Como será o próximo réveillon?
Meu nome é Armand, sou professor de história, talvez o último que tenha restado. Hoje é véspera de ano novo, trinta e um de dezembro de dois mil novecentos e noventa e nove. Já está escurecendo e terei de parar minha tarefa. Não gosto de trabalhar à luz do lampião. Eu sou o guardião da memória da humanidade, e faço isso do modo mais primitivo possível. Escrevendo, para quem desconhece o processo, grafo símbolos ou letras em uma matriz de pano e ao encerrar, enrolo e guardo em um tubo estéril a vácuo. Há dois anos e meio venho vivendo isolado, em pequenas aldeias, me mudando com frequência. Faz dois meses que estou nos andes, próximo a uma pequena aldeia peruana, onde me conhecem como eremita ou excêntrico, porém desconhecem que sou procurado pela ação mundial. Fico no máximo três meses em cada local. Não sei quanto tempo sobreviverei desta maneira, mas preciso deixar registrado o que ocorreu.
O início de tudo foi no final do século vinte e quatro, mais precisamente em 2392. Na Suíça, uma clínica multinacional “KNOW”, presidida e comandada pelo Dr. Malvius MacTolen, proeminente neurocirurgião, foi quem por um acidente descobriu ou ativou pela primeira vez a célula gama. Foi como o ovo de colombo, uma voltagem e amperagem exata numa determinada área cerebral produziam um choque que ativava as células gama. E como todos sabem a célula gama é a responsável pela percepção extra-sensorial cognitiva avançada (PESCA), vulgarmente chamada telepatia. E o que é mais impressionante, depois de ativada, as células gama mantinham sua atividade em seus descendentes. A descoberta e comprovação teve um alto preço para o Dr. Malvius. Foi assassinado noventa dias após sua descoberta, quando entrava para uma conferência médica, no saguão do hotel Burg Al Arab, em Dubai, considerado o melhor hotel do mundo, infelizmente, não o mais seguro. Também foram assassinados inúmeros médicos da KNOW, mas muitos fugiram e continuaram difundindo a técnica, espalhados pelo mundo. Esses fugitivos buscaram áreas mais remotas com maior chance de escaparem aos rastreadores de identificação. Escolheram países do oriente como Índia, Tailândia, países da África central, da América do Sul e Central. A suspeita do assassinato, nunca comprovada, caiu sobre a CIA em ação conjunta com o serviço secreto alemão e a Mossad. Embora todos os países do mundo se dissessem contra esse ato bárbaro, no fundo esperavam que a técnica se mantivesse desconhecida. Era óbvio o medo produzido nas lideranças mundiais, pois a telepatia acabaria, como acabou, o estilo de governo vigente. A população podia perceber a veracidade das propostas políticas, a mentira tornou-se impossível. Dos países chamados de terceiro mundo, para onde fugiram os seguidores de Malvius, pela facilidade da técnica, a telepatia espalhou-se, e daí para o mundo como uma pandemia. No curto período de dois anos, toda a população mundial teve as células gama ativadas. A primeira mudança mundial observada foi a total transformação da população em vegetarianos. Ninguém tinha coragem de alimentar-se de um animal depois de perceber seu medo e terror ao ser morto para servir de alimento. Os motores a combustão foram extintos, não era justificável nem mesmo pelo progresso a utilização de qualquer máquina que destruísse o planeta. Fabricas poluentes foram fechadas. A consciência universal não permitia mais o domínio do lucro. Em pouco tempo, desapareceram todas as religiões, algumas continuaram sendo estudadas, mas não mais seguidas. Todas as dúvidas vieram a público, dogma de fé não era mais aceitável em tempos de certeza absoluta. Em cinco anos ocorreu o caos político, e das cinzas o mundo reergueu-se, conseguindo um novo e duradouro equilíbrio. Governos sérios e honestos vieram substituir os antigos corruptos, buscando a real melhoria de seus povos. Ninguém precisava ter reservas pois havia fartura e os governos passaram a ofertar tudo que a sociedade precisava. Acabou a fome mundial. Os alimento produzidos eram suficientes para a população. O controle de natalidade não foi uma imposição, mas aconteceu naturalmente pelo reconhecimento popular do óbvio, da necessidade. A evolução tecnológica foi surpreendente, como nunca sequer imaginada. As pessoas trabalhavam com o que gostavam e tinham afinidade, porém todo trabalho era igualmente reconhecido. O cientista quântico tinha tanto valor quanto o artesão ou o gari. A energia tornou-se totalmente limpa, eólica ou solar. Zonas com dificuldade de produção energética podiam trocar por alimentos ou qualquer outra produção. Como não havia mais problema de compreensão por diferentes línguas, pois todos percebiam o pensamento, qualquer pessoa podia morar em qualquer região do planeta. Crimes foram praticamente extintos sendo tratados como doença. Ninguém deseja mais do que pode usar e sabe que sempre terá tudo que precisa. Após duzentos anos, em 2599, o governo tornou-se central, um único governo mundial. Nunca houve na história da humanidade um período de tanta paz e desenvolvimento, que já vem durando aproximadamente quatrocentos anos.
