Puro preconceito?
Deixe-me explicar de novo, acho que o senhor não entendeu. Este não é um hotel adequado para a sua gente. – Disse o atendente já demonstrando estar ficando sem paciência.
- Como assim, “minha gente”? O que você quer dizer com isso?
- Sua gente. Pessoas como o senhor. Este lugar não aceita pessoas como você. Deu para entender agora? – E mesmo através do tradutor automático que ele utilizava para se comunicar pareceu ser possível perceber uma ponta de hostilidade em sua voz.
- Você está afirmando que eu não posso me hospedar aqui por causa da minha raça? É isso mesmo? Não posso acreditar, isso é um absurdo! É puro preconceito! Nunca imaginei que isso pudesse existir aqui também!
O atendente gesticulou de forma vaga, dando a entender sutilmente que pouco se importava com a opinião do seu interlocutor e fez menção de se afastar dando a conversa por encerrada. Mas o turista estrangeiro não estava disposto a aceitar aquilo tão facilmente:
-Ei espere aí, onde pensa que vai? Isso não vai ficar assim não, pode ter certeza! Eu vou procurar as autoridades, deve haver uma polícia ou algo parecido neste lugar esquecido por Deus, e vou fazer uma queixa formal. Vou reclamar à gerência do hotel, e você vai perder o seu emprego! – Insistiu ele em voz exaltada, dando vazão à sua indignação.
Mas o atendente apenas o olhou com ar de enfado e respondeu:
- Esta é uma determinação da própria gerência, meu senhor. Sua gente não pode ficar hospedada aqui. Por favor procure algum outro lugar para ficar, existem vários bons hotéis na região que aceitam a sua raça sem problemas e certamente há muitas vagas disponíveis nesta época do ano. Mas aqui isso é realmente impossível.
- De jeito nenhum! – Insistiu o estrangeiro em um tom cada vez mais elevado - Eu pesquisei bastante antes de vir para cá e este hotel é o mais recomendado nesta faixa de preço, além de ter a melhor localização. É aqui que eu vou ficar e quero ver quem vai me impedir. Já disse, estou disposto a ir às autoridades locais e duvido muito que elas venham a concordar com isso. O que é que você pensa? Este lugar sobrevive do turismo, o que elas vão achar se os hotéis começarem a recusar hóspedes que vem de tão longe por puro preconceito racial? - E enquanto ele falava sua voz se tornava cada vez mais alta e estridente, começando a chamar a atenção dos hóspedes que passavam pelo saguão do hotel naquele momento.
O atendente, até então aparentando absoluta indiferença por sua indignação, pela primeira vez mostrou algum sinal de apreensão. De fato, o turismo era a atividade econômica mais importante dali e consequentemente as autoridades davam a ele uma importância bastante significativa. Além disso, turistas exaltados fazendo escândalo em saguões eram péssima recomendação para o hotel. Se os hóspedes mencionassem isso em suas avaliações diversos possíveis clientes poderiam deixar de fazer suas reservas para aquele estabelecimento no futuro. E a gerência certamente culparia a ele por não ter lidado de forma adequada com aquela situação.
Mas isso não era justo, aquilo não era culpa dele! Não fora ele e sim o computador que aceitara a reserva daquele indivíduo sem perguntar qual era a sua raça, então por que agora era ele que tinha que lidar com aquele estrangeiro sem noção? Indignado por ter que resolver um problema evidentemente causado pelo pessoal da programação linguística mas que agora se tornara sua responsabilidade, ele deu-se por vencido e desistiu de tentar convencer o turista a ir embora procurar outro lugar para ficar.
- Está bem, está bem, não é necessário ficar nervoso. Eu vou aceitar o seu registro e para que o senhor não fique com uma má impressão de nosso estabelecimento vou fazer mais o seguinte: Vou aplicar um upgrade à sua reserva, colocando-o em um quarto dois níveis de referência acima do que foi reservado, pelo mesmo preço. É um de nossos melhores quartos, com uma linda vista e uma sala de estar separada, com acesso irrestrito à omninet. Sem direito a reembolso, é claro. – E o atendente disse esta frase final com a voz bem baixa e casual, sem olhar nos olhos do outro na esperança de que ele nem a notasse.
O turista na verdade a notou sim, mas nem lhe deu importância pois estava procurando na tela holográfica emitida pelo implante cutâneo em seu pulso os dados do novo quarto. Ele sacudiu a cabeça, satisfeito, deu um sorriso vitorioso e estufou o peito antes de aceitar a oferta do atendente do hotel, esticando um dedo para a confirmação do registro. O atendente aplicou então o scanner de raios gama à ponta do dedo que lhe era estendida, confirmando o padrão genético e desta forma a identidade e a autorização de débito do novo hóspede. Ao mesmo tempo câmeras tridimensionais registraram todos os detalhes de sua aparência, o que garantiria a abertura automática da porta do seu quarto bem como o acesso ao refeitório e a outras amenidades disponíveis no hotel. O sistema aparentemente encontrou alguns problemas, mas o atendente rapidamente entrou com comandos manuais para ignorar as mensagens de erro e conseguiu efetuar o registro mesmo assim. Quando o computador indicou que todos os procedimentos haviam sido completados um dos robôs carregadores foi ativado para cuidar da pesada bagagem daquele cliente impertinente.
