Sexta em fogo

(dica do autor: Leia ouvindo Welcome Home do grupo Radical Face - https://www.youtube.com/watch?v=P8a4iiOnzsc)

“Nossa, como eu gostaria de comer um esfiha….” era nisso que pensava Rogério, com a testa colada a janela do ônibus, quando o primeiro salto dimensional da história da humanidade aconteceu. Não que o evento tenha sido percebido, registrado e acompanhado. Ele simplesmente aconteceu, transportando uma gigantesca área localizada a meio caminho entre São Paulo e Araraquara.

Para o motorista, que fazia o caminho pela centésima vez, nada teria sido percebido por, pelo menos, uns 15 minutos, se não fosse o fato de a região transportada ter se materializado cerca de 10 metros acima da superfície. O segundo de gravidade zero, embora rápido, ergueu do sono, aos berros, metade dos passageiros e laçou em terror outro tanto.

Rogério, bêbado, sentiu um leve frio na barriga e antes que pudesse pensar a respeito, sentiu a força do impacto que o colou à cadeira e fez sua testa repicar no vidro fumê.

- Mas que diabos foi isso? – gritou André, o vocalista, que se agarrava aos braços da cadeira as eu lado, enquanto o ônibus queimava seus pneus em uma brecada de empinar a traseira, jogando as pessoas do fundo de seus assentos aos encostos logo à frente e transformando em uma dolorosa chuva todos os pertences que não estivessem suficientemente socados no bagageiro.

Crianças choravam, pessoas apavoradas rezavam e, Rogério, não entendia o motivo de tanto desespero. A sensação de descolamento do mundo e de paz na Terra ( fosse aos homens de boa ou má vontade) que sempre o dominava após o quarto ou quinto copo de uísque estava passando rápido. Uma queda do nada, seguida de uma parada brutal e uma chuva de mochilas, ativara com muita eficiência seu organismo. Em desespero, suas glândulas bombeavam loucamente adrenalina para o sistema, tentando restaurar “a condição para combate” do ser desprezível que só sabia tocar bateria, quiçá, fazer miojo.

O ônibus, agora parado, havia saído da estrada, ultrapassado o acostamento, derrubado uma cerca de madeira e avançado alguns metros em um milharal. Por toda a volta, de cada uma das janelas, só se viam folhas a se mexer de um lado para o outro, em parte devido ao impacto, e, também, devido ao vento que varria o ambiente. O motorista não demorou para ir verificar se sua carga viva ainda mantinha tal qualidade. Com um rosto aterrorizado pela experiência, pedia desculpas enquanto avançava pelo corredor, gritando em resposta às ofensas, que não sabia o que tinha acontecido, apenas que sentira o mesmo frio na barriga e um impacto terrível que levara o sistema de segurança do ônibus a brecá-lo violentamente. Fizera seu melhor, podiam ter enfiado a fuça em um caminhão de carga.

Passageiros com o rosto coberto de sangue gritavam de medo, dor ou revolta, ameaçando agressão ou processos. A tudo o jovem negro ouvia, amaciando o peito dolorido pelo tranco do cinto e retrucando: - Se estivessem com o cinto, como pedi no início da viagem, seus idiotas, ainda teriam a cara inteira!

Confirmadas apenas leves escoriações, ele retornou a direção e começou a dar ré. Com alguma dificuldade, os potentes motores do veículo responderam e a carroceria abriu espaço entre a fechada parede de plantas. Em instantes voltavam a rodovia, que se mostrava coalhada de carros batidos ou parados, pessoas desorientadas vagando ou grupinhos que discutiam.

O jovem músico olhou pela janela, agora totalmente sóbrio, e vislumbrou o céu de um estranho azul acinzentado e escuro. Não parecia com nada que já tivesse observado antes e isso era muito estranho, já que “morgar” olhando para as nuvens era seu passatempo preferido. No horizonte, além do mar de milho que se estendia a direita e a esquerda da rodovia, havia nuvens escuras e sujas, como se uma tempestade de aproximasse. Seguindo o cardume, que se movimentava pulando mochilas, sacolas e malas, avançou pelo corredor em direção a saída.

Ao descer, viu o resto da banda reunido próximo à frente do ônibus, ajudando uma família que tentava sair de um carro capotado. Mirou novamente o céu, gelou. A sua volta as pessoas se auxiliavam, conversavam entre si, apontavam para os carros batidos, virados ou parados bruscamente, preocupados com sua própria volta, consigo mesmos e para tudo o que, ao nível dos olhos, chamava atenção. Ainda sim, ninguém olhava para o alto, para a linha do horizonte acima dos pés de futura pipoca, quase prontos para serem colhidos. Nem um deles parecia perceber que não eram nuvens de tempestade que avançavam de uma direção, eram nuvens negras como breu, que invadiam o teto azul escuro por TODOS os lados. Rápidas, com seus raios e trovões, só encontravam como resistência a massa de ar límpido, característica de uma linda tarde de céu claro. Um céu que não tinha, um instante atrás, o menor sinal delas.

