Saudade Dos Aviões da Panair

Desembarquei de um velho táxi Lada 124 no aeroporto internacional José Martí, ainda sob o impacto da entrevista concedida pelo Rei. O que eu tinha gravado naquela fita cassete era uma bomba-relógio, pronta para explodir assim que a Revista de Domingo do Jornal do Brasil chegasse às bancas, no sábado à noite. Certamente, as "viúvas" do Rei da Jovem Guarda jamais perdoariam o que fora dito a respeito dele pelo Rei do Soul Brasileiro. Mas aquilo era só a cereja do bolo; havia mais, muito mais. Algumas das ideias de Tim Maia iriam inevitavelmente gerar atritos com o Ministério da Educação e Cultura, e desafiavam frontalmente a imagem da "democracia racial" que o regime militar vendia para consumo interno e pelo mundo afora. A caminho do check-in da Panair, comecei a pensar se aquela entrevista - ou substancial parte dela - não acabaria devidamente podada pela censura prévia. O Jornal do Brasil era um dos jornais "agraciados" com um censor permanente na redação, e eu já o imaginava torcendo o nariz para os trechos mais polêmicos:

- O seu entrevistado diz aqui querer uma universidade para negros...

- Na análise dele, - responderia eu, cautelosamente - os negros no Brasil não possuem as mesmas oportunidades dadas aos brancos.

- Mas se quer uma universidade para negros, o senhor há de convir que isso configura racismo. E racismo é algo que não há neste país - retrucaria peremptoriamente o censor.

- O meu entrevistado afirmou que, embora voltada primordialmente para negros, a universidade estaria aberta para todas as outras etnias.

- Se vai estar aberta para outras etnias, não há necessidade de dar à ela esse cunho racial. Aliás, já temos excelentes universidades públicas no país, todas de livre acesso através do vestibular unificado. Basta estudar para passar, senhor jornalista!

E nessa hora, naturalmente, eu não poderia deixar de soltar uma farpa:

- Tem razão sobre o vestibular. Eu imagino que até os negros que estudarem o suficiente terão uma oportunidade de aprovação...

- Indubitavelmente, senhor jornalista. Prova do que digo, é que estive na Bahia, visitei a faculdade de medicina e havia ali um estudante negro!

- Fantástico!

O diálogo imaginário se desfez a poucos passos do check-in. Dois cubanos de bigode, vestindo ternos cinza sem gravata, interceptaram a minha trajetória. Um deles exibiu um distintivo.

- Vigilância Aduaneira. É o senhor Correa? - Perguntou, num português aceitável.

- Correia - corrigi.

- Queira nos acompanhar, senhor Correia - disse o outro policial à paisana. - Temos algumas perguntas a lhe fazer.

Os policiais mantinham uma atitude e expressões cordiais, e o público que circulava pelo saguão do aeroporto não parecia atinar com o que estava ocorrendo. Olhei atarantado para o balcão da Panair, e como se fora combinado, ouviu-se a voz da locutora oficial, no serviço de som do aeroporto:

- Este es el anuncio preliminar de embarque para el vuelo 2-5-4 de Panair de Brasil, con servicio a Salvador y Rio de Janeiro, embarcando por la terminal número 7.

O primeiro policial sorriu, e acrescentou:

- Não iremos demorar.

[06-08-2015]