O Fim do Mundo Visto de um Banheiro Coletivo.
Não passava pela sua cabeça que o mundo havia acabado. Na verdade, lembrava que houvera ido a um dos banheiros públicos que estavam instalados no calçadão da Praia de Boa Viagem, em Recife. Foi acometido por uma imensa dor de barriga por causa de uma feijoada que havia comido em um restaurante daquele bairro e não conseguiu alcançar o hotel que estava hospedado, que estava localizado a alguns metros do referido estabelecimento gastronômico, então, desesperado, correu para o banheiro coletivo, que estava mais fácil e receptivo. Os seus colegas haviam lhe dito que o estariam esperando na recepção do hotel, a fim de subirem aos quartos e dormirem, pois no dia seguinte teriam mais um dia de palestras no congresso que estavam acompanhando. Todas as despesas foram bancadas pela empresa multinacional a qual eram funcionários do alto escalão.
O rapaz mal tinha acabado de sentar na privada quando ouviu um tremendo estrondo fora do banheiro, que fez tremer tudo. De fato, foi algo assustador e ensurdecedor. Ao mesmo tempo ouvira gritos de homens e mulheres, além de imensos clarões que invadiam os cobogós daquele equipamento público. Depois de alguns minutos de terror, o que sobrou foi o silêncio. Dentro de uma das cabines, o executivo da multinacional tentava se concentrar na execução das suas necessidades fisiológicas, apesar do imenso barulho que havia ouvido anteriormente e do medo que o acometia. Imaginava o que havia acontecido lá fora, cogitava que poderia ter sido uma explosão de gás em algum prédio ou então algum acidente automobilístico na avenida que existia a poucos metros dali. Acreditou que estava tudo bem, pois achava que tinha sido somente mais um acidente, algo que é muito comum nas grandes cidades. E, portanto, a polícia e os bombeiros dentro em breve chegariam ao local e resolveriam tudo.
Sentiu então um forte mal cheiro que vinha de fora, tinha algo de carne queimada misturada com plástico. Nunca houvera sentido um odor tão forte assim na sua vida. Teve receio de que houvesse um incêndio próximo daquele banheiro público e que poderia estar correndo risco de vida. Mas o pobre coitado não conseguia se levantar do vaso sanitário, pois a feijoada ainda surtia um efeito nocivo nas suas entranhas. Estava ao mesmo tempo congelado de medo por causa do que provavelmente houvera acontecido fora do recinto e de um imenso mal estar por causa da dor de barriga. Então, prudentemente, preferiu continuar a sua dura jornada a fim de se livrar das suas fezes. Concentrou-se nos seus afazeres, nas pendências que o esperavam no seu escritório na sede da empresa, lembrou-se da sua esposa e dos seus dois filhos ainda crianças, depois lembrou-se das partidas de golf que tanto gostava de praticar nos finais de semana. Então recordou-se da sua velha roda de amigos, que era formada nas tardes de domingo. Enfim, lembrou-se da sua amante, Carminha, a ninfetinha que o deixava louco nas tardes das quintas e sextas-feiras. E indagou-se se os mesmos ainda estavam vivos ou se o mundo houvera acabado de vez. Refletiu se era o único homem vivo sobre a face da Terra ou se existiam outros sobreviventes em outros lugares que, por um puro golpe de sorte ou por intermédio da Providência Divina, sobreviveram ao Apocalipse, assim como ele. Então indagou-se porque ele sobreviveu, afinal, não era santo, acreditava que tinha vários defeitos: era adúltero, ambicioso demais, vaidoso, mentiroso, arrogante, egoísta, dentre outras incontáveis imperfeições da sua alma. Portanto, julgava que não era um candidato à altura para que tivesse o seu nome na lista dos eleitos ou retos. Aliás, nem era religioso, fazia quase dez anos que não pisava numa igreja, desde o batizado do seu filho caçula.
Ouviu então um grande barulho de curto-circuito, que era proveniente de cabos de energia cortados que se chocavam com o solo, o que o acordou da sua meditação. Praguejou alguns palavrões, enquanto forçava a sua barriga para que saíssem todos os dejetos que o incomodavam. De fato, observou que o negócio estava sério no seu intestino e prometeu a si mesmo que nunca mais voltaria àquele restaurante, isso se ainda houvesse algum restaurante para ir, pensava. Receou que talvez não tivesse morrido no Fim do Mundo para que pudesse morrer de dor de barriga, assim teria uma morte mais lenta e sofrível. Dessa forma, já poderia começar a pagar pelos seus pecados ainda na Terra. E começou a entender porque ainda estava vivo, estava vivo porque era mais miserável do que a maioria das pessoas e não porque era um santo. Tentou chorar, mas a dor de barriga o impediu até disso. Constatou então que os gases estavam infestando o banheiro e que não eram gases externos, provocados por algum vazamento químico, eram fruto unicamente do seu trabalho árduo naquele pequeno ambiente de uso coletivo.
