O Dragão e o Robô
Era de formato humanóide. O robô de treinamento tinha um metro e oitenta de altura, e pesava 70 quilos. Por cima do esqueleto de metal recheado de fios, fibras miosintéticas e microchips, uma camada de 3 a 4 centímetros de uma borracha resistente lhe conferia uma aparência mais robusta, além de ser um alvo bastante cômodo para os atletas. Seu cérebro era programado com uma vasta gama de técnicas de ataque e defesa, além de ser 100% programável.
Esses andróides podiam ser comprado em lojas de artigos esportivos, em diversos modelos e potências. Com um software que vem com o produto, você pode fazer dele o adversário que você quiser: Configurar sua velocidade, defesa, ataque e até programá-lo para cair ao receber uma certa quantidade de golpes. Estudantes de artes marciais e esportistas eram seus fãs, e eram empregados também como Leões de Chácara.
O andróide que estava à frente de Weimin Lao era do tipo RA 01, o mais moderno modelo do mercado. Considerado de potência exagerada, ele podia ser, com o uso de um programa racker, configurado para ser duas vezes mais forte e ágil que o maior dos atletas e, por ser um robô, cem vezes mais resistente à golpes. Enfrentá-lo com artes marciais nessas condições seria um suicídio. E era um RA 01 totalmente “destravado” que Weimin Lao iria enfrentar.
Equipes de paramédicos estavam a postos, apesar de que, por exigência do próprio Weimin Lao, o combate iria acontecer numa jaula trancada de vidro à prova de balas. Ninguém conseguiria abrir os vinte cadeados ou romper o vidro à tempo de salvar Lao se algo desse errado.
Dizer “se algo desse errado” é modo de falar. Todo mundo concordaria que o “errado” seria Lao sobreviver. O que o jovem de vinte e oito anos tentava provar era algo considerado um absurdo. Mas a ousadia era tão grande que movimentou representantes da imprensa de todo mundo.
Lá, naquele estádio de futebol em Pequim, China, estavam reunidos repórteres, místicos, cientistas, técnicos e os vários discípulos de Lao. Os expectadores mais interessados no assunto eram os representantes da Fundação Educacional James Randi, a famosa instituição cética que oferecia um gordo prêmio em dinheiro para quem pudesse demonstrar algum poder ou capacidade além de qualquer explicação possível à ciência convencional.
Richard Jones era o responsável pelo evento, atendendo ao pedido do humilde chinês Weimin Lao. Mesmo com todas as salvaguardas legais assinadas sem reservas por Lao, ele não podia deixar de ficar apreensivo com a “luta”.
-Aquele cara é louco! Meu Deus! Vai cometer suicídio para o mundo todo ver! Olha só! Está meditando em posição de flor de lótus a um tempão! O quê? Duas horas?- Dizia de minutos em minutos, variando os termos.
Ele olhou para os consoles de monitoramento do RA 01. Os painéis mostravam a estrutura do monstro de metal. Um gráfico de desempenho estava parado, mas ficaria como louco quando o robô começasse a se movimentar, para logo depois parar, quando quebrasse os ossos de Lao.”Suicídio! Suicídio!”, pensava Richard. Vários alertas de letalidade estavam acesos, indicando que o equipamento não era seguro. O pior é que o console não poderia parar o combatente mecânico: Mais uma exigência do senhor Weimin Lao: O robô foi programado para começar a lutar às dezoito horas, e só parar às dezenove. Nenhum minuto a menos.
-Suicídio! Suicídio!- Desta vez falou em voz alta.
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Como encarregado da Fundação Educacional James Randi, Richard iria cumprir as regras do desafio, mas até que gostava de Lao. Ele lembrava de quando tudo começou. Lao chegou com dois discípulos, um deles como intérprete para o inglês. Ele não havia chamado a atenção da imprensa e pediu uma oportunidade de mostrar ao mundo o poder do Ki.
Era um mestre Kung Fu, de uma família abastada da China, mas havia largado os privilégios para estudar a arte marcial ancestral. E era muito bom.
Em pouco tempo todo o instituto ficou sabendo do exímio lutador, que fazia inacreditáveis exibições de força, técnica e agilidade. A imprensa ficou sabendo do boato, e a badalação Weimin Lao começou.
Não havia dúvidas: Lao era forte, tinha a destreza de um leopardo, e era capaz de quebrar objetos muito duros. Muita gente já estava dizendo que o desafio da Fundação Educacional James Randi estava finalmente vencido.