- Seu quarto será o C-36, senhor. O robô vai indicar o caminho, é só segui-lo. Disse o atendente após conferir que tudo estava certo, aliviado por se livrar daquele irritante e indesejado hóspede.
O turista então aguardou o robô alongado de oito pernas recolher com seus múltiplos braços os muitos pertences que trouxera e pôs-se a acompanhá-lo com ar triunfal, passando pelo saguão, tomando o elevador gravitacional e saindo no suntuoso corredor do andar onde ficava seu quarto. Ele reparou que o pé direito das instalações do hotel além do grande saguão era bastante baixo, quase tocando sua cabeça, e todas as portas pareciam bem mais largas do que seria necessário, mas a princípio não deixou que isso o incomodasse.
Quase ao final do corredor o robô parou defronte de uma das portas, que se abriu deslizando para cima de forma elegante e silenciosa, e entrou no quarto com as malas e bolsas, depositando-as cuidadosamente no chão. O turista esperou que ele saísse, satisfeito por não ter que dar nenhuma gorjeta ao robô como ainda era tradição em certos hotéis que empregavam espécies orgânicas como carregadores, algo considerado de bom gosto por algumas pessoas mais abastadas. E entrou então no quarto por sua vez, com um ar de triunfo estampado na face. Só aí ele percebeu qual havia sido o seu grande erro.
O quarto era bastante amplo e decorado com muito bom gosto, com um grosso carpete cinza escuro cobrindo o piso e paredes texturizadas em tons de vermelho e bege. Quadros abstratos multicoloridos, de efeito estético agradável, enfeitavam todas as paredes. As largas janelas, que no momento estavam reguladas para transparência total, tinham de fato uma vista magnífica da cidade e das exuberantes florestas ao redor, com as lindas montanhas azuladas e seus topos cobertos de neve muito branca ao fundo. No entanto, as janelas eram muito baixas, começando a menos de trinta centímetros do solo e alcançando uma altura máxima de um metro e meio, o que o obrigava a se abaixar bastante para poder olhar por elas. E isso não era o pior. Não havia nenhuma cama, poltrona ou mesmo simples cadeira no quarto ou na sala de estar contígua, apenas rebaixos estreitos e alongados levemente acolchoados, posicionados em pontos estratégicos do piso e com estranhas canaletas em todo o seu contorno.
Já temendo pelas possibilidades de permanecer naquele quarto por um mínimo de tempo que fosse ele correu para o que adivinhou ser a porta do banheiro e mesmo sem entrar pôde constatar que não havia nenhuma pia e nem mesmo um vazo sanitário, mas apenas estranhas cavidades e orifícios de aspecto suspeito espalhados pela parte inferior das paredes e no piso. Por mais que ele fizesse contorcionismo não existia forma de utilizar com um mínimo de segurança aquelas instalações sanitárias. E também não havia nem sombra de uma banheira ou de um chuveiro.
Eram instalações de hospedagem para raças não-humanas, provavelmente para criaturas de anatomia artrópode multiarticulada que eram comuns naquela região da galáxia. Com certeza o hotel inteiro estava preparado para este tipo específico de hóspede. Acionando mais uma vez seu implante cutâneo o turista verificou rapidamente a descrição do hotel, que ele em sua empolgação não havia lido em todos os seus detalhes. E no canto inferior e esquecido da página inicial, quase escondido por uma linda imagem holográfica da fachada, ele descobriu para sua consternação o pequeno aviso que dizia em letras discretas: Instalações exclusivas para artrópodes isópodes, aracnóides, miriápodes e outras formas de vida com configuração corporal compatível.
Ele não tinha como ficar ali, nem mesmo por uma noite sequer.
E enquanto recolhia seus pertences, agora sem nenhuma ajuda de qualquer robô, o turista terráqueo lembrou-se amargurado dos termos de seu registro informados de forma propositadamente casual pelo atendente: Sem reembolso. O miserável fizera questão de lhe oferecer o upgrade de quarto com esta condição, sabendo que ele não poderia aproveitá-lo de qualquer maneira. E ele já havia pago por duas semanas inteiras naquele maldito hotel!
Derrotado, o turista não teve opção além de ir embora, sobrecarregado pelo peso de todos os apetrechos de viagem que trouxera na esperança de melhor aproveitar as muitas atrações do local mas agora sem recursos para pagar a estadia em qualquer outra hospedaria. Ele teria que voltar para a Terra e passar suas duas semanas de férias trancado em casa, ruminando seu infortúnio.
E ao passar novamente pelo saguão do hotel, envergonhado, cabisbaixo e quase escondido por suas malas e mochilas, ele nem mesmo teve a coragem de lançar um último olhar de justa indignação para o atendente que o engambelara aproveitando-se de sua própria empáfia e que o observava com uma expressão irônica em seus olhos multifacetados enquanto descansava seu corpanzil de gorda centopéia sobre o longo balcão de atendimento, aguardando tranquilamente a chegada do próximo hóspede.