- Ninguém aqui notou que está escuro às três da tarde e que há uma tempestade avançando de todo lado, ou fui só eu? – comentou enquanto os amigos faziam comentários jocosos sobre a dor de cabeça que teria o seguro da concessionária da rodovia.

André que remexia seu smartphone com violência, irritado por não haver nenhuma rede disponível, levantou os olhos para, assim, gelar como seu amigo. Perdeu a voz em um gemido, a mesma que havia levado a loucura tantas plateias em shows de rock por todo o país. Com mais uns pigarros, conseguiu proferir em sussurros: – Deus, o que é isso?

A menção ao criador se espalhou, como mágica, por todas bocas quando um vento forte e fresco, até então contínuo, cedeu espaço a um ar quase insuportavelmente quente e fétido, agressivo e nauseabundo. Em instantes, homens, mulheres, crianças e velhos, que haviam se ocupado apenas com machucados, conexões de internet e celular que não eram encontradas, além de entender o que fora a aterrorizante experiência da queda, registrada por profundas rachaduras no asfalto, vomitavam com força, enquanto oravam para que nenhum órgão aproveitasse a deixa para fugir.

A temperatura não baixou, as nuvens rapidamente ganharam terreno e acompanhando a luminosidade que diminuía um pó negro começou a cair, enquanto uma mortiça luz avermelhada ganhou destaque no horizonte. Havia se passado quase 10 minutos desde o inexplicável evento, quando das duas direções da rodovia, nas pistas de ambos sentidos, um barulho de buzinas começou a ganhar nitidez, logo seguidos de luzes de faróis em velocidade. Naquele ponto mais baixo e que estavam, uma espécie de ondulação do terreno semelhante ao fundo de um vale, todos puderam ver carros, motos e ônibus que corriam se precipitando naquela direção. No interior desses veículos em disparada, almas absolutamente apavoradas fugiam, desviando da melhor forma possível do que estivesse à frente.

O céu, agora negro e revolto, retumbava sobre as cabeças de pessoas que tentavam proteger olhos e narinas, enquanto arrancavam camisas, jaquetas e blusas na sanha de se resfriar. Os amigos de Rogério, com alguns berros, tiraram-lhe do torpor em que caíra observando a aproximação daquela onda.

- Cara…. olha isso. Sobe aqui, anda, anda. - Diziam em coro os jovens que haviam dado um jeito de subir em cima de um caminhão.

Com relutância, Rogério deu os braços aos colegas e apoiando os pés em alguns cabos de ligação, conseguiu subir no baú do caminhão de carga parado próximo ao ônibus. “É, depois tenho de agradecer o motorista por evitar esse trombolho” pensou.

Ainda tentava limpar o rosto da poeira que se colara nele ao subir, quando seus colegas o colocaram de pé e apontaram para o horizonte. Da posição em que estavam conseguiam ver, para além da elevação da estrada e dos carros em fuga que já se amontoado em filas, incapazes de seguir pelo caminho interrompido por outros veículos batidos ou abandonados, o motivo de tanta pressa.

No horizonte, brilhante, observavam um imenso mar de lava, que se aproximava lentamente, engolindo a rodovia, as plantações que incendiavam e tudo ou todos que ficassem para trás.

- Somos uma ilha no meio do inferno cara! – Gritou se sobrepondo aos trovões, com uma incompreensível animação, o guitarrista. – Estamos é ferrados.. – resmungou o baixista com sua típica frieza.

- O que é isso Rogério? Diz aí cara… seu irmão é geólogo, né não? – André perguntou com urgência na voz, olhando para o rosto do rapaz .

- O geólogo é ele brother… – tossiu. – Mas acho que isso aqui é nosso último show…

Os colegas assentiram, enquanto um grupo cada vez maior de pessoas se reunia ao redor do ônibus, praticamente posicionado no centro geográfico do acontecimento. A distância, dos carros e caminhões, brotavam pessoas em pânico, algumas, mais rápidas, já haviam até mesmo passado pelo ônibus e encontrado grupos que corriam vindos da direção oposta.

- E não somos uma ilha, somos um barco e que está afundando rápido pra caramba. – completou o baixista com certo desgosto na voz.

Não demorou muito, na verdade, poucos minutos, para que a bateria estivesse montada em uma pequena elevação de pedras, entulho de alguma obra, a beira da rodovia. As caixas foram posicionadas no entorno e um cabo de energia foi conectado ao ônibus. Incrédulos, alguns observavam a cena, enquanto a grande maioria das pessoas só pensava em buscar se elevar o máximo possível. Acotovelando-se e agredindo-se disputavam um lugar em cima dos veículos mais altos.

- Começaremos com “Highway To Hell” e terminamos com “Welcom Home”, em um, dois, três! Já!

Até serem alcançados pelas chamas daquele mundo coberto por lava, no qual um pedaço do Brasil afundava rapidamente, o quarteto cantou com vontade e destemor, garantindo uma trilha de rock’n’roll para aquela sexta-feira 13 que se aproximava do fim. Fosse naquele universo de uma Terra derretida, fosse no nosso com uma cratera de alguns quilômetros de diâmetro e que desafiava a imaginação e o conhecimento dos cientistas, ainda era dia do Rock e não poderia passar em branco.