade eram sombrias.
-Você sabe, Sônia – ensaiei uma explicação medíocre – muitos desses edifícios eram comerciais. As pessoas não moravam neles. A falta de espaço...
-Porque construíam as cidades assim? Porque não as faziam lineares, ou de outra forma racional?
-Talvez porque não raciocinassem...
A avenida era uma reta compridíssima, repleta ainda de automóveis terrestres, que víamos melhor à medida em que baixávamos de altitude. Já agora os mais altos edifícios apontavam acima de nossas cabeças, em loucas geometrias onde predominavam as linhas retas, contrastando com o aglomerado amorfo das ruas. Muitos carros abandonados pertenciam às últimas gerações anteriores ao colapso da cidade, quando o culto da feiúra chegara ao paroxismo.
-É um zoológico – comentou Sônia.
De fato, tempo houve em que as fábricas de autos, não sabendo mais o que inventar, deram de montar carros com formas animais. Nosso besouro passava suavemente a quatro metros do solo, descortinando uma visão de lagartixas mecânicas, calhambeques em forma de gatos, camaleões, jacarés, uma lambreta em forma de polvo, com os oito tentáculos estendidos para o alto (creio que para não esbarrar nos outros veículos). Mas não era só o zoológico: havia automóveis que pareciam moitas, baús, biscoitos, bem como geringonças que propriamente não faziam lembrar coisa alguma que se encontre no dicionário. E ao lado destes havia exemplares mais discretos, que pareciam somente carros. Pousamos ao lado de um enferrujadíssimo Volks do ano 1993, chapa de Minas Gerais. Que história, que segredo guardava aquele meio de transporte há tantos anos abandonado? Saltamos do besouro, já agora sentindo a opressão de todo aquele ambiente.
-Quem sabe se alguns ainda funcionam? – palpitei, somente para dizer alguma coisa.
-Eu é que não me arriscaria...
Toquei a superfície áspera do Volks, já bastante esburacada. O mofo crescia nos seus assentos. Os pneus já não existiam, talvez roubados ou salvos como partes possíveis de transportar. O motor já não existia; no seu lugar estava um pedregulho. De onde, raios, pudera cair? Enquanto Sônia examinava, com desnecessária prudência, o contador de radiações, comecei a perceber o absurdo que nos rodeava tranquilamente.
-Se o Júnior estivesse aqui... – disse Sônia, largando o contador.
Fiz-lhe sinal para se aproximar.
-Que é?
-Que lhe parece que é isso?
-Granito de primeira, hein?
-Muito bem; já fez a piadinha. Mas que pode estar fazendo essa pedra aqui?
-Não sei, Jaime. Deve ter caído de algum lugar... – relanceou os olhos, à procura de alguma pedreira.
-Só se fosse um meteoro.
-Não tem jeito disso.
-Claro que não. Mas veja os outros carros.
-Que é que tem?
Aproximei-me de um Angorá, modelo 2009.
-A pintura foi raspada em linhas horizontais a ponto de nelas aparecer distintamente o metal prateado. Quem andou fazendo isso? Com que finalidade?
Sonia deu de ombros.
-Milhares de pessoas andaram por aqui desde que o Angorá foi abandonado. Excursionistas, cientistas, turistas...
-Sim. Saquearam o que puderam. Mas quem poderia ter a idéia de colocar os autos nessa configuração?
-Qual?
Mostrei-lhe. Quando o fiz, ela ficou impressionada.
Diante da esquina da Rua São José, oito veículos formavam o desenho perfeito de um X.
-E então, Sônia? Acha isso normal?
Ela sorriu, encantada.
-Que mistério do quarto amarelo! Nada disso consta do folheto turístico que nos deram!
Encostei-me ao aerocarro, pensativo, enquanto um moscardo esvoaçava à minha frente. Minha anterior experiência de decifrador de mistérios resumia-se às palavras cruzadas.
Sônia descobriu o enigma seguinte.
-Este Rolls aqui foi cortado ao meio! Como uma fatia de queijo... Depois puseram emendas para segurar...
Fui olhar. Efetivamente o carro fôra dividido como por fina lâmina, e remendos metálicos soldados para impedir que as duas metades se separassem.
