Antes do ponto final - Um conto pra continuar

Eu nunca pensei que um ponto salvaria minha vida.

Toda vida tem dois lados: o bem e o mal, assim, todo anjo tem um pouco de demônio. Gostava dos meus tempos de criança quando as perguntas se resumiam a inocência de: “Por que você se pinta?”, perguntava eu à minha mãe. Hoje carregam um pouco de violência. Recebo: “Por que você se corta?”.

Você tem sempre duas opções. Quando a vida te dá uma chave de braço você pode resistir ou desistir. Confesso que insisti na primeira opção no começo. O que separa a realidade do jogo, por exemplo, é uma linha tênue. No jogo têm-se várias vidas e quando “acabam” podemos recomeçar o jogo, na realidade você não tem outras chances ou vidas extras.

Eu não conheço uma pessoa que seja inteiramente feliz ou triste, como disse todo anjo tem seu lado ruim. Não há quem tenha apenas tragédia nem quem tenha apenas glória na vida. Curioso, não? Tudo tem seu oposto. Estamos em equilíbrio, mas às vezes a balança pende mais para um lado para um do que para outro indivíduo.

— Mãe! Onde você estava?

— Não te interessa.

— Você estava na rua de novo. Não foi trabalhar? Seu chefe vai te demitir.

— E daí? Eu não ligo para vocês. Que se danem todos. – bradou.

Dei-lhe um tapa e revistei sua bolsa, como havia imaginado ela estava se drogando de novo. Três internações não lhe bastaram.

— Onde arranjou isso? – indaguei.

— Ah, moleque! – deu de ombros acendendo um cigarro.

— Quer se matar?

Quem era eu para dizer isso estando numa situação parecida?

— Prefiro. – disse asperamente.

Minha irmã mais velha sofre de depressão e síndrome do pânico, não sou diferente, exceto pela síndrome.

— Ei, Luísa, tudo bem?

Sentei na cama ao seu lado, ela me abraçou dizendo que escutou a conversa.

— Você não chora.

Lágrimas só causam mais dor, penso que chorar é uma fraqueza da alma, é quando ela treme e seu grito são as lágrimas. Minha alma não tremulava mais, vinha guardando tantos sentimentos frios que acabaram se fundindo no meu coração.

Luísa já estava chorando e soluçando.

— Acha que o pai vem? – perguntou.

Eu sabia que ele não vinha.

— Sim.

Luísa já estava em seu quinto mês de isolamento, sinceramente, vegetando. A situação dela era pior, ao menos eu fingia rir, estudava, trabalhava.

— Ela faz de propósito.

— O que?

— Mãe. Ela nos ignora de propósito. – franziu o cenho.

Já tínhamos falado sobre, mas não eu conseguia aceitar.

— Mãe nunca mais nos chamou de filhos, desde que descobriu que papai…

Ela se esforçava para recontar isso, devia ser muito duro dizer, mas era tudo culpa minha.

— Papai assassinou sua ex–esposa, nossa mãe biológica.

— Desculpe, você não precisa dizer isso.

— Tudo bem, relembrar me ajuda a aceitar.

Relembrar é algo importante, eu não sinto mais nada, mas Luísa deve ficar em pedaços. Nós ainda resistíamos ali.

Uma semana depois mãe foi demitida e começou a beber. Arrumei mais um emprego, zelador. Luísa me pegou de blusa regata e descobriu as cicatrizes nos braços e outros cortes profundos mais recentes.

Estou cheio, entornando raiva, desespero, tristeza. Mãe e pai eram grandes empresários quando eu era criança. Agora, com 16 não consigo suportar o peso das consequências de atos errados. Tento insistir na primeira opção, mas sinto dizer que meu coração de ferro ultimamente pende a balança para a segunda. Vezes eu penso se vale a pena continuar, se vale a pena existir, se vale resistir mais e mais.

Cabisbaixo e sem concentração ultimamente. Acho que Luísa percebeu, pois algo que mudou nosso caminho aconteceu. Ela milagrosamente melhorou e marcou de me encontrar na cidade para irmos a algum lugar.

Fomos a um clube, na verdade, um grupo de apoio para jovens com depressão e doenças do tipo. Um lema bem grande estava escrito na entrada, um imenso ponto e vírgula (;) seguido por uma frase: “Eu poderia parar, mas resolvi continuar”.

Os caras eram muito simpáticos e o debate interessante. A única menina era Luísa, fiquei de olho. As palavras eram sábias, bíblicas que incentivavam a turma. Mas eu me perguntava o que as palavras poderiam fazer por alguém. Passamos semanas lá, todas as quartas e sextas, sem mãe saber.

— Ei, tenho uma pergunta.

— Diga, rapaz! – disse Henrique, o líder do grupo.

— Desculpe, mas sempre quis saber. O que quer dizer esse ponto e vírgula?

Olhava-me esperançosa. Luísa sorria mais desde então, não a via tão deprimida.

— Escritores usam o ponto e vírgula para situações em que podem parar ali mesmo, mas escolhem continuar a história.

Depois disso, mãe descobriu e nos trancou em nossos quartos. Não pude trabalhar, nem estudar. Isso durou um mês inteiro, as contas venceram e a água foi cortada, a próxima seria a luz e a internet, Luísa devia estar com anorexia (já era magra antes), pela falta de comida. Ela podia ser chorona e infantil, mas era tudo que me restava e infinitamente mais forte que eu.

Ao longo desse mês meu braço já estava infeccionado, os olhos inchados de insônia a cabeça latejando e me obrigando a definitivamente escolher a segunda opção. Eu me cortava como uma forma de descontar em mim mesmo. Uns choram, outros se cortam, alguns se drogam, há aqueles que amam ou odeiam, cada um se mata a seu modo.

Já não havia sentido, nunca houve na verdade, mas naquele momento menos ainda em me cortar. Resistir não era mais meu forte, simplesmente me entreguei à segunda opção: desistir. Chega de vírgulas, esse seria o ponto final.

Mas me peguei pensando em pontos. Antes que pudesse dar fim naquilo com aquele desprezível caco de vidro ao qual me cortava, relembrei de algo já quase vago. Ainda estava longe de meu ponto final. Não me contradisse, no fim, realmente desisti de algo; eu poderia parar ali mesmo, mas resolvi continuar.

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Uma história pequena e breve; um conto pra continuar.

Ainda hei de terminá-lo.

Anna Julia Dannala
Enviado por Anna Julia Dannala em 01/10/2015
Código do texto: T5400845
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