Uma redenção para Spike Spiegel

UMA REDENÇÃO PARA SPIKE SPIEGEL

Miguel Carqueija


Quando Spike Spiegel, varado de balas e esvaindo-se em sangue, tombou pesadamente sobre os degraus da escadaria que levava à sede do Dragão Vermelho, em sua vertigem julgou escutar o som de uma nave em descida. Mas aí a tonteira se completou, seus sentidos se toldaram e o cowboy não pôde perceber o que então se passou.
E o que se passou foi espetacular.
A nave Redtail surgira repentinamente, sobrevoando a escadaria, e suas armas cuspiram fogo, varrendo os gangsters remanescentes que ainda permaneciam, boquiabertos, no sopé dos degraus. Faye Valentine pousou de qualquer maneira, com seu veículo todo inclinado, e sem baixar a guarda puxou o agonizante Spike para dentro. Ela sabia que, sem a sua intervenção, os mafiosos, passado o espanto da saída de Spike após a batalha com Vicious, teriam subido a escada e terminado de matar o “cowboy”.
— Você parece velho pelas experiências que já teve na vida, você até se considera morto, mas, por favor, não morra. Não agora! Você não tem nem trinta anos! Na verdade, eu sou muito mais velha do que você!
Faye referia-se aos 54 anos que passara congelada, sua idade paralisada nos 23 anos.
Ela continuou falando com Spike, na verdade monologando:
— Você matou Vicious? Acredito que sim, do contrário jamais sairia vivo daquele prédio, não é? Já foi uma façanha e tanto sair meio morto...
Já haviam levantado vôo. Faye sabia que não podia se dar ao luxo de desperdiçar um único segundo, por causa da perda de sangue do amigo. Spike Spiegel já havia sido baleado várias vezes, já caíra de um prédio, passara por coisas terríveis e sempre escapara. Mas tudo tinha o seu limite, e ele não era imortal.
Ela pilotou a toda sua nave auxiliar. Graças a Deus, ainda podia contar com Jet Black, que aguardava na arruinada Bebop. Jet Black, o ex-policial, o homem do braço mecânico, o esteio daquela sociedade paranóica que durante meses e meses fôra mantida aos trancos e barrancos e que agora, com a defecção de Ein e Ed, os prejuízos na Bebop e a missão suicida de Spike, parecia se esboroar de vez.
E Faye sabia que uma parte da culpa era sua.
“Oh, Deus. Se eu pudesse ter enxergado tudo isso antes! Se tivesse reconhecido o quanto ele era frágil e precisava de mim, e quanto eu precisava dele... em vez disso, passamos o tempo a nos enganar mutuamente, a competir uns com os outros... isto é, nós três. Ed era apenas uma garota biruta, e Ein um cachorro... eles apenas nos abandonaram”.
Não escapava a Faye Valentine que o Dragão Vermelho caçaria a todos, assim que se recompusesse das perdas. Em desespero, ela se comunicou com Jet Black:
— Jet, por favor, me ajude! Spike está morrendo e nós temos que levá-lo àquele médico!
— Osborne? Eu esperava por algo assim...
— Por favor, arranje tudo que eu já estou chegando! E veja se consegue com a ISSP um salvo-conduto para nós! Vamos abandonar a Bebop e fugir de Marte!
— Por que eu tenho que sacrificar a minha vida e as minhas atividades para ajudar vocês nas suas encrencas?
— Jet, não é hora para as suas rabugices! O Spike está morrendo!
— Farei o que puder — disse Jet, com a expressão muito carrancuda.

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O lento despertar, emergindo de um abismo de trevas...
O que haveria depois daquela porta? Qual poderia ser o seu destino?
Spike Spiegel por vezes tinha consciência de se encontrar entubado, sedado, sorizado, mas nunca chegara a emergir na plena consciência ou a esboçar gestos, movimentos. Só muito aos poucos foi conseguindo abrir os olhos e perceber as vozes ao seu redor.
No dia em que acordou com a consciência menos anuviada, viu que havia uma pessoa perto de si. E esta pessoa era Faye Valentine.
— Oi — disse ela. — Não pode falar ainda. Está me reconhecendo?
Spike fez que sim com a cabeça. Faye sorriu, e lágrimas flutuaram em suas pálpebras:
— Então, você vai viver. Agarre-se à vida, meu rapaz.
Spike gesticulou, procurando dar a entender que queria saber o que havia acontecido. Faye enxugou as lágrimas (e desde quando Faye chorava?) e falou:
— Calma, Spike. Vamos ter tempo de conversar, assim que o doutor te liberar. Nós te salvamos, e vamos sair de Marte assim que você ficar bom. Jet vai conosco.
E Faye conversou demoradamente com ele. Contou como o haviam levado ao Dr. Osborne, como ele foi operado entre a vida e a morte, como se achava agora temporariamente abrigado em casa de um dos policiais amigos e ex-colegas de Jet, um dos poucos em que este confiava.
— Jet conseguiu uma nave parecida com a Bebop para nos levar à Terra. O Engelbert arranjou para nós, mediante um empréstimo feito ao Jet, que ele levará pagando os próximos cinquenta anos. Eu não podia entrar nisso, você entende... afinal a minha dívida já é a maior do Sistema Solar.
Percebendo que os olhos de Spike principiavam a cerrar, ela deu-lhe um beijo na testa e se afastou:
— Você precisa dormir agora. Até mais tarde, meu amor.
Ela saiu do quarto e Spike adormeceu sem acreditar no que tinha ouvido.


