O Homem que resolvia problemas
João Pedro sempre foi uma pessoa medíocre, quase invisível. De inteligência mediana, esforçado, sempre ia bem na escola, porém jamais esteve entre os melhores da classe. Nos esportes nunca se sobressaiu. Poucos colegas, nenhum amigo, assim seguia sua vida, acostumado a não ter grandes aspirações. Tentou vestibular para direito, pois isso era o que todos faziam ao acabar o terceiro grau, mas não passou e o mesmo aconteceu nos dois anos seguintes, levando-o a desistir de vestibulares e fazer um curso técnico de contador. Conseguiu um emprego público e estava satisfeito com o rumo que sua vida tomou. O trabalho era enfadonho e seguro. Aos trinta anos já apresentava sinais de calvície que somado aos óculos de aro de tartaruga lhe davam um aspecto sério e maduro. Não ia a festas nem teve namoradas, isso era para os descolados e populares. Sempre usando ternos neutros, João desaparecia na multidão, era apenas mais um.
No centro da cidade, no quinto andar de um dos inúmeros prédios da secretaria de fazenda, era onde trabalhava e passava praticamente todo o seu dia. Tinha duas horas de almoço embora não usasse esse tempo todo. Sua alimentação variava entre a pastelaria, a lanchonete ou o restaurante de pratos executivos, todos a menos de duas quadras do trabalho. Não demorava mais de trinta minutos para sentar, fazer o pedido e comer. Seus colegas de trabalho costumavam sair juntos para o almoço e muitas vezes o chamaram, mas ele se demorava evitando assim sair com o grupo. Preferia almoçar sozinho, na verdade, nunca se sentiu bem em companhia, a solidão era uma amiga confiável. Depois de algum tempo os colegas não mais o chamaram, o que o deixou aliviado, pois não precisou mais de desculpas ou subterfúgios para seu isolamento.
Cinco minutos antes de terminar seu turno de trabalho, iniciava o ritual de arquivamento de seus relatórios. Quando o relógio marcava exatamente dezoito horas, sua mesa estava limpa, e ele levantava-se para sair. Pegava o metrô a três quarteirões de distância, chacoalhava por vinte minutos e descia a duas esquinas de seu minúsculo apartamento.
Diferente do dono, seu apartamento era bem peculiar. Pilhas e pilhas de livros encostados em todas as paredes. Seu estilo de leitura era eclético, de romances de época a livros técnicos, passando por história e ficção. Livros, periódicos e folhetins, tudo João lia. Pela sala haviam vários tabuleiros e peças de xadrez. Algumas com jogos começados. Numa estante na sala havia uma enorme quantidade de revista em quadrinhos. Ali estavam suas coleções de Batman e Superman. Tinha também outros títulos, mas essas duas eram as mais completas, inclusive com algumas raridades, como os primeiros números de superman em perfeito estado de conservação. Numa gaveta fechada guardava sua coleção de pins, que ele sempre chamou de broches de lapela, pois não gosta de estrangeirismos. Na parede oposta, a estante exibia uma coleção de aviões da revell que ele mesmo montou e pintou; vários pendurados por fio de nylon quase invisível, dando a impressão de estarem voando. Muitas outras coleções estavam nas gavetas dos armários, do guarda roupa, nas prateleiras da cozinha, penduradas nas paredes. Pedras, borboletas, miniaturas de xícaras, de garrafinhas de bebida, selos, moedas, tudo virava coleção. João Pedro era um colecionador compulsivo.
Ao chegar a sua casa, João seguia uma rotina. Pendurava sua pasta atrás da porta, tirava a roupa, tomava banho e agora sim, considerava que o tempo era seu. Jogava alguns lances dos jogos de xadrez iniciados. Lia um pouco, escolhendo entre três ou quatro livros começados. Esquentava no micro algum prato congelado, entre os muitos que tinha no seu freezer. Todo sábado de manhã ia ao supermercado repor seu estoque de congelados. Ocasionalmente via um pouco de televisão, mas era raro, geralmente preferia ler, jogar ou arrumar alguma de suas muitas coleções. Arrumar significa remanejar, limpar ou apenas olhar. Às dez horas fazia seu toalete noturno e depois de arrumar o despertador para as cinco e meia, deitava-se, dormindo em seguida. Nunca teve problemas de insônia.