Escusado é dizer que aqueles meios de transporte já não passavam de ferro-velho, que em parte haviam recebido tratamento de conservação. Mas é tarefa grande demais manter em bom estado todas as relíquias de uma cidade morta.
Em meio a todo aquele desatino, flutuava em minha mente uma vaga idéia. Parecia-me perceber obscuramente a existência de um detalhe ainda mais extravagante; mas não conseguia identificá-lo.
Sônia tocou-me o braço.
-Não está com medo?
-Claro que não – menti. – Porque haveria de estar?
Ela riu.
-Fantasmas! Fantasmas manipuladores de carros...
-Não seja tola. Quem mexeu nessas caranguejolas foi gente como nós. Mas qual a razão, meu Deus?
-Talvez nem valha a pena nos preocuparmos com isso. Temos tanta coisa para ver!
Entrei no besouro e folheei rapidamente o prospecto turístico. Sim, havia o leito seco da Lagoa Rodrigo de Freitas, os túneis do metrô, as ruínas do elevado Paula de Frontin, o ainda bem conservado Mosteiro de São Bento (ora em restauração), a ciclópica ponte sobre a baía... um programa imenso, enfim. Sem falar nos inúmeros detalhes não especificados e que, evidentemente, interessavam muito mais. Minha esposa pegou a máquina de filmar e dispôs-se a documentar os nossos achados. Era evidente que desejava ir adiante. Tínhamos apenas quatro dias.
II
-Que solidão a gente sente!
-É verdade... o Coliseu perde fácil perto deste...
O Maracanã é de fato uma obra fabulosa. Mas nunca gostei de futebol. Agora, porém, a grama era soberana. Não só a grama...
-Sabe de uma coisa, Jaime? Começo a achar que é loucura visitar esses lugares abandonados, ou conservá-los propositalmente para esse fim...
-Por quê?
Estávamos no meio do campo, onde pousáramos o besouro. A muralha circular, concêntrica, do estádio construído aí por 1950, esmagava-nos. Que sensação teriam os jogadores com o estádio cheio de pessoas, uma multidão ululante e comprometida com um ou outro time?
-Porque a megápolis morreu e deveria ser enterrada. Que valor têm essas coisas? Arqueológico? Mas é história recente, bem conhecida. De qualquer modo, pesquisas científicas se fazem com discrição. Mas turismo!
Talvez ela tenha razão, foi o que pensei.
A megápolis é a civilização em ponto de estrangulamento. Quilômetros e mais quilômetros de ruas, casas, edifícios com andares e mais andares, carros, carros e mais
carros, buzinas, engarrafamentos, barulho a mais não poder, obras, e gente, gente apressada, angustiada, neurótica...
É a loucura organizada. A visão dos velhos filmes documentários, que mostram as megápolis, é de arrepiar.
SÔNIA – É que certos lugares são bem desagradáveis. Aqui há ratos e mais ratos. Não teria importância, se não houvesse um capinzal tão alto. A gente não os vê.
De fato, não estávamos com ânimo para enfrentar aquela selva. Voltamos ao besouro e decolamos; só nos restava um dia de excursão. Estivéramos na Praça Mauá, Cemitério do Caju, no Salão Chinês (1), no Campo de S.Cristóvão, enfim, havíamos feito muita coisa que absolutamente não deve interessar a vocês. Eventualmente víramos outras pessoas, quase sempre ao longe.
Pousamos numa das rampas e eu comecei a tomar notas. A capacidade de lotação do estádio, segundo dados oficiais, havia sido de 155.000 pessoas; fôra construído para a Copa do Mundo de 1950, quando o Brasil chegou à final com o Uruguai...
Sônia pulou de repente, esbarrando em mim.
-Jaime! Que é isso?
Olhei assombrado. O chão de cimento erguera-se um pouco no ponto em que Sônia estivera. Recuamos instintivamente e então o alçapão de cimento ergueu-se de todo.
Passei o braço na cintura de Sônia e em seguida, como num filme de horror, várias figuras encapuzadas emergiram à superfície.
- Estrangeiros! – gritaram dois ou três deles. Eram cinco ao todo.
