Gilberto Acorda
Quando abriu os olhos, não viu nada além de luz. Branca como um flash fotográfico. Fechou novamente, esfregou com os dedos, piscou algumas vezes e encarou o teto. Também branco, com luzes metálicas que cintilavam no mesmo tom. Sentiu a boca seca e os lábios feridos, ásperos como numa tarde seca de inverno. Moveu levemente a cabeça e reparou na moça em pé ao lado dele, vestida com a mesma cor de todo o ambiente. Parecia agitada. Piscou por mais alguns instantes e percebeu o quarto. Não era o dele.
- Senhor... - Parou a frase por um longo tempo. Talvez por respeito. Tossiu de leve para corrigir o tom da voz e prosseguiu – Senhor Gilberto, bom dia.
A resposta não saiu. Ao menos ele não tinha certeza se havia saído, porque não escutara a si mesmo. Sentia a garganta arder e realmente incomodar, machucada. Queria responder o cumprimento, mas nada.
- Não tente falar, senhor, não tente.
Percebeu o leve toque da moça no braço esquerdo. Procurou com os dedos pela mão dela, mas não tinha certeza se os dedos dele seguiam sua mente. Talvez, como a voz, procurassem atender as ordens em vão.
Mas Gilberto precisava falar e se esforçou. Corrigiu o tom da voz com duas curtas tosses secas, como a moça fizera momentos antes.
- Giba... Giba... – doíam ao sair da boca, mas também ao chegar a seus próprios ouvidos.
- Não entendo, senhor.
- Giba... nome... chama... Giba...
As palavras machucavam tanto quanto a voz arranhando a garganta.
- Desculpe, senhor, mas não temos nenhuma informação de contato com Giba. Procure relaxar, procure se acalmar, senhor...
- Eu, Giba...
- Ah, claro, Giba. Desculpe-me, senhor. Procure não falar, senhor Giba. Fique calmo.
Mais algumas enfermeiras entraram no quarto, acompanhadas do que pareciam ser médicos. Nada era muito claro para ele, pareciam manchas desfocadas e perdidas naqueles brilhos esbranquiçados. O acidente de Gilberto deveria ter sido horrível, para tantos doutores estarem ali, acompanhando o despertar. O de cabeça mais branca foi o que tomou a liderança na conversa.
- Senhor Gilberto...
- Giba, senhor, ele prefere que o chame de Giba – sussurrou a enfermeira que estivera desde o começo ao lado esquerdo.
- Senhor Giba, procure não falar agora. Procure não se mexer.
Palavras em vão. Claro que ele queria testar os membros, os dedos, cada músculo do corpo. Queria testar a pele, o cabelo, o rosto. Queria ter certeza de que estava tudo lá. Ainda.
- Eu... o que...
- Senhor Giba, por favor, o senhor está fraco. Tente não falar agora. Haverá tempo.
Quantas horas dormira? Quanto tempo havia passado desde o acidente? Eles pediam calma enquanto Gilberto queria respostas.
- O que... houve?
- É melhor chamarem a psicóloga plantonista – pôde ouvir alguém mais perto da porta, num ótimo teste para a audição. Aprovada.
Finalmente, depois da voz e do ouvido, testou pernas e braços. Foi tudo meio estranho, sentia que estavam lá, mas os olhos ainda misturavam flashes brancos com círculos coloridos. Não havia contato visual com pernas e braços. Apenas a sensação dos membros garantia de que estavam ali, debaixo dos lençóis, também brancos. Gilberto lembrou daquele tio que, há alguns poucos anos, sofrera um acidente de moto na estrada e tivera de amputar uma das pernas. Ao visitá-lo no hospital, garantira ao sobrinho que o membro perdido ainda coçava e que ele ainda sentia a perna que já não estava mais lá. Gilberto não queria ser enganado pelas próprias sensações. Não poderia passar pelo que o tio passou. E não passou. Logo foi aprovado no teste dos membros porque sentiu o toque de alguém no pé. Mão leve e fria, como se pedisse para ele se acalmar.
Mais algumas tosses curtas e a voz de Gilberto se fez presente.
- Eu... o que houve? Por que estou neste hospital? Onde estão meus pais e meu irmão?
- Calma, senhor Giba, calma. Tudo no seu tempo. Precisamos fazer alguns testes com o senhor.
- Eu não lembro do acidente, eu não lembro do que houve.
Passou a mão no rosto com alívio ao sentir que não havia nenhuma cicatriz. Nada, nem um corte. A visão já se clareava e alguma enfermeira inclinou a cama, para que as costas subissem e pudesse olhar os médicos nos olhos. Mesmo que a visão estivesse turva.
- Meu celular, eu preciso falar com eles...
A equipe médica se encarou perplexa. Poderiam estar ocultando algo. Os pais de Gilberto estariam no acidente? Improvável, aos 35 anos e casado, ele raramente andava de carro com os parentes. Se viam nos almoços de domingo e datas especiais. Era raro voltar para a fazenda no interior. Vivia com a esposa em São Paulo, onde trabalhava.
Um dos médicos optou por responder.
- O... celular... não está aqui conosco, mas fique calmo, senhor.