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— A Terra? — Spike, tomando um chá vitaminado, não conseguiu crer — o que aliás se tornara freqüente desde que ele retornara à consciência.
— A nave Chubby Chekker já está prontinha, embora seja uma lata velha — explicou o corpulento Jet, com sua habitual expressão austera. — E você há de convir que, nas atuais circunstâncias, a Terra é o melhor esconderijo para nós.
— Não quero ficar lá pelo resto da minha vida — ou da minha morte, porque eu já morri várias vezes.
Spike ainda mantinha aquela expressão de quem não liga para nada, desde o preço do arroz até o decaimento dos raios gama.
— Querido, temos pelo menos de esperar as coisas esfriarem — explicou Faye, segurando a mão do convalescente.
Até então, Spike persistia em se manter distante daquele sentimento revelado, mas ao menos não repelia Faye. O amor de Faye e a amizade de Jet eram tudo o que lhe restava. Julia se fôra, para sempre nesta vida.
— Com os devidos cuidados, você já pode viajar — disse o Dr. Osborne. — E quanto antes melhor, pois é perigoso ficarem por aqui. Até para mim.
— Mas onde iremos na Terra? Lá é um planeta rebarbativo, sujeito a quedas de meteoros, as hospedarias são raríssimas...
— Inicialmente procuraremos a única amiga que temos por lá — esclareceu Jet. — Aquela freira.
— Naquele orfanato onde a Ed viveu?
Spike era um homem muito frio em seus sentimentos, a maioria dos quais guardava enrustidos. Mas não pôde deixar de se lembrar daquela “hyppie” que era a mais genial “haker” do sistema, apesar das suas atitudes de débil mental. Ficara para trás, na Terra, por sua própria escolha. Que fim teria levado, juntamente com o cão Ein? E ela partilhara tantas aventuras com os adultos da Bebop!


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Mas uma formidável surpresa os aguardava no despojado orfanato católico da desolada América do Norte.
Ed lá estava, acompanhada por Ein. Continuava esmulambada como sempre, parecendo até uma mendiga; mas atirou-se nos braços de Jet como nos velhos tempos.
— Sabia que vocês viriam me buscar, um dia — disse ela.
— E seu pai? — indagou Spike, com pouco tato. — Não tinha ido procurar por ele?
— Appledelhi Siniz Hesap Liiftin não é mais pai de Ed, é pai de meteoritos — e foi tudo que obtiveram dela.
A Irmã Magda, porém, explicou melhor as coisas:
— Melhor não falarem desse assunto com ela. A menina palmilhou esse deserto e quase arruinou os pés, só para ter a certeza de que o pai não liga para ela, só se interessa em estudar os meteoros que caem na Terra. E honestamente, ela bem precisava de pai e mãe. Já que vocês dois vão se casar...
— Eu odeio crianças — cortou Spike.
— E eu só tenho 24 anos, fora os 54 em que fiquei em animação suspensa. Não tenho idade para ser mãe de uma adolescente de 13 — explicou Faye.
— Eu acho — disse Jet, com sua habitual seriedade — que se vocês querem realmente que a gente comece vida nova, vamos ter que ser menos egoístas daqui para a frente. Não foi isso mesmo que você me disse, Faye?
— Está bem, Jet. Tentaremos adotá-la como sobrinha.
— Tenho certeza de que ela ficará radiante — disse a irmã.
— De qualquer modo — concluiu Jet Black — nós ficaremos aqui por uns seis meses. Temos tempo para nos acostumarmos.
Percebeu que Spike se afastara um pouco, com seu nocivo cigarro nos lábios, e contemplava o horizonte em devaneio.
— O que há, Spike?
— Eu estou pensando. Se não sou mais um morto, vamos ter que arranjar alguma ocupação ou continuar a viver de estômago vazio. É verdade que, em último caso, ainda podemos comê-lo — e apontou para o Ein, que abanava a cauda para ele.
— Você está doido, Spike — ironizou Faye, dando-lhe o braço. — Carne de cachorro deve ser horrível.



NOTA: Cowboy Bebop é um seriado japonês de animação produzido em 1998-1999 pelo Estúdio Sunrise. A presente fanfic é uma continuação livre que pega a sequência do final do último episódio.
Imagem da série (Spike Spiegel)