Mas o senhor Johnson Miller, o presidente, após os rigorosos exames patrocinados pelo instituto, deu seu parecer.
-De fato, senhor Weimin Lao- Dizia. Lao ouvia a tradução para o mandarim com atenção e humildade.- O senhor é o mais incrível artista marcial que já se teve notícia. Suas habilidades e técnicas parecem impossíveis para nós, pessoas comuns. Mas o senhor deve convir que provou apenas que o corpo humano é mais passível de desenvolvimento físico que costumamos pensar...
Várias explicações sobre exames, critérios, avaliações e testes se seguiram. Lao estava sempre atento, postura inabalável. Fazia perguntas quando não entendia algo. Algumas pessoas, impressionadas com o tigre chinês, torciam a cara para as objeções do Senhor Johnson Miller. Lao apenas ouvia as explicações.
-Por fim, lamento informar que o senhor não atingiu as exigências necessárias para que o prêmio e a vitória do desafio lhe sejam entregues. Suas habilidades são frutos de uma grande disciplina, dedicação e trabalho duro. Mas são apenas isso.
Weimin Lao disse algo em mandarim. Seu discípulo/ intérprete deu um suspiro.
-Meu mestre diz: “Senhor Johnson Miller, não tenho como discordar de suas inteligentes colocações.”
Lao prosseguiu, e o discípulo traduziu suas palavras.
- “Por mais que eu me esforçasse, não fui capaz de demonstrar o que eu vim aqui demonstrar. Se me permite, quero fazer uma proposta.”
O que se seguiu foi o plano do absurdo que aconteceria agora na cidade de Pequim. O próprio discípulo se mostrava desconcertado. O olhar firme do mestre foi o único motivo para que ele continuasse a tradução. Lao dizia que precisava entrar em um estado de frenesi. Estar diante da morte, um duelo mortal com um adversário superior.
Adversário superior? A você?- Disse o senhor Johnson Miller.- Onde poderíamos conseguir um?
-“Um robô de treinamento”, diz meu mestre. “Totalmente livre de limitações”.- Disse o discípulo, se esforçando para manter a postura.- Meu mestre diz que o modelo RA 01 seria perfeito.
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Faltavam apenas dez minutos para o início do duelo que representava o maior confronto público entre o ceticismo e materialismo contra o misticismo e a espiritualidade. O esbelto e poderoso corpo de Weimin Lao permanecia imóvel, em inabalável meditação desde duas horas antes.
Ele já estava trancado na jaula com o RA 01, que também permanecia imóvel, mas de pé. Dentro da caixa craniana o seu cérebro de circuitos magnéticos estava impassivelmente atento ao timer regressivo: 00:08:54. Ao final da contagem a máquina de combate atacaria com força letal qualquer alvo vivo que estivesse ao seu alcance até que uma nova contagem regressiva de uma hora terminasse. Apenas Weimin Lao estaria a sua mercê.
A multidão que estava no estádio observava a contagem no telão. O equipamento, que normalmente transmitia os lances e replays de jogos de futebol, agora mostrava a cena do interior da jaula, com o timer na parte superior, alinhado no centro. O murmúrio que reinava nas arquibancadas dava lugar a um tenso silêncio.
00:03:02. Um novo murmúrio ergueu-se da multidão. Lao se levantara e começara a aquecer-se. Rápidos movimentos difíceis de se executar até para lutadores experientes, saltos mortais e enrijecimento da musculatura do jovem chinês arrancaram a multidão do estado de ânimo em que se encontrava, e um grande ruído de gritos, aplausos e palavras de incentivo se seguiram.
00:00:30. As pessoas calaram-se ao perceber que faltava menos de um minuto para o combate começar.
00:00:00. O Timer desapareceu. O robô fixou seus olhos mecânicos em Lao e se aproximou em uma corrida lenta, parecida com o ritmo dos corredores de maratona, até vencer metade da distância entre ele e Lao. Só então ele demonstrou o imenso poder que os fabricantes lhe haviam conferido, e o por quê de tantos firmwares de segurança.
O primeiro ataque foi monstruoso. O robô arrancou em grande velocidade e desferiu um salto giratório na altura da cintura de Lao, que permanecia ereto como se estivesse na posição de “descanso” ensinada nos quartéis. Inusitadamente, ele tomou impulso com os pés no exato mento em que o robô saltou. Torcendo vigorosamente o corpo e fechando as pernas ele conseguiu um giro veloz e bastou curvar quase imperceptivelmente o corpo para que o próprio giro o deixasse em posição horizontal, acima do chute do robô e com os dois pés na altura do rosto do mesmo.