Desesperado, tentou se concentrar então em algum barulho que viesse de fora, algum grito, gemido, um toque de sirene, de alarme ou de qualquer outra coisa. Depois de silenciar por alguns minutos, não ouviu nada além do som de água jorrando de alguma tubulação que foi rompida e da fiação elétrica em curto-circuíto. Nenhuma voz de mulher, de criança, de homem, nem sequer de um cachorro vira-lata havia fora do banheiro coletivo. O mundo estava mudo. E estremeceu ao constatar isso. Sentia-se só como há muito tempo não se sentia. Pensava como seria a sua vida, como sobreviveria. Ele, que era um sujeito que sempre teve quem lhe servisse com atenção e subserviência. Um indivíduo mimado pelos pais, filho único, que foi educado, desde a tenra infância, para ficar por cima em todos os sentidos e que pouco sentiu o gosto de perder alguma coisa. Naquele momento, enxergava que o cenário houvera mudado integralmente, teria que se virar, procurar comida, água, um local seguro para morar, se proteger da chuva e do sol. Solitário, julgava que teria de invadir supermercados em ruínas, a fim de encontrar comida enlatada que ainda estivesse na validade. Viveria como um nômade, indo de bairro em bairro, à procura de comida e água, depois teria que ir de cidade em cidade, pelo resto de sua vida. Efetivamente, não teria mais a paz, o conforto e o luxo a que estava acostumado. Teria uma existência de andarilho, quase um mendigo, vivendo à própria sorte, sem saber como seria o dia seguinte.
Depois de quase meia hora, sentiu que o seu estômago começava a se livrar da pressão e da dor. Sentia-se mais aliviado, liberto das fezes que tanto o incomodaram. Ainda um pouco dolorido, levantou-se do vaso sanitário, deu descarga e limpou-se com o resto de papel higiênico que existia no rolo do porta-papel. Levantou a sua calça social importada e cara, colocou a fina camisa de botões por dentro da mesma, atarraxou o cinto de couro e então saiu da cabine da privada a fim de lavar as suas mãos. Ainda existia um pouco de água na tubulação da torneira. Olhou-se no espelho, estava com os cabelos penteados e úmidos com um creme importado, como de costume. Mesmo assim ainda passou as mãos nos cabelos por pura vaidade. Estava com a sua boa aparência recuperada depois de quase uma hora enfornado em um vaso sanitário. Estava curioso para o que viria fora daquele banheiro coletivo. Antes, no entanto, deu uma espiada nas outras cabines a fim de saber se tinha alguém nas mesmas, mas não havia nenhum usuário. Pelo menos ali dentro estava de fato sozinho. Não havia saída, teria que confirmar o ocorrido quando saísse do banheiro.
Colocou uma das mãos num dos bolsos da sua calça e pegou um dos seus dois celulares de última geração. Ativou o visor e constatou que não havia sinal algum das operadoras. Julgou que aquele celular estava com defeito e então pegou o segundo em outro bolso da sua roupa. Contudo, este também não dispunha de sinal. Estava sem contato, isolado. Não poderia ligar para ninguém para saber o que foi que houve naquelas imediações e muito menos acessar as redes sociais ou algum site jornalístico. Praguejou um pouco e depois colocou novamente os dois celulares nos bolsos. Sentiu vontade de fazer o sinal-da-cruz, algo que não fazia há muito tempo e então o fez. Ajeitou a gravata e o colarinho e saiu do banheiro. Ao olhar para a paisagem, assustou-se com o imenso cenário de destruição que circundava o referido banheiro público. Tudo estava destruído. Não havia um prédio em pé a quilômetros de distância de onde estava. Só existiam escombros. As ruas e as calçadas também foram quase que integralmente destruídas. As pessoas que estavam caminhando no calçadão, ou que estavam utilizando os quiosques, foram carbonizadas por completo, a maioria ainda estava queimando. O odor de gás e de carne queimada eram intensos. Agoniado, olhou para o mar e percebeu que o mesmo houvera recuado cerca de duzentos metros da sua margem original, o que formou uma imensa área de areia queimada. Existiam também muitos banhistas carbonizados no local. O próprio céu houvera mudado da cor azul para laranja, talvez em decorrência de algum fenômeno natural ou não. Então o executivo constatou que o mundo tinha de fato acabado. E acreditava que somente ele havia sobrevivido. Sem saber o que fazer, atordoado, sentiu que a sua calça havia ficado úmida e decidiu voltar ao banheiro a fim de encontrar mais papel higiênico. Entrou rapidamente naquela pequena edificação e, por alguns instantes, voltou os seus olhos mais uma vez para a paisagem apocalíptica e depois fechou a porta.