MADEUZA

Obs: (Ficção científica ultra soft, ou inexistente -- mas eu quis postar nessa categoria mesmo assim. Hehehe!)

O INCREMENTO — Engano

Discutiam como poodles no cio. Alarido esganiçado de agressões suportadas em pilares de frustração. Ele, rosto congestionado, dedo em riste como quem sublinha uma sentença, bateu o martelo e se atirou noite afora para seu reduto na garagem.

— Está decidido. Decidido.

Ela, pezinho polido machucando a ridícula lã branca estendida sobre o piso, tranqueira dada pela mãe dele em comemoração aos três anos de casamento dos dois, cruzou os braços sobre os seios pequenos e ameaçou. Sobrancelha erguida e tom sarcástico.

— Pois eu destruo quando chegar. Não brinca comigo, ouviu?

Porta batida nas costas, mundo externo vedado. Grunhidos em medidas iguais de raiva e resignação. Gravata e terno jogados sobre caixas de revistas Quatro Rodas e Playboys. Não reconhecia mais a si mesmo. Como pôde deixar que a esposa o dominasse daquela forma?

Construiu aquele quartinho para fazer suas coisas Neandertais, como ela dizia. Ouvir Pink Floyd, ler Drunna, coçar o saco e acessar aqueles sites cheios de xis sem ter cuidado de apagar histórico algum depois. Sentia que a esposa tratava-o como um cão adestrado, e que era ali onde ele se via livre da coleira.

Colou os olhos na tela do micro e digitou enfurecido o teclado. Primeiro o D, depois o R, O, I, D…

E então decidiu.

CABEÇA VAZIA, OFICINA DO DEMÔNIO

Era um homenzinho muito justo, trabalhador e temente a Deus. Odilon, também chamado carinhosamente de Didi, pela esposa. Estrela cadente que se foi sem lhe deixar um filho. Casaram, pois, na igreja e prometeram fidelidade enquanto houvesse vida. Agora, enquanto olhava as ancas de uma cabrita muito aprumada e mansa, pensava naquela promessa. Uma vez que a mulher jazia sob sete palmos, não fazia sentido aquele celibato sacrossanto. Mas o homenzinho de voz fraca e pouco entendido das coisas do mundo, só conseguia se aproximar de alguém nas manhãs de Domingo, quando mastigava a hóstia sagrada e ouvia as palavras cheias de mistérios que o padre dizia nas missas, guardando algumas para si e recitando-as na procura de não se desviar dos bons caminhos divinos. Nas quintas de feira, vendia leite e queijo, e via os conhecidos de outras redondezas que aos poucos debandavam do campo e deixavam que suas terras fossem abocanhadas pelas construções de pedra e ferro da cidade. Nessas horas ele se sentia alegre e preenchido, mas no decorrer da semana, a solidão o fazia escutar e pensar no que antes não pensava. Agora, sentindo cada músculo do seu corpo tentado, forçava sua cabecinha chata para lembrar em que parte da bíblia dizia que Deus havia dado a Adão a missão de nomear todas as coisas do mundo e “dominá-las”. E, buscando pretextos para embasar sua atitude repetiu de si para si que não estaria fazendo nada além de seu direito.

Com esse pensamento, cessou o pastejo dos animais e tangeu-os de volta para o curral onde pôs os olhos mais uma vez na cabrita que, segundo ele, o observava cheia de malícia e pestanas. Estalou os lábios em beijos para acalmá-la, se pôs atrás dela e baixou a calça de bainha improvisada pelo corte de terçado que ele mesmo havia dado, procurou, procurou, e nas pontas dos pés alcançou. Mas já em vias da crise, a voz trovejante do padre soou de dentro para fora chamando a razão. Lembrou-se dos sodomitas e das iniquidades que provocaram a ira do Senhor. Então, envergonhado, correu para dentro da casa e não mais saiu o resto do dia.

SEPARAÇÃO

— Ridículo! Ridículo! Definitivamente ridículo!

— Vai, sai agora.

Pensou em cancelar tudo, mas não suportaria os amigos pegando no pé dele, afinal, era um dos poucos que não possuía aquele artigo de luxo. E, além do mais, não havia sido ela mesmo que dissera estar pronta para incrementar a relação? Calou-se. Ficaria escuso na garagem até que ela se acalmasse como das outras vezes. Segurou a alça da mala e caminhou até a porta.