A aparição daquela gente era tão estranha que nem pensamos em conversar. Corremos para o besouro, mas Sônia tropeçou. Ajudei-a a se erguer, mas o tempo perdido foi suficiente para que nos alcançassem no momento em que eu enfiava a chave na fechadura do veículo.
Seguiu-se uma luta já de antemão perdida. Fomos levados à força até o alçapão e descidos por uma escada de pedra, iluminada com lâmpadas antiquadas. Eu tentava discutir, mas um sujeito que talvez fosse líder do grupo disse-me para esperar.
-Vocês falarão com o Augusto Mestre – explicou secamente.
Havia uma rede de corredores que se prolongavam indefinidamente. Percebi logo que não saberia me orientar de volta àquela saída. Depois de muito caminharmos fomos trancafiados numa espécie de quarto com azulejos e um pouco de conforto (filtro, cama, cadeiras). O ar estava muito bom.
Sônia sentou-se na cama e lamentou-se:
-Que comunidade de loucos é essa? Jaime, o que eles não serão capazes de fazer com a gente...
Sentei-me a seu lado, tentando encorajá-la.
-Calma, querida. Lembre-se do bip.
-Hein?
-Sim, o bip do carro e os nossos... assim que o carro passar a emitir o sinal vermelho, lá na base partirão à nossa procura e nos acharão pelos sinais dos nossos bips...
-Tudo isso, querido, estaria certo se estivéssemos à superfície. Mas aqui embaixo... funcionará?
Eu próprio não sabia dizer.
III
Havia uma sala mais profunda, rica mas tenebrosamente adornada. Uma larguíssima escadaria de pedra levava a um patamar onde se encontrava um trono ornado de ágatas, turmalinas, granadas e outras pedras. A luz era de tochas e néon – sim, isso mesmo.
O Augusto Mestre era tão novo quanto eu e vestia-se, digamos, como um “hyppie” milionário. Usava uma espécie de cocar com longas plumas de ave, enfeitadas com pedras diversas. Todos os seus dedos ostentavam anéis, às vezes mais de um em cada dedo.
Fomos conduzidos à sua presença e ele, fazendo gestos pseudo-majestosos, assim falou:
-Com que então vocês são os dois invasores de nosso reino, hein? Reconheço que você é uma bonita invasora. Muito bonita, mesmo.
- Não somos invasores – protestei. – Somos simples excursionistas.
- Todos os excursionistas que aqui vêm são invasores. Todos. Este lugar é nosso.
- Mas nós nem sabíamos que vocês existem – alegou Sônia. – Por favor, quem é o senhor,
pode nos dizer?
-Eu sou Gastão, o Augusto Mestre, o Rei das Ruínas. Eu sou o Administrador do Resto, o Dono do Passado, o Governador das Entranhas, o Chefe da Lembrança. Eu sou o Controlador dos Séculos, e o meu poder é imenso. No mundo de vocês só o presente fugidio e ilusório está sob controle. Eu porém tenho o passado histórico, de séculos e séculos, sob meu domínio. Nem mesmo Napoleão possuiu tanto poder.
Que podíamos dizer diante de tamanha loucura? Comecei a explicar que não tivéramos a intenção de perturbar aquela Augusta Majestade e seus súditos. Sônia, confiando em seu charme feminino, interrompeu-me e falou com voz adocicada:
-Porque o senhor nos chama de invasores? Considere que fomos trazidos à força para o vosso reino subterrâneo. Porque lá, na superfície, não vimos ninguém. Vimos sinais de atividade misteriosa, sim... mas só os sinais.
O Rei Gastão deu uma grande gargalhada.
- São as nossas atividades artísticas, a manipulação das ruínas. É claro que vocês não sabiam da nossa existência. Mas é divertido, muito divertido saber que vocês voltarão ao seu mundo e contarão aos seus pares a experiência por que passaram, e ninguém lhes dará crédito. Não é mesmo engraçado? Porque lá em cima o pessoal não tem muita imaginação. Ora, para que não pensem que eu seja tão ruim assim deixem-me oferecer-lhes um pouco da minha hospitalidade, servindo-lhes um almoço com os produtos das nossas hortas subterrâneas!