A primeira vista João parecia uma pessoa comum, desinteressante. Alguém por quem passamos na rua ou subimos no mesmo elevador sem sequer notar. Mas na realidade não era bem assim. Confirmando o dito que todos somos especiais, também João tinha algo de diferente e extraordinário. Ele resolvia problemas. Nunca se apercebeu exatamente desse dom, que teve suas primeiras manifestações após a adolescência. Quando ele desejava muito, as coisas aconteciam, dificuldades desapareciam. Não ocorria nada de muito diferente, simplesmente uma pequena alteração no espaço-tempo e o problema estava resolvido. João Pedro nunca teve noção perfeita de seu dom. As mudanças eram tão sutis que parecia ser essa a realidade, e a situação anterior era como se fosse apenas um pensamento ruim, errado. Como quando queria muito completar sua coleção de superman e faltava o número 16, de fevereiro de 1949. Ele entrou num sebo e lá estava, perfeito, sem um rasgo ou amassado. Comprou por um preço ridiculamente baixo, não deviam imaginar seu valor real. Ou quando as contas em seu relatório de trabalho não fecham, repete uma, duas, três vezes e como por mágica, a conta está correta. João Pedro é o único em toda repartição que jamais apresentou um relatório incorreto. Estatisticamente isso é improvável e se levado em conta o tempo de trabalho, impossível. Outras vezes acontecia diferente, mais irreal, que o deixava com dúvida do que tinha ocorrido. Assim foi da vez que andava obcecado procurando um alfinete de lapela da RAF, da segunda guerra mundial. Passou semanas procurando em feiras de antiguidades, sebos e um dia, ao mexer com sua coleção, ele estava lá, mesmo João tendo certeza de não o ter comprado.
E vocês me perguntam, como eu sei de tudo isso? Sou colega de trabalho de João, minha mesa fica do lado da dele. Mas não foi assim tão simples. Descobri a habilidade de João casualmente, há três anos e quase pus tudo a perder. Mas como tenho todo tempo do mundo, vou lhes contar como aconteceu.
Um relatório errado, não sei por que nesse dia João pediu minha ajuda e ficamos uma tarde toda tentando corrigir. Fiz muitas anotações que ficaram na minha gaveta. Encerramos o dia sem encontrar o erro. Na manhã seguinte, esperei que João voltasse a discutir o problema, mas não. Ele sentou-se e começou seu trabalho como se nada houvesse acontecido. Eu tentei ser discreto mas a curiosidade não me deixou.
- E então João, vamos continuar as contas de ontem? – sugeri, me sentindo meio intrometido.
- Não precisa, já está correta. – João respondeu, sem que eu entendesse.
- Como assim? Conseguiu corrigir?
- Amanheceu corrigido. – respondeu ele na maior simplicidade.
Sem acreditar, peguei os papeis corrigidos e comparei-os com minhas notas do dia anterior. Os dados iniciais foram alterados. Busquei na entrada de dados na internet e estavam alterados também. Isso só poderia ser feito na central, na qual não temos acesso.
- Mas... não estou entendendo João, os dados iniciais estão alterados, por isso as contas fecharam. Como isso aconteceu? - Minha perplexidade não tinha tamanho.