— E nem pense que vai ficar aí, escondido nesse muquifo. Eu já troquei todas as fechaduras.

— Mas… meu bem… a casa é minha…

O dedo duro em direção à porta ainda estava erguido. Arfou sentindo que todos os ossos haviam abandonado seu corpo e, vencido mais uma vez, escorreu para fora.

O COCHILO DO CAMINHONEIRO

Queria chegar logo. Estava pesado, quase não contendo mais o sono. Se ao menos soubesse configurar a perua para navegar automaticamente como os colegas faziam, e não só fingir que o treinamento lhe fora suficiente para aprender a nova tecnologia… Mas não sabia e não queria ser substituído por alguém mais jovem.

Pegou as encomendas e colocou-as de qualquer maneira na perua. Aguentou enquanto pôde na ermidão do asfalto, mas o cochilo repentino derrubou suas forças e quando abriu os olhos, a manobra teve que ser apressada para que não viesse abaixo com o transporte. Deu alguns tapas em si mesmo e balançou a cabeça, fazendo sons altos semelhantes aos de um cavalo. Piscou os olhos sentindo-se desperto e mais uma vez pisou fundo no acelerador e seguiu viagem. Se naquele momento tivesse observado com atenção o retrovisor, veria o retângulo revestido de papelão liso rodando ladeira abaixo, mas ele não o fez.

CONTATOS

Odilon abriu a porteira, sisudo. E não ousou tocar nas ancas das cabritas para dar-lhes palmadas a fim de fazê-las correr pelo pasto. Tinha que evitar qualquer tentação.

Enquanto andava em meio aos animais, não percebeu o caixote estendido sobre o gramado naquela depressão onde acima, a rodovia passava. Só quando as cabras se aglomeraram naquele ponto, devorando o embrulho, é que a curiosidade o fez aproximar-se.

Levou a mão à boca e exclamou num desespero curto diante do que via.

— Pela’mor!

Dentro daquele caixote revestido de papelão fino, um ser com traços de mulher jazia deitada, muda e nua. Mas o medo se desfez deixando somente a surpresa no lugar assim que ele olhou um dos dedos dela. Lá, onde os animais tinham mordiscado, havia a exposição do ferro incutido no silicone, e mesmo sem saber como aquilo era possível, deduzia, pois, que aquela não era uma mulher “mulher”.

Se a altura era pouca, a força, por outro lado, era seu contrapeso. Grosseiro e resistente, o pequeno homem tratou de suportar o arremedo de mulher sobre os ombros, tendo cuidado de levar consigo, também, um livrinho pardo escrito por dentro e por fora que ali se encontrava.

Atravessou a porta suando em bicas e não pensou duas vezes, atirando a mulher sobre a cama. Exausto, sentou-se em uma cadeira e permitiu que os olhos esquadrinhassem aquele ser esguio, rijo e de uma beleza diferente da que havia na falecida esposa. Coçou a cabeça e então dividiu a atenção folheando as páginas do livrinho cheio de sinais que ele não conseguia identificar. Se soubesse ler, poderia encontrar, em seu idioma, instruções que revelariam botões a altura da nuca do autômato, veria ainda que poderia escolher funções multilíngue pressionando o lobo da orelha dela, e controlar contrações bem como fazê-la comprimir a estatura do corpo num tamanho ideal. Mas Didi soletrava arrastado, fechou o livrinho quando chegou na parte de acessórios que poderiam ser instalados: projetores de hologramas, óculos 3D, próteses penianas de tamanhos e formatos sortidos. O cenho franziu com as imagens a sua frente, sentiu um frio percorrer sua espinha e que a cabeça estava fora dos eixos. Apoiou o queixo no curto braço, e este, por sua vez, apoiou sobre as pernas cruzadas. Depois balbuciou, com muito esforço, as palavras do rodapé.

— MADE U.S.A.

Só levou algum tempo para que as memórias do Mobral fluíssem. A professorinha que usava as coisas próximas a ele para alfabetizá-lo havia dito que o “s” entre as vogais tinha som de “z”. Ficou feliz em chegar a aquela conclusão e repetiu mais uma vez as palavras, rindo sozinho com o sonoro nome que descobria.