Sônia e eu nos entreolhamos com alívio.
.....................................................................................................
Foi isso que aconteceu. Fomos libertados pouco depois e voltamos para casa. Realmente tentamos contar o que houve às autoridades, e nunca recebemos tanta zombaria em nossas vidas. Aparentemente, não fomos os primeiros a sofrer de “alucinação das ruínas”...
Os seres humanos são criaturas bastante estranhas. Substituem a verdade pelas suas idéias e transformam em arte esse modo de agir, rejeitando radicalmente qualquer dado que não lhes agrade. Existem algumas pessoas, como Sônia e eu, que não concordam com isso. Mas o que é que podemos fazer?
(1) Construído em 2024 (n. do a.)
O REI DAS RUÍNAS
Miguel Carqueija
I
Finalmente conseguimos permissão para visitar as célebres ruínas do Rio de Janeiro. Esta megalópolis, relíquia dos séculos mais bárbaros da humanidade, foi muito melhor preservada que New York, Tóquio ou Berlim. Certamente nem todos os seus bairros resistiram; Copacabana, por exemplo, ruiu quase totalmente. Entretanto o Centro está em excelente estado e grupos excursionistas, por brincadeira, chegam a habitá-lo.
Da imensa cúpula-estação, construída no alto do pico do Corcovado, Sônia e eu iniciamos a visita. Ao lado da cúpula fica a gigantesca estátua do Cristo Redentor, milagrosamente poupada à destruição nos ataques atômicos. Não nos cansávamos de admirá-la. Entretanto, lá de baixo, a cidade-fantasma nos chamava.
Munidos de plantas e outras coisas necessárias, tomamos lugar no besouro posto à nossa disposição. Dispensamos guia, pois de um modo geral esta classe só serve para atrapalhar. E assim começamos a viagem.
- Não esqueçam – dissera o rapaz – o bip do besouro funciona continuamente. Em caso de ausência prolongada dos ocupantes, passa a emitir sinal vermelho. É apenas uma precaução, pois os bips individuais do pescoço acompanham a pessoa onde quer que vá. O rádio, porém, fornece ainda melhor comunicação e blá, blá, blá...
Quando conseguimos nos livrar dele, Sônia tremia de impaciência.
O besouro era uma maravilha automática, que podia flutuar nas correntes ascendentes de ar como um urubu. Pousava com grande suavidade e podia ser controlado por todos os lados. Seguindo, como havíamos combinado, um roteiro improvisado, rumamos para a velha Avenida Central, ou Rio Branco. Dizem que foi uma das mais engarrafadas, e dos quinhentos metros em que pairávamos podíamos crer nisso. As vidraças encurvadas do carro iam ajustando a imagem com nitidez, à proporção em que nos aproximávamos. Que incrível aglomerado de ruas e construções que mais pareciam enormes armários de gavetas! Já tínhamos visto esses trambolhos em fotos e filmes, mas ao vivo sempre produz um choque.
SÔNIA – Olhe para aquilo – a humanidade devia estar mesmo enlouquecida naquela época.
O esqueleto carcomido era de um arranha-céu de uns trinta andares, pelo que pude calcular. Seria, talvez, o lendário Edifício Avenida Central. Consta que dele saiu o Marechal Deodoro da Fonseca, para proclamar a República. Talvez pelo seu tamanho, achava-se agora muito atingido. Seu terraço havia sido arrancado; a chuva tinha acesso ao seu interior. Efetivamente, seu subsolo era uma piscina, e as perspectivas futuras do outrora campeão da cidade eram sombrias.
-Você sabe, Sônia – ensaiei uma explicação medíocre – muitos desses edifícios eram comerciais. As pessoas não moravam neles. A falta de espaço...
-Porque construíam as cidades assim? Porque não as faziam lineares, ou de outra forma racional?
-Talvez porque não raciocinassem...
A avenida era uma reta compridíssima, repleta ainda de automóveis terrestres, que víamos melhor à medida em que baixávamos de altitude. Já agora os mais altos edifícios apontavam acima de nossas cabeças, em loucas geometrias onde predominavam as linhas retas, contrastando com o aglomerado amorfo das ruas. Muitos carros abandonados pertenciam às últimas gerações anteriores ao colapso da cidade, quando o culto da feiúra chegara ao paroxismo.