- Às vezes acontece. – dito isso, fechou-se em copas. E nenhuma palavra mais sobre o assunto consegui arrancar dele. Foi quando percebi que a insistência no assunto o espantaria como uma caça ao perceber um ruído feito pelo caçador. Tentei me aproximar, convida-lo a almoçar, e rapidamente descobri que foi outro erro meu. Continuava a espanta-lo. Ao invés de me aproximar, estava afugentando-o e me distanciando. Ao entender isso, mudei de tática. Me afastei, deixei o tempo correr. Um ou dois comentários por semana, um “bom dia” no elevador. Uma solicitação de ajuda para um problemas fácil de resolver. Lentamente fui me aproximando novamente. Ocasionalmente confidenciava uma curiosidade que era retribuída por outro detalhe de sua vida. Quando João me contou a história do alfinete da RAF, tive certeza que poderia obter vantagens se soubesse jogar direito. Depois ele me contou de suas coleções, nessa hora seus olhos brilhavam, sabia quando conseguiu cada exemplar, falava da dificuldade que teve para comprar uma moeda, ou um novo jogo de xadrez com tema egípcio. Contou sobre as coleções mais estranhas, de aranhas e outra de miniaturas humanas, mas depois, arrependido de ter falado, rapidamente mudou de assunto. Não insisti, pois já sabia, apenas o deixaria nervoso e irritado. Meu plano surtia efeito, me aproximava de João sem que ele percebesse, como num jogo de xadrez, envolvendo o adversário sem que ele note. Você já pensou na possibilidade? O que significa ser amigo de alguém que pode mudar a realidade? Pois eu pensei e a ideia me agradava tanto quanto ganhar na loteria. Percebendo o desconhecimento que João tinha sobre a extensão de sua habilidade, me preocupei para mantê-lo na ignorância.
Não obstante seu retraimento, João passou a me considerar senão um amigo, pelo menos um colega com quem podia conversar.
Meu grande teste foi há um ano, era mês de março e eu estava preparando a declaração de imposto de renda. Comecei meu teatro frente ao João, aparentando nervosismo e ansiedade. Ele apenas olhava, até que no terceiro dia de drama, no final do expediente, ele me perguntou se estava com algum problema.
- Estou sim, mas nada que você possa ajudar. – O desânimo estampado no rosto.
- Talvez se me disser o que está acontecendo, as vezes a pessoa de fora tem uma visão diferente e quem sabe, a solução do problema.
- Está bem, - disse sem disposição, - sei que você é bom com problemas, mas este não tem solução. É o meu imposto de renda. Veja, - mostrei-lhe a papelada. – não fecha de forma nenhuma com meu saldo bancário (havia anteriormente feito uma vultuosa retirada, deixando uma pequena quantia de saldo).
Ele examinou, e examinou, sem nada falar. Depois de algum tempo resmungou: - está complicado, a variação patrimonial está muito alta. Seu desconto em folha foi pequeno, não resta alternativa a não ser pagar, mas você precisaria de ao menos dez mil para cobrir isso e não tem nem mil em sua conta. Estava tão absorvido que o relógio marcou dezoito horas e sua mesa estava cheia de anotações e papéis a ser arquivado, pela primeira vez João Pedro se atrasaria. Após arrumar tudo, a sala já estava vazia, eu e João Pedro fomos os últimos a sair. Saindo do elevador ele tentou me tranquilizar, com seu falar hesitante:
- Esfrie um pouco a cabeça, já aconteceu parecido comigo, acho que as vezes uma boa noite de sono resolve nossos problemas, não tenho certeza, mas pode ser.
Já na rua concordei com ele com um maneio de cabeça e me despedi com uma aparência abatida de quem já tem sua sentença decretada e seguimos por caminhos opostos. Mantive-me cabisbaixo com os ombros caídos até virar a esquina, quando pude externar minha satisfação. Minha ansiedade era tanto que resolvi ir a pé para casa. A noite estava fria e a brisa era estimulante. A caminhada me acalmou um pouco e em casa tomei um whisky para relaxar e ajudar no sono. Acordei de um salto aos primeiros raios de sol, e em poucos minutos me aprontei e sai, curioso para saber se algo havia mudado nessa noite. Venci meu desejo de passar no banco e fui direto ao trabalho. Todas minhas atitudes eram planejadas, acontecesse o que acontecesse, eu teria que aparentar surpresa. Vesti meu disfarce de desalento e entrei na repartição. Cumprimentei João Pedro com a cabeça e sentei-me em minha mesa. Ele imediatamente falou: - Vamos ver como está o seu imposto?
