HIPERESPAÇO

HIPERESPAÇO


Miguel Carqueija


Após dois dias de navegação pelo hiperespaço, nossa astronave Cybelle aproximava-se do porto de emersão, já no sistema de Alfa Centauri. Maravilhas do super-espaço, ou hiperespaço, como é mais geralmente conhecido! À velocidade da luz, levaríamos mais de quatro anos. O mergulho no hiperespaço, porém, como num passe de mágica eliminava a distância. Algo que desafiava ainda a explicação da Ciência.
O céu, visível de nossas janelas, era branco como leite, sem nenhum detalhe visível. Nenhuma estrela ou meteoro, nada em absoluto. Só o branco. Apenas nossos instrumentos de precisão nos asseguravam do avanço da viagem, garantindo que não nos encontrávamos encalhados na eternidade. Mesmo assim era enervante, e só não o era mais devido à pouca duração da travessia.
Olhei para Simeão Gonzaga Drummond, pela tela de circuito interno que o mostrava na sala de astronavegação. Ele me olhava também. Suas idiossincrasias pareciam visíveis. Com seu rosto corado, sorria um sorriso matreiro que tanto poderia significar alívio e satisfação por terem sido completadas as providências humanas para nossa chegada em segurança (o resto ficava por conta do sistema automático) como o triunfo íntimo que a sua vitória de macho conquistador decerto lhe fornecia. Eu não podia ver naquele momento a minha própria expressão, mas sabia que a mesma era sombria, reveladora de constrangimento e reserva. Uma atitude que eu mantivera durante toda a viagem e nos contatos que a antecederam, com o meu companheiro. Desde que soubera termos sido designados para efetuarmos junto aquela missão...
— Eu preciso ter uma conversa com você, Gustavo — disse ele, sem abandonar o sorriso pérfido.
— Sim? — limitei-me a dizer, impassível.
— Vai ser a conversa mais séria de nossas vidas — adiantou ele.
Nós quase não havíamos nos falado, limitando-nos ao mínimo necessário para o funcionamento de nossa missão. O correio cósmico não podia funcionar automaticamente, ainda eram necessários seres humanos, mas parecia uma brincadeira de mau gosto colocarem justo nós dois na mesma viagem! Tentei aceitar as coisas profissionalmente. Que outra atitude eu poderia tomar?
Ele não demorou a se explicar:
— Nós não estamos mais no Cretáceo, Gustavo, e por isso podemos resolver as nossas diferenças do modo mais civilizado possível.
— Do que você está falando?
— Mas não se iluda. As maneiras mais civilizadas são apenas, em grande parte, mais sofisticadas ou requintadas. Só isso.
"Esse sujeito deve ter absorvido raios cósmicos em demasia", pensei. "Só pode. Melhor deixá-lo falar à vontade".
— Mas vamos por partes, como disse Jack o Estripador — prosseguiu ele, movendo-se na poltrona giratória. — Nós dois sabemos que ocorre entre nós uma situação constrangedora. Sua esposa está comigo. Vocês ainda não se divorciaram. Esse detalhe, para o que eu vou colocar, é extremamente importante.
— Não tive tempo de agir — falei secamente.
— Pois é. Pior para você. Pois nunca lhe ocorreu, Gustavo, que se hoje você vier a faltar a sua pensão vai para Gertrudes? E que eu, incidentalmente, serei também beneficiado com isso?
"Ele só pode estar de gozação", falei para mim mesmo. ”Não ousaria fazer isso".
Achei melhor permanecer em silêncio, sem deixar de observá-lo.
— Agora procure visualizar a situação, Gustavo. Esta nave possui algumas características interessantes. A estase, por exemplo, pode ser compartimentada. Isso quer dizer que ela pode ser localizada, isolada numa parte do navio na hora mesmo da reversão estrutural para o espaço cósmico, na emersão do hiperespaço. Se isso acontecer, o compartimento da Cybelle em que permanecer a estase não emergirá, não retornará ao continuum einsteiniano e ficará definitivamente no hiperespaço. Percebeu as implicações do que estou a dizer? É maquiavélico, não é?
— Você bebeu alguma coisa? — perguntei, tentando manter a diplomacia.
— Ah! Ah! Ah! Estou mais sóbrio que você, amigo. Mas você sabia que, quando se conhece o suficiente de engenharia eletrônica, é relativamente fácil direcionar os capilares de estase de maneira a circunscrever apenas uma parte da nave? O único problema é garantir que a parte restante — aquela que chegará ao sistema Alfa Centauri — terá auto-suficiência, a começar pela impenetrabilidade das paredes e terminando pela dirigibilidade do conjunto e sua eficácia de pouso. Como vê, o problema não é tão difícil assim e eu consegui resolvê-lo.
Começou a ficar clara para mim a intenção daquele indivíduo.
— Você não ousaria uma coisa dessas. A própria Gertrudes não aceitaria isso.
— Ela não precisará saber a verdade. Para que amofiná-la? Ela só saberá que você morreu no desastre e que eu escapei providencialmente. E no íntimo ela vai achar muito legal.