-É um zoológico – comentou Sônia.
De fato, tempo houve em que as fábricas de autos, não sabendo mais o que inventar, deram de montar carros com formas animais. Nosso besouro passava suavemente a quatro metros do solo, descortinando uma visão de lagartixas mecânicas, calhambeques em forma de gatos, camaleões, jacarés, uma lambreta em forma de polvo, com os oito tentáculos estendidos para o alto (creio que para não esbarrar nos outros veículos). Mas não era só o zoológico: havia automóveis que pareciam moitas, baús, biscoitos, bem como geringonças que propriamente não faziam lembrar coisa alguma que se encontre no dicionário. E ao lado destes havia exemplares mais discretos, que pareciam somente carros. Pousamos ao lado de um enferrujadíssimo Volks do ano 1993, chapa de Minas Gerais. Que história, que segredo guardava aquele meio de transporte há tantos anos abandonado? Saltamos do besouro, já agora sentindo a opressão de todo aquele ambiente.
-Quem sabe se alguns ainda funcionam? – palpitei, somente para dizer alguma coisa.
-Eu é que não me arriscaria...
Toquei a superfície áspera do Volks, já bastante esburacada. O mofo crescia nos seus assentos. Os pneus já não existiam, talvez roubados ou salvos como partes possíveis de transportar. O motor já não existia; no seu lugar estava um pedregulho. De onde, raios, pudera cair? Enquanto Sônia examinava, com desnecessária prudência, o contador de radiações, comecei a perceber o absurdo que nos rodeava tranquilamente.
-Se o Júnior estivesse aqui... – disse Sônia, largando o contador.
Fiz-lhe sinal para se aproximar.
-Que é?
-Que lhe parece que é isso?
-Granito de primeira, hein?
-Muito bem; já fez a piadinha. Mas que pode estar fazendo essa pedra aqui?
-Não sei, Jaime. Deve ter caído de algum lugar... – relanceou os olhos, à procura de alguma pedreira.
-Só se fosse um meteoro.
-Não tem jeito disso.
-Claro que não. Mas veja os outros carros.
-Que é que tem?
Aproximei-me de um Angorá, modelo 2009.
-A pintura foi raspada em linhas horizontais a ponto de nelas aparecer distintamente o metal prateado. Quem andou fazendo isso? Com que finalidade?
Sonia deu de ombros.
-Milhares de pessoas andaram por aqui desde que o Angorá foi abandonado. Excursionistas, cientistas, turistas...
-Sim. Saquearam o que puderam. Mas quem poderia ter a idéia de colocar os autos nessa configuração?
-Qual?
Mostrei-lhe. Quando o fiz, ela ficou impressionada.
Diante da esquina da Rua São José, oito veículos formavam o desenho perfeito de um X.
-E então, Sônia? Acha isso normal?
Ela sorriu, encantada.
-Que mistério do quarto amarelo! Nada disso consta do folheto turístico que nos deram!
Encostei-me ao aerocarro, pensativo, enquanto um moscardo esvoaçava à minha frente. Minha anterior experiência de decifrador de mistérios resumia-se às palavras cruzadas.
Sônia descobriu o enigma seguinte.
-Este Rolls aqui foi cortado ao meio! Como uma fatia de queijo... Depois puseram emendas para segurar...
Fui olhar. Efetivamente o carro fôra dividido como por fina lâmina, e remendos metálicos soldados para impedir que as duas metades se separassem.
Escusado é dizer que aqueles meios de transporte já não passavam de ferro-velho, que em parte haviam recebido tratamento de conservação. Mas é tarefa grande demais manter em bom estado todas as relíquias de uma cidade morta.
Em meio a todo aquele desatino, flutuava em minha mente uma vaga idéia. Parecia-me perceber obscuramente a existência de um detalhe ainda mais extravagante; mas não conseguia identificá-lo.
Sônia tocou-me o braço.
-Não está com medo?
-Claro que não – menti. – Porque haveria de estar?
Ela riu.
-Fantasmas! Fantasmas manipuladores de carros...
