Máquina do tempo
O local era importante, precisava levar em conta, ao contrário do que acontecia nessas historinhas de ficção científica, que ao se deslocar no fluxo temporal iria continuar no mesmo ponto do espaço, de maneira que se escolhesse um terreno que mudasse muito sua conformação geológica poderia materializar com a cápsula a dezenas ou centenas de metros de altura ou no interior da terra, assim como no mesmo local que uma árvore, um edifício, uma nave pousada ou um estegossauro, embora essas últimas possibilidades fossem inescrutáveis e não lhe sobrava mais que contar com a boa vontade dos deuses, mas estava em suas mãos executar os cálculos com exatidão sobre os blocos de tempo a serem percorridos de cada vez, cuidando para que ressurgisse quando a Terra estivesse no mesmo ponto da órbita e oferecendo o mesmo ponto de sua superfície, complicações extenuantes mas de envergadura irrisória comparadas às envolvidas na magnitude de todo o projeto, a descrença da sociedade científica, os anos de trabalho clandestino, o isolamento social, os recursos conseguidos muitas vezes de maneira questionável, quando não abertamente criminosa ou suicida, o foco absoluto e absorvente, sua crença indestrutível nas possibilidades que a física quântica oferecia de se manipular o fluxo temporal, deslocando uma quantidade determinada de matéria através das eras, pouco lhe importava a probabilidade nada desprezível de ter seu corpo convertido num feixe energético e depois recomposto num amontoado disforme de matéria orgânica nas fuças de algum guaibasaurus candelariensis estupefato, a mera possibilidade era tão fascinante que todo o resto se desvanecia no ar.

A cápsula na verdade não ocupava muito espaço, teria conseguido transportá-la, e isso será uma vantagem inestimável se tiver de escondê-la, mas tinha tido o cuidado de calcular e providenciar o local ideal antes de iniciar sua construção, o que também envolvia a viabilidade de furtar da rede pública a colossal quantidade de energia necessária, o que lhe trazia o problema insolúvel de ficar preso no passado por falta de acesso a esse recurso ou no futuro por incapacidade de lidar com as tecnologias de então, ocasiões em que, ou daria um jeito de deixar uma mensagem perene para sua glória na posteridade (não importa que não haja notícia de mensagem nenhuma desse tipo agora, talvez ainda não tenha sido achada) ou gozaria o prazer de desfrutar da tecnologia de viagens no tempo corriqueiras, da qual ele seria o grande idealizador e herói, reconhecimento que seria garantido por suas anotações científicas e seu diário, quiçá fosse até esperado. A incerteza vinha do fato de que, embora pudesse garantir um múltiplo do bloco de tempo ideal a ser percorrido pelos cálculos de massa e energia, evitando os problemas orbitais da localização do planeta, havia um fator de contingência que o condenava a viajar no escuro, sem saber se partia para o passado ou para o futuro, ou mesmo quantos blocos exatamente iria percorrer, o que na verdade tornava tudo ainda mais fascinante e vertiginoso.  

Programou a viagem para o começo da noite, escuridão suficiente para permitir a sorte de talvez passar despercebido por humanos, mas não tão avançada para expô-lo à voracidade de carnívoros noturnos, preparou o mecanismo que tinha adaptado de injeção intravenosa programada de estimulantes potentes (não sabia se iria perder a consciência e se teria de correr ou lutar pela vida em seguida), uma arma discreta de defesa por administração de choques elétricos, mantimentos para dois dias, assim como uma mochila versátil, uma vez que tinha de contar com aquecimento global fulminante ou glaciação, e se pôs a tentar conter a excitação e terminar os últimos ajustes. Agora faltava pouco, se encolheu como pode no pouco espaço da cápsula e começou a contagem regressiva cheio de suor, taquicardia e vertigem, um menino mal se contendo, esperando para virar a chave de ignição do carro de fórmula 1.

5-4-3-2-1...

Os bombeiros chegaram uns vinte minutos depois, junto do corpo semicarbonizado e conectado com fios à torre de transmissão da rede elétrica encontraram restos de uma caixa de papelão coberta de desenhos minuciosos feitos com pincel atômico e uma mochila intacta, dentro havia umas roupas velhas, dois pãezinhos e duas latas de sardinha e uma raquete elétrica dessas de matar mosquitos, no braço mais conservado tinha preso com um elástico um despertador e uma seringa hipodérmica.
Dener Pastore
Enviado por Dener Pastore em 23/10/2015
Reeditado em 29/10/2015
Código do texto: T5424156
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