Vamos a ópera?
Toda colônia parava durante o período de apresentações teatrais. À medida que tal episódio começou a se tornar recorrente, o prejuízo passou a incomodar a diretoria da Metals Inc. O lazer sempre foi um ponto previsto e incentivado pela empresa, mas a falta ao trabalho estava chegando a níveis intoleráveis. Os relatórios eram enviados como se nada anormal houvesse acontecido. Embora inadmissível, a baixa na produção era considerada normal pelos gerentes e até mesmo pelo sub diretor Junior. Tralm Junkius com apenas trinta anos, teve uma carreira meteórica na Metal inc., executivo altamente qualificado, foi promovido a sub diretor para Autrus a um ano e até então nada havia acontecido que o desabonasse. Houve um tempo em que a empresa subsidiou um bordel, isso no inicio das explorações, quando a população era composta praticamente só de homens. Hoje, com mais de cinco mil almas na colônia, entre homens, mulheres e crianças, sendo muitas famílias, o entretenimento mudou. Atrações culturais passaram a ser estimuladas, e a grande custo, orquestras inteiras foram da Terra à Autrus para turnês. Aparentemente o usual não estava funcionando em Autrus, carecia uma investigação de campo, e o melhor foi escalado para esse trabalho.
Como já estava habituado, o auditor teve uma recepção bastante fria. Mas isso não incomodava Karl Thompsom, durante a execução de seu trabalho raramente recebia um bom dia. O próprio sub diretor Júnior Tralm Junkius o esperava no espaçoporto. Cumprimentaram-se como cortesia dispensada a um oponente. Karl magro, branco como cera, característica dos algolanos, encarou Tralm, cabelos pretos cuidadosamente revoltos, terrestre obviamente. Feito o reconhecimento, Tralm levou-o até o alojamento de aspecto espartano e aparentemente irritou-se quando Karl deixou sua valise sobre a cama e disse que desejava ir imediatamente ao escritório central para iniciar sua analise. Uma semana passou-se e nada foi evidenciado. Karl revirou os arquivos, fichas pessoais, fichas médicas, nada justificava a baixa na produtividade. Alguns detalhes se tornaram evidentes, a colônia de Autrus era a única da Metals Inc. que apresentava ausência de suicídios, números que chegavam a quase sete por cento após um ano, em todas as colônia de extração. Passou a segunda semana averiguando os computadores, procurando arquivos que pudessem ter sido apagados, mas tudo parecia normal. Embora ninguém gostasse dele na colônia, a população parecia perfeitamente normal, até o relacionamento com os nativos aconteciam conforme a recomendação da empresa. E isso era interessante pois os autrusanos eram detestáveis. Pelo que soube, no início os nativos não eram aceitos pela população da colônia, mas a política da empresa sempre foi de tolerância e não violência. São pequenos seres de no máximo um metro de altura, com a pele coberta de uma secreção mucosa repugnante. É justamente esse muco que protege sua pele da atmosfera seca de Autrus. Moram em cavernas nos arredores da cidade, mas são muito sociáveis e estão com frequência na colônia. A cúpula da cidade nunca é trancada, podendo qualquer um entrar ou sair a qualquer momento. Os autrusanos entram e saem sem dificuldades, mas os humanos apenas podem se expor a atmosfera usando trajes de proteção. Apesar de seu aspecto repugnante, são pacíficos e passaram a ser aceitos pela população. Em vários episódios, indicaram grandes fontes de minério aos exploradores, com estes ganhando horas e horas de procura arriscada. Mas para recompensá-los nada havia dentro da colônia que os interessasse, com exceção de música. Ficavam extasiados ouvindo qualquer tipo de música, do popular ao clássico. Trocariam quilos de platina ou ouro por uma flauta e ficariam horas ouvindo alguém tocar. A presença dos autrusanos incomodava a Karl, que procurava não demonstrar, mas era evidente sua repulsa, assim como fora para todos, no início da colônia. Os vários gestos de boa vontade dos nativos quebraram a barreira com os mineiros da vila, eles sempre traziam uma pepita ou pedra preciosa para agradecer quando ouviam alguém tocar uma música. Ao encerrar a primeira apresentação de ópera, todos os nativos das proximidades, cerca de uns mil, estavam em volta da vila sentados, ouvindo extasiados. Nas audições seguintes, foram convidados para assistir no anfiteatro e assim em todas subsequentes.
Saindo tarde de mais um dia infrutífero de pesquisa, Karl parou ao ver um autrusano sentado no chão poeirento enquanto um mineiro tocava um lamento num banjo. Parecia irreal, mas o corpo do autrusano brilhava. Um brilho amarelo esverdeado bem fraco, difuso, o envolvia, como se fosse iluminado por uma lâmpada dessa cor, mas não havia nenhuma fonte de luz próxima. Ao aproximar-se mais, o auditor perdeu o equilíbrio e ao cair, instintivamente com a mão protegeu a cabeça. O autrusano e o mineiro correm a auxiliá-lo. A queda no chão pedregoso esfolou seu braço, das costas da mão ate o cotovelo. O sangue brotava misturando-se com a poeira. O autrusano passa sua mão no local, antes que Karl possa evitar, a gosma fétida escorre sobre seu braço e como por mágica seu ferimento cicatriza. Karl levanta-se e sai cambaleando até seu alojamento. Um demorado banho quente melhora seu estado físico, mas sua cabeça continua dando voltas. “O que aconteceu? Porque ninguém falou sobre isso? O que foi isso? Esta claro que existe alguma relação com os autrusanos e o problema que vim investigar. Agora já tenho uma pista onde procurar”.