-Não seja tola. Quem mexeu nessas caranguejolas foi gente como nós. Mas qual a razão, meu Deus?
-Talvez nem valha a pena nos preocuparmos com isso. Temos tanta coisa para ver!
Entrei no besouro e folheei rapidamente o prospecto turístico. Sim, havia o leito seco da Lagoa Rodrigo de Freitas, os túneis do metrô, as ruínas do elevado Paula de Frontin, o ainda bem conservado Mosteiro de São Bento (ora em restauração), a ciclópica ponte sobre a baía... um programa imenso, enfim. Sem falar nos inúmeros detalhes não especificados e que, evidentemente, interessavam muito mais. Minha esposa pegou a máquina de filmar e dispôs-se a documentar os nossos achados. Era evidente que desejava ir adiante. Tínhamos apenas quatro dias.
II
-Que solidão a gente sente!
-É verdade... o Coliseu perde fácil perto deste...
O Maracanã é de fato uma obra fabulosa. Mas nunca gostei de futebol. Agora, porém, a grama era soberana. Não só a grama...
-Sabe de uma coisa, Jaime? Começo a achar que é loucura visitar esses lugares abandonados, ou conservá-los propositalmente para esse fim...
-Por quê?
Estávamos no meio do campo, onde pousáramos o besouro. A muralha circular, concêntrica, do estádio construído aí por 1950, esmagava-nos. Que sensação teriam os jogadores com o estádio cheio de pessoas, uma multidão ululante e comprometida com um ou outro time?
-Porque a megápolis morreu e deveria ser enterrada. Que valor têm essas coisas? Arqueológico? Mas é história recente, bem conhecida. De qualquer modo, pesquisas científicas se fazem com discrição. Mas turismo!
Talvez ela tenha razão, foi o que pensei.
A megápolis é a civilização em ponto de estrangulamento. Quilômetros e mais quilômetros de ruas, casas, edifícios com andares e mais andares, carros, carros e mais
carros, buzinas, engarrafamentos, barulho a mais não poder, obras, e gente, gente apressada, angustiada, neurótica...
É a loucura organizada. A visão dos velhos filmes documentários, que mostram as megápolis, é de arrepiar.
SÔNIA – É que certos lugares são bem desagradáveis. Aqui há ratos e mais ratos. Não teria importância, se não houvesse um capinzal tão alto. A gente não os vê.
De fato, não estávamos com ânimo para enfrentar aquela selva. Voltamos ao besouro e decolamos; só nos restava um dia de excursão. Estivéramos na Praça Mauá, Cemitério do Caju, no Salão Chinês (1), no Campo de S.Cristóvão, enfim, havíamos feito muita coisa que absolutamente não deve interessar a vocês. Eventualmente víramos outras pessoas, quase sempre ao longe.
Pousamos numa das rampas e eu comecei a tomar notas. A capacidade de lotação do estádio, segundo dados oficiais, havia sido de 155.000 pessoas; fôra construído para a Copa do Mundo de 1950, quando o Brasil chegou à final com o Uruguai...
Sônia pulou de repente, esbarrando em mim.
-Jaime! Que é isso?
Olhei assombrado. O chão de cimento erguera-se um pouco no ponto em que Sônia estivera. Recuamos instintivamente e então o alçapão de cimento ergueu-se de todo.
Passei o braço na cintura de Sônia e em seguida, como num filme de horror, várias figuras encapuzadas emergiram à superfície.
- Estrangeiros! – gritaram dois ou três deles. Eram cinco ao todo.
A aparição daquela gente era tão estranha que nem pensamos em conversar. Corremos para o besouro, mas Sônia tropeçou. Ajudei-a a se erguer, mas o tempo perdido foi suficiente para que nos alcançassem no momento em que eu enfiava a chave na fechadura do veículo.
Seguiu-se uma luta já de antemão perdida. Fomos levados à força até o alçapão e descidos por uma escada de pedra, iluminada com lâmpadas antiquadas. Eu tentava discutir, mas um sujeito que talvez fosse líder do grupo disse-me para esperar.
-Vocês falarão com o Augusto Mestre – explicou secamente.