A máquina atingiu com a cara os dois pés rijos de Lao a mais de setenta quilômetros por hora. O artista marcial foi arremessado longe para um lado, absorveu o impacto da queda rolando, e se pôs de pé. O robô teve menos espaço e terminou atingindo o vidro violentamente.
Mas isso não chegou nem perto de danificar seriamente o desempenho do robô. Apesar dos alarmes de dano nos circuitos principais emitidos pelos consoles, os circuitos magnéticos podiam criar um novo arranjo em fração de segundo, contornando as avarias. O corpo do robô sofreu uma considerável perda de calibração, mais isso também foi quase imediatamente compensado pela auto-reprogramação motora. O RA 01 ainda tinha 98,9% de capacidade combativa, e uma nova manobra de defesa devidamente registrada em seus bancos de dados.
Desta vez Lao não manteve uma postura aparentemente descuidada como havia feito antes, mas assumiu uma pose de guarda muito eficiente. O robô não vez uma ataque de carga como na primeira vez, mas golpeava com uma velocidade e força monstruosa. O artista marcial absorvia os impactos com as pernas e braços, mesmo assim seu corpo era sacudido pela violência dos golpes. O RA-01 avançava empurrando-o para um dos cantos. A multidão gritava afoita.
O dragão chinês também golpeava. Socos rapidíssimos atingiam o rosto artificial do RA-01 uma vez a cada 3 ou 4 ataques que ele desferia. O senhor Johnson Miller e Richard estavam de olho no monitor de condição do robô.
-Ele não vai conseguir.-Disse o senhor Johnson Miller, em tom de lamento- O andróide sequer preocupa-se em se defender. Já avaliou que a força física dele é insuficiente...- De fato, os gráficos mostravam que os impactos não chegavam nem perto de serem perigosos- Ele vai se cansar, e então...
Foi quando Weimin Lao efetuou mais uma surpreendente manobra. Inclinou-se para trás no preciso momento em que o punho direito do RA-01 se dirigia a seu rosto. A análise fria dos algoritmos de combate no cérebro magnetrônico do robô decidiram por prolongar o golpe avançando com o pé direito alguns centímetros, para manter o equilíbrio. Justamente o que Lao esperava, e por isso o pé direito do robô encontrou o de Lao bloqueando seu avanço.
Aproveitando-se do desequilíbrio momentâneo da máquina, Lao Agarrou seu braço direito e puxou com uma força que o projetou num giro rápido para as costas do robô que se viu impossibilitado de golpear. Então o console disparou o alarme de danos aos circuitos magnetrônicos!!!
Lao, às costas do robô, emitiu um assustador “kiai” seguido de um golpe com as palmas das mãos atrás e na lateral da cabeça do adversário. Todos os técnicos ficaram pasmos. Como um bom físico, Richard percebeu que Lao havia, de alguma forma, golpeado de um jeito que as ondas de choque dos impactos se somassem justamente na região dos circuitos magnetrônicos. Era impensável como um ser humano conseguiria tal façanha sem nenhum equipamento, mesmo com um possível estudo prévio do modelo do andróide. Mesmo assim, era fisicamente possível. O irritava pensar que esse argumento tiraria o prêmio de Lao, caso vencesse...
O RA-01 ficou momentaneamente estendido no chão, enquanto o console exibia a mensagem “Executando rotina de contorno de erros”. O tempo de menos de três segundos foram suficientes para que Lao saltasse sobre sua cabeça, rasgando o tatame e enfiando-a na terra do estádio.
Mas ainda restavam 74,8% de capacidade combativa no RA-01. Agora Duas novas diretrizes regiam seus ataques: A velocidade do alvo foi reavaliada pela segunda vez na luta, e seus golpes diretos foram reclassificados como “potencialmente destrutivos”.
Agora o robô era cauteloso. Atacava e se defendia. Não havia mais espaço para Lao, que até então contava com a valiosa vantagem de ser sub-avaliado pelo adversário.
Os braços de Lao ardiam pelo esforço. Hematomas brotavam de sua pele. Era só uma questão de tempo e... Seu braço esquerdo foi quebrado!
Lao fez uma careta de dor. Sua guarda rachou e um soco do robô quebrou a clavícula esquerda. Quando os espectadores viram Lao sendo arremessado três metros para trás, por pouco não atingindo o vidro, ficou de pé, e a segurança não conseguiu evitar o tumulto. Pessoas invadiam o campo, enquanto homens munidos de ferramentas corriam até a jaula.