- Eu preciso ligar pra ela, pra eles... Eles estão aí? Estavam no acidente?
- Senhor Giba, não houve acidente.
A voz feminina logo foi reprimida pelos outros médicos e enfermeiros que não aprovaram a intervenção da senhora. O tom de voz e a firmeza das palavras indicavam que se tratava de uma mulher experiente.
- Por favor, o que houve? Preciso saber o que houve.
A equipe abriu espaço e surgiu uma moça com menos de 30 anos, toda de preto, vestindo trajes de cortes estranhos.
- Bom dia, Gilberto, meu nome é Dra. Claus – e deitou a palma da mão sobre a dele – O senhor precisa descansar, o senhor está ficando muito agitado – Só então ouviu o som eletrônico que marcava a batida do próprio coração. Realmente acelerada.
- Doutora, por favor, eu preciso saber o que houve. Eu preciso falar com alguém, devem estar preocupados. E meu trabalho? Que horas são?
- Senhor Gilberto...
- Giba! Eu disse que é Giba!
- Senhor Giba, por favor. O senhor está se apressando demais. Ainda precisamos fazer alguns testes. Não queremos arriscar com tranquilizantes, então, por favor, colabore.
- Eu colaboro a partir do momento em que vocês responderem minhas perguntas. Eu preciso de respostas.
- Senhor Giba, respire fundo. O senhor viveu um trauma muito grave.
Pais? Irmão? Esposa? Sequestro? O que era aquilo?
Gilberto fechou os olhos e calou a boca. Voltou-se para suas próprias memórias e esqueceu por algum tempo das perguntas. Lembrou-se do armário do banheiro, à noite. Do silêncio da casa. Da esposa adormecida no quarto de casal. Do copo sem água mas repleto de pílulas coloridas que preparara dias antes. Lembrou-se da torneira aberta, da água preenchendo o vazio do copo e fazendo cada bolinha colorida dançar num ritmo diferente. Lembrou-se dos olhos vermelhos no reflexo do banheiro. Da lâmpada piscante que precisava ser trocada. Lembrou-se do longo gole. Do beijo na testa da esposa. Dos lençóis frios roçando a pele. Do teto do próprio quarto.
- O senhor sabe em que dia estamos?
- Não sei... quarta? Quinta? Quarta... tem jogo hoje à noite.
- Hoje é sábado, senhor Giba.
- Estou aqui há quantos dias?
- Senhor Giba... o senhor está há alguns anos conosco.
- Anos? Que ano?
- Que ano o senhor acha que estamos?
- 2015.
- Foi o ano, mesmo – alguém sussurrou do fundo do quarto.
- Senhor Giba, precisamos que o senhor seja forte. Precisamos que compreenda o que está acontecendo.
- Em que ano estamos?
- Em 2047. Dois mil e quarenta e sete. O senhor acaba de sair de um coma profundo. Não havia esperanças de que despertasse e...
- Dois mil... e quarenta e sete?
- O senhor foi trazido para esta clínica há poucos anos, mas temos todo o histórico do seu caso. Sendo muito sincera, foi uma enorme surpresa vê-lo acordado. Não imaginávamos...
- Dois mil e quarenta e sete? – os pais de Gilberto teriam mais de 100 anos – Meus... meus pais?
- Sinto muito, senhor Giba.
- Juliana?
- A esposa – um novo sussurro do fundo da sala.
- Senhor Giba, não há informações da senhora Juliana já há algum tempo. A clínica anterior perdeu o contato com ela...
- Deixa eu ver o Facebook, deixa eu falar com ela...
- Como?
- Facebook, Whatsapp, deixa eu falar com ela.
Silêncio.
- Sinto muito, senhor Giba, não entendemos sobre o que o senhor está falando, mas tenha calma. Teremos tempo para conversar. Teremos muito tempo.
- Algum amigo meu? Contataram alguém?
- Senhor Giba, por favor, peço que o senhor pare com estas perguntas. Precisamos fazer alguns testes para checar sua saúde. Nos ajude, senhor.
- Quem está pagando a conta? Quem paga esta clínica por mim?
- O governo, senhor.
- SUS? Eu estou no SUS?
- Senhor Giba, nós teremos certa dificuldade de conversar. O senhor precisa ter calma, precisa entender o que está acontecendo. Tudo vai parecer muito confuso agora, mas, por favor, senhor Giba, mantenha a calma. Muitos anos se passaram, é natural que...
- Ninguém? Ninguém vem me visitar? Ninguém aparece por aqui?
- Vamos ter de aplicar o tranquilizante – alguém se movimentou no fundo da sala.
- Não! Não! Me respondam. Quem vem? Quem liga para saber de mim? Quem vocês vão informar de que acordei? Quem aparece no cadastro para contato?
Nenhuma resposta. Apenas movimentos de médicos e enfermeiros. Sons de sapatos no piso frio da clínica. Um grito.
- QUEM???
A moça de preto se aproximou da cama, inclinou o corpo para bem perto do rosto de Gilberto e falou no ouvido, devagar e com calma.
- Ninguém, senhor Giba. Sinto muito, ninguém.