Havia uma rede de corredores que se prolongavam indefinidamente. Percebi logo que não saberia me orientar de volta àquela saída. Depois de muito caminharmos fomos trancafiados numa espécie de quarto com azulejos e um pouco de conforto (filtro, cama, cadeiras). O ar estava muito bom.
Sônia sentou-se na cama e lamentou-se:
-Que comunidade de loucos é essa? Jaime, o que eles não serão capazes de fazer com a gente...
Sentei-me a seu lado, tentando encorajá-la.
-Calma, querida. Lembre-se do bip.
-Hein?
-Sim, o bip do carro e os nossos... assim que o carro passar a emitir o sinal vermelho, lá na base partirão à nossa procura e nos acharão pelos sinais dos nossos bips...
-Tudo isso, querido, estaria certo se estivéssemos à superfície. Mas aqui embaixo... funcionará?
Eu próprio não sabia dizer.
III
Havia uma sala mais profunda, rica mas tenebrosamente adornada. Uma larguíssima escadaria de pedra levava a um patamar onde se encontrava um trono ornado de ágatas, turmalinas, granadas e outras pedras. A luz era de tochas e néon – sim, isso mesmo.
O Augusto Mestre era tão novo quanto eu e vestia-se, digamos, como um “hyppie” milionário. Usava uma espécie de cocar com longas plumas de ave, enfeitadas com pedras diversas. Todos os seus dedos ostentavam anéis, às vezes mais de um em cada dedo.
Fomos conduzidos à sua presença e ele, fazendo gestos pseudo-majestosos, assim falou:
-Com que então vocês são os dois invasores de nosso reino, hein? Reconheço que você é uma bonita invasora. Muito bonita, mesmo.
- Não somos invasores – protestei. – Somos simples excursionistas.
- Todos os excursionistas que aqui vêm são invasores. Todos. Este lugar é nosso.
- Mas nós nem sabíamos que vocês existem – alegou Sônia. – Por favor, quem é o senhor,
pode nos dizer?
-Eu sou Gastão, o Augusto Mestre, o Rei das Ruínas. Eu sou o Administrador do Resto, o Dono do Passado, o Governador das Entranhas, o Chefe da Lembrança. Eu sou o Controlador dos Séculos, e o meu poder é imenso. No mundo de vocês só o presente fugidio e ilusório está sob controle. Eu porém tenho o passado histórico, de séculos e séculos, sob meu domínio. Nem mesmo Napoleão possuiu tanto poder.
Que podíamos dizer diante de tamanha loucura? Comecei a explicar que não tivéramos a intenção de perturbar aquela Augusta Majestade e seus súditos. Sônia, confiando em seu charme feminino, interrompeu-me e falou com voz adocicada:
-Porque o senhor nos chama de invasores? Considere que fomos trazidos à força para o vosso reino subterrâneo. Porque lá, na superfície, não vimos ninguém. Vimos sinais de atividade misteriosa, sim... mas só os sinais.
O Rei Gastão deu uma grande gargalhada.
- São as nossas atividades artísticas, a manipulação das ruínas. É claro que vocês não sabiam da nossa existência. Mas é divertido, muito divertido saber que vocês voltarão ao seu mundo e contarão aos seus pares a experiência por que passaram, e ninguém lhes dará crédito. Não é mesmo engraçado? Porque lá em cima o pessoal não tem muita imaginação. Ora, para que não pensem que eu seja tão ruim assim deixem-me oferecer-lhes um pouco da minha hospitalidade, servindo-lhes um almoço com os produtos das nossas hortas subterrâneas!
Sônia e eu nos entreolhamos com alívio.
.....................................................................................................
Foi isso que aconteceu. Fomos libertados pouco depois e voltamos para casa. Realmente tentamos contar o que houve às autoridades, e nunca recebemos tanta zombaria em nossas vidas. Aparentemente, não fomos os primeiros a sofrer de “alucinação das ruínas”...
Os seres humanos são criaturas bastante estranhas. Substituem a verdade pelas suas idéias e transformam em arte esse modo de agir, rejeitando radicalmente qualquer dado que não lhes agrade. Existem algumas pessoas, como Sônia e eu, que não concordam com isso. Mas o que é que podemos fazer?
(1) Construído em 2024 (n. do a.)