Sempre pensou-se em viagem pelas estrelas, descobrir novas civilizações, e que isso somente aconteceria com o recurso de viagens interplanetárias como propulsão de dobra, viagens acima da velocidade da luz por wormhole ou similar. Nada de significativo aconteceu nessa área de pesquisa, no entanto, tal contato aconteceu por nossa própria evolução. Três anos atrás, chegaram os mintakas, cujo planeta único do sol de Mintaka, localiza-se no centro da constelação de Orion. Uma fantástica nave intergaláctica entrou em orbita estacionaria na terra. Cinquenta naves desceram na Europa, nos arredores de Londres, próximo a sede do governo mundial. Essa espécie chegou a terra fazendo o trabalho diplomático da união planetária, que engloba mil cento e oitenta planetas. Somente civilizações avançadas e com capacidade de entendimento linguístico são contatadas. Trouxeram a possibilidade de nos expandirmos, crescermos e nos tornarmos participantes ativos no conselho dos mundos. A telepatia facilitou esse contato. Foi um êxtase mundial a recepção dos viajantes estelares. Entramos em fase de experiência na união planetária. Recebemos maravilhas dos ilustres visitantes como tecnologia de antigravidade, transporte instantâneo por wormholes, cura de uma infinidade de doenças, entre tantas outras. Claro que tudo tem seu preço, e pagamos em matéria prima e trabalho.
Os minkaras foram alojados no hotel 41 no centro de Londres, justamente atrás do palácio de Buckingham. Parte dos extraterrestres ficaram alojados nas naves na região rural, logo construíram um portal de ligação do acampamento com o hotel. Os mintakas ou “seres”, como eles costumam se denominar são humanoides, muito semelhantes aos terráqueos, tez clara, a mesma proporcionalidade dos humanos, destacando-se apenas por sua estatura elevada, em torno de dois metros e dez centímetros, tanto os homens como as mulheres. Bastante reservados, obedecem uma rígida hierarquia que torna quase impossível obter uma opinião pessoal sobre qualquer assunto abordado, sempre remetendo seu interlocutor e suas dúvidas ao alto escalão. Um ponto era evidente sua admiração, embora usassem suas rações, ficaram agradavelmente surpresos com nossa culinária. Outra coisa que os intrigou bastante foi a música, pois desconheciam esse tipo de arte. Trouxeram inúmeros presentes, magnificas pinturas e esculturas. Tudo parecia correr bem. Inúmeros tratados comerciais e culturais foram firmados. Como um dos mais conceituados historiadores do governo, não estou me vangloriando pois na verdade essa é uma profissão praticamente extinta, fui convidado a participar de um intercambio e conhecer o planeta Mintaka como representante da Terra. Tive a honra de ser o primeiro humano a sair da terra e visitar um planeta habitado.
Precisei fazer um treinamento do funcionamento do portal e de como portar-me durante a passagem. O treino foi rápido pois os comandos são muito simples, desde que os dois portais estejam ligado. Fui informado das condições que deveria esperar. A atmosfera de Mintaka embora um pouco mais densa é respirável para os humanos, pois a anatomia dos mintakas é praticamente igual a nossa.
Fui para a passagem apenas com uma valise com uma troca de roupas e carregando meu inseparável pad. Traria anotações, imagens, tudo que possível desse novo mundo, o primeiro a ser conhecido pelos terráqueos. A sensação de passar pelo wormhole é muito desagradável, como se milhões de agulhas o espetassem. No instante seguinte estava vomitando no planeta Mintaka, a aproximadamente mil e seiscentos anos luz de distância. Esse é outro inconveniente dos buracos de minhoca, a náusea e o vomito. Fui acompanhado por um mintaka enorme que usava uma farda estilo militar. Tratou-me com educação mas sem nenhuma deferência, foi até um pouco ríspido. Não me preocupei com isso, não podemos julgar uma raça que acabamos de conhecer. Chegamos a um complexo de aparência militar. Esse portal permanece permanentemente ligado, com transportes constantes. Deixamos a sala do portal e saindo do prédio fomos a outro menor e mais baixo, um alojamento. Meu guia mostrou-me o computador no quarto onde poderia ter acesso a dúvidas e perguntas e saiu.