Richard gritava desesperado. O senhor Johnson Miller fechou os olhos e levou a mão à testa.
Porém a lógica fria do robô salvou Lao. O algoritmo de combate optou por não aplicar uma finalização. Percebia a falência fatal do desempenho do alvo. Considerou a capacidade de Lao em surpreende-lo e avaliou os fatos. Simples: Nada de trocar o certo pelo duvidoso. Ou, para ele, a solução de valor mais conveniente na equação daquele problema de otimização.
Lao fez um jogo de pernas parecido com aquele dos dançarinos de rua, para ficar de pé sem auxílio das mãos. Segurava com a mão direita o seu braço esquerdo, pendente no ombro arriado...
O robô avançou com o mesmo ímpeto. Não importava que Lao demorasse mais alguns minutos para cair... Era só questão de tempo. Tudo estava avaliado. Não haveria mais surpresas.
O Dragão olhou para a multidão cercavam a jaula... Gritos desesperados em várias línguas, inclusive a sua língua materna, mas as expressões nos rostos permitiam entender o que todas falavam:”Alguém o ajude! Ele vai morrer!”. O Dragão estava acuado. Seguiu-se uma cena patética e horrenda. O robô corria atrás de Lao, como um cão perseguindo um gato, ou um coelho. O robô não corria a toda, mas a velocidade aumentava, à medida em que percebia que Lao não tinha mais recursos. Seu ombro estava inchado. Ele se sentia mal. Hemorragia interna...
Vergonha. Lao sentia-se em grande vexame. Percebeu que morreria. “Como fora tolo!” Pensava. “Arrogante.” Julgara-se pronto, faria a cultura espiritual voltar ao mundo. Agora, após a sua trágica derrota, as tradições ancestrais seriam zombadas pelos ignorantes!
Lao olhou para o RA-01. Ele não era mais um robô. Era um símbolo da antítese de tudo que Lao acreditava. Representava a desvalorização da espiritualidade, da negação de que o ser humano participa da natureza divina, e por isso tudo pode superar. A tecnologia era útil, mas nos tornou dependentes, covardes, sem atitude... Lao teve que enfrentar esses sentimentos conflitantes em seus dias de treino. Buscou o isolamento, a meditação. Caminhos internos para a verdadeira natureza humana... “Cada um de nós é um deus...” As palavras de Buda ardiam em seu jovem peito. Foi por elas que ele perseverou, enfrentou os vícios da vida mundana e...
VENCEU!!!
Um “kiai” retumbante encobriu os gritos da multidão. Um forte impacto. A multidão estarrecida observava silenciosa. Caídos, lado a lado, jaziam O Dragão e O Robô.
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Grave hemorragia interna. O osso da clavícula perfurou o pulmão.
O braço direito estava dilacerado de forma curiosa. Parecia ter sido lapidado em forma cônica, como se houvessem utilizado um apontador de lápis tamanho gigante.
Mas a causa da morte foi certamente um estado de stress extremo, sem precedentes na literatura médica. Parada cardíaca e respiratória fulminantes.
Isso era o que dizia o relatório do médico do instituto de medicina legal de Pequim sobre a morte de Mestre Weimin Lao. Mas foram tecnólogos, cientistas e engenheiros que estudaram a carcaça do RA-01 que ficaram mais incrédulos.
A unidade central de energia do robô foi atingida por um golpe frontal à altura do peito, que transpassou uma camada de borracha sintética super resistente, uma chapa de aço temperado e um invólucro de cerâmica de alto impacto, além de transpassar por tudo isso novamente para emergir nas costas do andróide. E isso foi um punho! Encontraram pedaços de carne e ossos, e muito sangue de Lao dentro do robô.
Por mais que tentassem, nenhuma simulação de computador conseguia explicar o golpe de Lao.
Muitos mistérios sem resposta, mas já haviam dados mais que o suficiente. Dias depois, o senhor Johnson Miller, em nome da Fundação Educacional James Randi, entregou oficialmente um cheque de cinco milhões de dólares à família de Lao.
Anos depois céticos continuariam a questionar o que aconteceu aquele dia. Religiosos diriam que foi obra do demônio, místicos diriam que lá estava a prova de suas convicções. Alguns continuariam a tentar achar o real significado daquilo, entre eles o senhor Johnson Miller e Richard.
Enfim, tanto para a ciência, quanto para a mística, Lao deu início à uma nova era.