Abri a página do imposto no computador e nada havia mudado. Isso acentuou meu desanimo. Agora real. Restava uma carta a ser aberta. Precisei segurar minha ansiedade até o horário do almoço. Enquanto todos almoçavam corri ao banco para tirar um estrato. Olhei incrédulo, mas lá estava o saldo: dez mil quinhentos e trinta e dois reais. Simplesmente apareceram dez mil reais na minha conta. Tirei saldos anteriores até onde o banco permitia, quase um ano e sempre esse dinheiro estava lá. Isso fechava a questão, João Pedro era uma mina de ouro.
Isso aconteceu há aproximadamente um ano atrás. Desde esse tempo venho mantendo minha relação amistosa com João Pedro e planejando meu grande golpe. Alguns pontos já havia decidido. Teria que ser um só golpe e grande. Após o qual eu desapareceria. Iria morar em alguma ilha do Caribe ou Miami. À minha maneira, quero bem a João Pedro. Não pretendia fazer-lhe mal, mas assustar um pouco não o prejudicaria. Depois alguns meses, estava tudo idealizado na minha cabeça. O plano era tosco, mas acreditava que poderia funcionar justamente pela simplicidade somada a ingenuidade de João Pedro.
Fui à casa de João ao anoitecer. Ele me deixou entrar porém notadamente estranhando a visita sem sequer avisa-lo. Expliquei-lhe que precisava desesperadamente de uma grande soma em dinheiro, vinte e cinco milhões de dólares. Confessei-lhe que dei um desfalque e precisava daquela quantia ou seria preso. Não tinha outra solução. Ele era meu único amigo, o único a quem eu podia recorrer. João tentou ponderar a dificuldade e que não tinha dinheiro, apenas uma pequena quantia em poupança, irrisória perto do que pedi. Era o que eu esperava que ele dissesse, e continuei o que havia planejado.
- Faça acontecer! Eu sei que você pode. Se não conseguir vou destruir todas suas coleções. – minha voz era inflexível e cruel. Realmente estava disposto, o caminho foi traçado e eu não podia mais retornar. Vi o pavor nos olhos de João, e decepção.
- Você sabe como funciona, - ele gaguejou amedrontado. - Não é assim, eu preciso dormir.
- Está bem, - concordei, - vamos dormir no seu quarto, deitarei no pequeno sofá e você na cama. Não tente nada, ou vai se arrepender.
Dei-lhe um sonífero, ele tomou sem esboçar reação. Seu estado era deplorável, infinitamente pior do que eu havia fingido. Uma ponta de remorso me atingiu, mas depois ponderei que assim seria melhor, a depressão o impediria de reagir. Somente depois de vê-lo em sono profundo, eu me ajeitei no sofá e tentei cochilar. Apesar da inquietação, o sono não demorou, logo as pálpebras pesaram e a escuridão avançou.
Estou consciente a algum tempo, mas está tudo escuro. Tenho noção de estar acordado, como se mantivesse os olhos fechados. De repente uma luz invade o ambiente. Como se uma grande parede fosse aberta, e vejo o rosto enorme de João Pedro. Parece um gigante de quinze metros. Olhando melhor percebo que a parede é a porta de um armário, posso reconhecer a sala, no lado oposto os aviões pendurado. Não... agora estou entendendo. Estou dentro de uma caixa. Não posso me mover, nem falar, mas posso ver bem. Reconheço ao meu lado, o nosso antigo chefe, que vivia perseguindo João Pedro e que sumiu anos atrás. Adiante está o garçom do restaurante executivo que o tratava com desdém. A mulher gorda, pelo que João contou, deve ser a professora do curso técnico, que sempre lhe dava notas baixas. Ainda percebo inúmeras “pessoas” que não reconheço. Depois de levantar algumas miniaturas que haviam caído e coloca-las em ordem, ele fecha a porta deixando-nos novamente na escuridão absoluta. Mais uma vez João Pedro resolveu um problema.
Finalmente conheci a sua coleção de miniaturas humanas. São perfeitas. São humanos miniaturizados. E eu faço parte dela.