Antes de qualquer coisa, eu estava curiosíssimo sobre o planeta, não queria ficar trancado em um quarto. Sai logo atrás do meu guia. Os complexos onde estávamos não eram fechados, ao contrario, estavam no coração da capital. A cidade pouco diferia de uma megalópole terrestre, exceto pela grande área verde. A agitação era enorme, pessoas apressadas cruzavam as alamedas e enormes e arborizadas praças. Meu primeiro impacto foi com o céu, de uma tonalidade violácea e com três grandes luas. Voltei minha atenção para a terra. A grande maioria das pessoas usavam uniformes padrões, tive a sensação de estar dentro de um enorme quartel. Veículos voadores e terrestres zumbiam sem parar. Logo que deixei o alojamento, uma sensação de barulho enorme me invadiu. Não era barulho da cidade, eram pensamentos, entravam direto em minha cabeça. Os mintakas, tão discretos como visitantes em nosso planeta, aqui demonstravam uma grande loquacidade. Só então reparei que percebia seus pensamentos completos, diferente de antes, certamente usaram algum bloqueador telepático. Talvez o efeito do wormhole o houvesse danificado. Podia perceber a totalidade de seus pensamentos e não eram agradáveis. A sensação de repulsa pelos terráqueos, a necessidade de nos suportarem até que todos contratos estejam firmados. Já havíamos comprometido grande parte de nossas riquezas minerais. Pouca coisa mais havia para entregarmos. E o pior de tudo, um projeto em estudo denominado “esterilização neural”, nem todos emanavam essa informação, apenas o alto comando de Mintaka. Seria disseminado pela água um composto químico com ação degenerativa sobre as células gama, ou seja, nosso maior avanço, que levou ao período de crescimento e paz no planeta, seria aniquilado. Nada do que nos informaram era real. Não existia uma união planetária, apenas um planeta usurpador. Passamos sem perceber, a trabalhar para os “simpáticos” invasores. Logo nos entregaríamos espontaneamente a escravidão.
Procurei não demonstrar minha tomada de consciência desses fatos, mas infelizmente a telepatia funciona em mão dupla e logo eles repararam meu conhecimento de toda estratégia. Antes que pudessem prever qualquer reação minha, entrei no complexo por onde vim e a simplicidade dos comandos do wormhole facilitou minha evasão. O portal estava em funcionamento e segundos depois estava de volta à Terra, infelizmente sem nenhuma prova do que percebi, exceto o conhecimento. Mas o conhecimento bastaria, pensei, pois o repassaria telepaticamente. Deixei rapidamente a sala do hotel e voltei de imediato ao meu grupo de trabalho para relatar o acontecido, mas nesse instante já estava em todos teles, minha imagem num surto de cólera, matando um mintaka. A comentarista informava que eu tive um surto psicótico, talvez pela passagem do wormhole e deveria ser entregue as autoridades mintakas para tratamento e que em virtude desse incidente seriam encerradas as viagem interestelares. A imagem forjada enganava a todos. Séculos sem mentiras ou desconfiança, nos levaram a credulidade de uma criança. Percebi a inutilidade de tentar me defender nesse momento. O mais sensato seria fugir, e foi o que fiz. Como historiador conhecia inúmeros caminhos secundários de saída da cidade e, fora dela foi fácil usar autocarros que não utilizam rastreadores de identificação. Consegui chegar a Liverpool. De lá procurei um navio cargueiro que partia para a américa do sul. Poderia ter tentado um transporte melhor, mas o risco aumentaria muito. Também precisava sair rápido, acredito que em 24 horas minhas fotos estariam espalhadas por toda ilha. Entrei no Brasil pelo porto de Paranaguá, passei algum tempo no interior, depois estive no Paraguai, Bolívia, entrei no Peru com um grupos de turistas que iam a Machu Picchu, cheguei a cordilheira dos Andes de onde desembaracei-me de meu grupo e prossegui sozinho, porém sem deixar a região. A topografia árida me proporcionava boa visão e facilidade para me esconder.
Desde essa época venho vivendo em vilas distantes dos grandes centros, em constante deslocamento. Registrando tudo que sei, um dia a humanidade pode acordar e esses dados podem ser importantes.
Os camponeses me estranham, mas não se incomodam com minha presença e sempre que preciso, eles me oferecem alimentos e até pouso ocasional. Os peruanos são pequenos, morenos e extremamente bem humorados. Quase toda noite posso ouvir sua cantoria na vila, pouco distante de minha cabana.
A noite, é a pior hora. É quando começo a relembrar nossa história. Nós que já fomos uma raça de lobos, predadores de nós mesmos, hoje somos ovelhas para os invasores estelares.
Os fogos indicam a chegada do ano 3000. Sentado na frente da cabana posso ver a vila logo abaixo com sua festa, fogos, música e dança. Contra a luminosidade de baixo percebo o vulto de dois camponeses com seus ponchos e gorros característicos subindo a trilha. “Estranho, parecem tão altos”.