Na manha seguinte Karl começou a relacionar faltas, baixa de produtividade e consertos musicais. Estava totalmente absorto, ajoelhado ao pé de um arquivo que não reparou a chegada de Tralm Junkius.
- Posso ajudá-lo auditor?
O susto faz que Karl caia para trás, mas não o faz perder o domínio da situação. Ainda sentado no chão ele fala: - Conheci ontem a habilidade de um autrusano. Logo estarei com esse quebra cabeça decifrado. Você pode ajudar ou não. Não influenciará a resolução deste caso, mas certamente influenciará a sua carreira.
Tralm olha fixamente para o peso de papéis sobre a mesa, olha para o inspetor. “Será que matá-lo resolveria nossa situação”, pensa, e depois de alguns segundos deixa-se cair na poltrona a sua frente.
- Tudo tem a ver com os autrusanos, com a música. – começa a admitir Tralm, consumido. – Estávamos em dívida com eles e eles nunca nos cobraram nada. Achamos que seria um gesto cortês levá-los às audições que tanto gostam. Depois de algumas óperas, eles nos solicitaram que os deixássemos fazer uma audição. Era algo inédito, mas, o que tínhamos a perder? Bom, não adianta tentar explicar. Você verá por si. Marcarei uma audição para hoje à noite. Você verá. Nada de mal acontece, apenas uma pequena perda na produtividade. Ninguém é prejudicado. Espero que entenda isso.
Karl permaneceu em seu alojamento até a hora do almoço. No refeitório o ambiente era francamente hostil. Comeu rapidamente e retirou-se novamente para o alojamento. Dormiu um pouco e já ao anoitecer, tomou um banho e arrumou-se para a exibição musical.
Faltavam quinze minutos para a apresentação quando bateram em sua porta. Era o sub-diretor: - Acho que começamos nosso relacionamento com o pé esquerdo, espero que não leve isso em conta. Se não se incomodar eu o acompanho até o teatro. - Depois da conversa da manhã o sub diretor mudara completamente. O auditor pensou se era apenas uma tática para alterar a opinião a seu favor.
Sentados no camarote reservado às autoridades, observavam os mineiros entrando e se acomodando. O teatro tinha capacidade para mil pessoas. Segundo o sub diretor informou, os lugares eram sorteados e na próxima apresentação, os que compareceram nessa, não recebiam senha do sorteio, assim, ate que todos da colônia tivessem passado pelo sorteio.
No horário marcado, um grupo de cinco autrusanos estava pronto para iniciar o concerto. A música instrumental pré gravada iniciou. No tempo exato eles começaram a cantar. O mesmo brilho da manhã apareceu rodeando seus corpos. A música encheu o salão. Mas não era apenas música, emanava cor de seus corpos, e emoção, envolvido com a música e atingia a todos como um soco. A maviosidade do som era incomparável, não havia parâmetros para o que ouviam. Após o impacto inicial, todos começam a se adaptar às impressões emanadas dos alienígenas. Karl comparou-a com a ação do dia anterior, como uma cura, uma sensação de bem estar. O deslumbramento persistia e quando pararam de tocar, a sensação de se passarem apenas alguns minutos foi desmentida pelos relógios. Havia passado uma hora e trinta minutos. A plateia encontrava-se extasiada. A descrição mais apropriada é estar no paraíso. Durante alguns minutos ninguém se moveu. Então, lentamente os primeiros foram se levantado e saindo. Karl andava nas nuvens, seria impossível precisar quanto tempo levou do anfiteatro até seu alojamento.
Karl acordou com a luz sobre seu rosto. O sol já ia alto. “Dormi demais”, pensou, quando então olhando o calendário do relógio reparou que haviam passado não doze, mas trinta e seis horas. Dormira um dia e meio. Sua disposição bem como seu humor estavam excelentes. Foi quando começou a lembrar-se do que acontecera. Voltou à sua memória o espetáculo, a apresentação dos autrusanos. A euforia cedeu lugar a preocupação. Teria que tomar uma grande decisão.
No escritório central encontrou o sub diretor em sua mesa. Este o encara interrogativamente, durante alguns segundos, quando Tralm decide responder.
- Bom, como você disse, não existem palavras para descrever o ocorrido. Ao menos o mistério está solucionado. Resta aguardar a nave que me levará de volta. Serão apenas mais cinco dias. – Propositalmente, Karl evita falar sobre qualquer deliberação a respeito da música.
- e... o sr. tomou alguma decisão? Ficou ciente que nada aqui é perigoso?
O sangue subiu à sua face pálida e esquecendo sua disposição de não discutir o caso ele replica: - Sr. sub diretor júnior, o sr. sabe do que está falando? Temos um caso de uma colônia inteira drogada, e o sr. ainda acha isso inocente? Ainda não tomou conta da gravidade do que acontece nessa colônia? – o auditor saiu irritado, batendo a porta.
Cinco dias depois, a nave descarrega os suprimentos, artigos de primeira necessidade e maquinário na colônia, enquanto alguns colonos, juntamente com o sub diretor levam para a nave a câmara de estase em que se encontra o auditor Karl Thompsom.
- Ele teve uma serie de convulsões, seguida de coma. Sem nenhum problema concomitante. Embora os sinais vitais mantenham-se estáveis, encontra-se sem atividade cerebral. Os médicos acreditam que foi uma overdose.
Enquanto a câmara de estase é recolhida o capitão questiona o motivo da overdose.
- Os médicos não conseguiram diagnosticar, capitão. Aqui em Autrus não existem drogas, não temos nada em excesso, a não ser... música.