— MADEUZA… MADEUZA…

“E ela não tinha mesmo algo divino?” Pensava.

ORDEM NO CAOS

Ele nem ligava mais para as brincadeiras dos colegas, que não conseguiam parar de falar das “maravilhas” que uma “Sexy Droid Nature” era capaz de fazer. Já estava farto daquilo. Nem parecia que estavam ali, naquela concessionária, que eram adultos, com responsabilidades, contas a pagar, mulheres e filhos.

Filhos…

Se epifanias tem ignições improváveis, aquela era a sua. Baratinado pegou o smartphone lembrando-se das palavras da esposa ditas há uma semana. Havia entendido errado o incremento da relação?, porque lembrando de tudo naquele momento, percebia que a esposa não havia pedido nada dele, agia mais como se estivesse prestes a anunciar algo.

— Alô.

— Meu bem? Sou eu.

— É, dá pra ver aqui.

— …

— Ligou pra saber se a tua encomenda chegou, né? Ainda nã…

— Não, não. Eles extraviaram. Poderiam me mandar outra, mas… eu pedi o reembolso.

— …

— Meu bem?

— Eu… menti.

— Hã?

— Menti. Não… Não troquei as fechaduras.

Ele sorriu aliviado sentindo que tudo ficaria bem.

— Preciso te mostrar uma coisa.

— Certo, tou indo pra’í agora.

Catou as chaves da mesinha não dando importância se o fim do expediente só aconteceria duas horas depois. Dirigiu manualmente e passou numa floricultura. Eram tempos modernos onde o amor podia vestir novas fantasias e ornar-se com outros floreios, mas continuava sendo amor.

— Tá na mão. Pague no caixa.

Puxou a carteira, ser pai aos 32 anos não estava nos seus planos, mas… evitava pensar em todos planos fracassados que o trouxeram até ali.

— Quarenta e cinco e sessenta.

Concordou, colocou uma cédula de cinquenta reais sobre o balcão e deu uma piscadela.

— Aqui, pode ficar com o troco.

Ela retribuiu o gesto e completou docemente:

— Aproveite bem o seu dia.

— Obrigado.

Caminhou com molejo como embalado por uma canção, mas na porta, voltou-se para trás e percebeu. Não havia sido atendido por uma pessoa.

— Essas belezinhas vão dominar o mundo, meu chapa.

Olhou para o atendente sem concordar ou negar nada. Entrou no carro e evitou pensar em qualquer outra coisa, então tudo voltou a ser sorrisos novamente.

Quando atravessou a porta, lá estava ela, vestida com um macaquinho escuro que realçava a pele clara. Deu-lhe as rosas e ela retirou um envelope de dentro do bolso frontal da vestimenta. Explodiram em risos. Já não eram mais só eles dois.

SATISFAÇÃO

Didi só saiu de casa pelo fim do dia. A chuva anunciada começava a cair em torrentes naquele momento. Não se importava em molhar-se, estava satisfeito e respirava fundo sentindo a vascularização no cérebro, há muito, afogado.

Bateu palmas e conduziu os animais para o curral, divagando.

“Tudo o que Deus faz, é bem feito. Cozido. Outra mulher de carne e osso podia me deixar de novo, mas… minha Madeuza não.”

E chapinhando os pés na água empoçada, fechou a porteira e voltou para casa lembrando-se de como podia jurar que sua Madeuza havia aberto os olhos e movidos os braços e pernas quando ele tocou no pescoço dela. Entrou assoviando e tratou de se enxugar antevendo novos momentos alegres. O homenzinho havia acionado, sem querer, a carga da bateria deixada para as primeiras configurações da “Sexy Droid.” Havia ferro e fibras nos membros para simular um abraço, o maior peso encontrava-se na cabeça.

Assim como o IMEI de celulares podem bloqueá-lo, a tecnologia daquele produto permitia fazer o rastreio. A carga duraria pouco, mas era tempo suficiente para deslocar uma equipe de “resgate.”

Odilon mergulhou outra vez nas cobertas, indiferente ao pouco tempo de amor que lhe restava.

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Publicado originalmente no BLOG EntreContos, Desafio Ficção Científica.

Maria Santino
Enviado por Maria Santino em 22/10/2015
Reeditado em 22/10/2015
Código do texto: T5423943
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