— Você será descoberto.
— Que nada! Para um analista de sistemas "sênior" como eu, é fácil deletar todos os registros incômodos e farei isso em poucos minutos, após o reingresso da nave no espaço normal. Em suma, não há por onde me pegar... eu sou esperto, Gustavo.
— E pedante.
— Concedo isso. Sou pedante. Mas continuarei a ser um pedante vivo, e estarei com Gertrudes. Já você...
— E a sua consciência? Você terá paz e sossego pelo resto da vida?
— Eu vendi a alma ao diabo — respondeu ele cinicamente. — Por esse lado também não vai adiantar nada. Não me faça um discurso sentimental e ético que eu não vou verter lágrimas.
— Não deixarei que você me faça isso.
Assim dizendo eu corri para o terminal auxiliar à minha frente. Ele riu às gargalhadas e pôs-se a manipular os controles.
— É tarde demais, Gustavo! Sua hora chegou! Adeus!
Tentei travar o computador de bordo, mas ele ria dos meus esforços.
— Você há de reconhecer — prosseguia o monstro, enquanto manipulava os controles com toda a frieza do mundo — que não há maneira mais civilizada de assassinar alguém. Nenhuma violência, nenhuma brutalidade. Eu sou altamente civilizado, Gustavo. Tudo o que eu fiz na vida, eu o fiz com requinte e elegância. E sempre fiz tudo à minha maneira; jamais fui um bonifrates. Sempre fiz da minha vida o que eu bem quis. Poder, dinheiro, mulheres, diversão... por tudo isso vale a pena sacrificar vidas maçantes e tediosas como a sua.
— Canalha! — falei, acionando o comutador do alarma vermelho.
— Você não está no seu estado normal — prosseguiu Simeão, com repugnante calma. — Acionar o alarma no hiperespaço... nem as almas penadas poderão escutá-lo.
Tive vontade de destruir aquela tela de parede a cadeiradas. A tubulação de magiplast translúcido começou a apresentar uma coloração rósea, sinal de modificação da estase. Entretanto isto só era visível no outro compartimento; na sala de observação, onde eu me encontrava, a cor leitosa continuava.
— Você pode morrer também! — gritei. — Se remover 30% da estrutura a desestabilização do sistema de navegação será um fato...
—... em trinta horas padrão. Eu sei disso, tonto! E só preciso da quinta parte desse tempo para chegar à estação. Não, eu não me perderei. Faça as suas orações, meu caro! Ainda há tempo para isso!
Peguei o meu gravador-celular e me sentei junto ao painel auxiliar. Comecei uma lengalenga, sabendo que ele me ouviria:
— Ao Comando Estelar, às autoridades da Terra e da Colônia Centauriana, aos meus pais Estela e Yúri, tenho uma importante comunicação a fazer...
Drummond continuou com suas galhofas:
— Você é um número, Simeão! Que lhe adianta gravar as suas acusações? Seu aparelhinho continuará com você, e ficarão para sempre perdidos no hiperespaço...
Acoplei o aparelho num dos ganchos magnéticos da mesa do painel. O local começou a trepidar, a tremer, ante a iminência da transposição dimensional. A estase, porém resistia no compartimento em que eu me encontrava. Se as providências de Simeão houvessem sido acertadas com a adequação do componente plástico polimorfo de vedação automática (o multividro), a separação far-se-ia sem problemas de escapamento do ar para o vácuo infinito.
— Adeus, querido Gustavo! Lembranças aos anjinhos! — gritou ele, fazendo ao mesmo tempo um gesto obsceno.
Abri um compartimento secreto de meu gravador-telefone celular e teclei "power".
Instantaneamente a tubulação de magiplast começou a alterar suas cores. A cor rósea foi surgindo em meu aposento, a cor leitosa avançou sobre o dele.
— Que é isso? O que você fez? — gritou ele, espantadíssimo. Respondi com serenidade:
— Na tecnologia de última geração... última mesmo... já existe o aparelho de sucção energética e direcionamento de estase... ainda em fase experimental mas que funciona mesmo. Um amigo cientista adaptou o brinquedinho em meu celular. Adeus, Simeão. Se um de nós vai ficar no hiperespaço, é você mesmo!
— Espere! Não pode fazer isso comigo! Não é justo! Não é decente! É um crime! Pare...
Começou a se debater contra a tela, em meio a gritos de pânico, frases hipócritas. A reversão de estase atingiu-o nesse ponto. Num instante ele estava ali à minha frente, berrando como um possesso. No instante seguinte eu já não o via, e nem a sala ao seu redor, com todos os móveis e instrumentos: em seu lugar estava um céu de negrume profundo, cravejado de assustadoras estrelas...
"Acabou-se", pensei. "Pobre diabo". E me ergui, aborrecido com a imensa tarefa que tinha pela frente: recalcular, redesenhar a trajetória da nave mutilada, de maneira a garantir uma chegada suave e segura à Estação Arthur Clarke.
A vida de um astronauta é sempre muito enfadonha.