A Janela Âmbar

A janela âmbar estava sempre lá no despertar.

Ela e a dor.

Então o alarme disparava, chamando os enfermeiros de volta à minha sala. Um deles me injetava uma droga e lá estava eu novamente na cidade do ocaso.

Nela eu estava sempre só.

Embora houvesse outras pessoas, a solidão parecia inevitável. Todos pareciam bem colocados e satisfeitos ali. Tinham até aspectos que condiziam perfeitamente com o lugar – famintos de tudo que se possa sentir fome. Vestidos de trapos, eram mendigos ou prostitutas ou viciados ou fanáticos profetas do fim do mundo ou uma absurda mistura disto tudo. Mas, estranhamente, estas não eram as pessoas que mais me assustavam – se é que chegavam a me assustar de fato. Os que me assombravam eram os matemáticos. Homens vestidos de terno, gravata e cartola, impecáveis, sempre com guarda-chuvas nas mãos. Não era sempre que eu os via, mas eles podiam aparecer em qualquer lugar, a qualquer hora, e, sempre que o faziam, era como se meu espírito fugisse, deixando-me quase sem forças para fugir. Coisa que eu sentia que precisava desesperadamente fazer, mesmo que eles não demonstrassem nenhuma intenção de me seguir. Não sabia por que os chamava assim; a palavra “matemáticos” simplesmente surgia na minha mente, acompanhada do medo, sempre que os via.

A cidade aparentava ter sido um lugar próspero há uma grande quantidade de anos. Agora não passava de arranha-céus desolados, pichados, onde nada funcionava como deveria, eternamente banhados pela luz de um sol que nunca deixava o horizonte. Sempre havia luz, mas nunca uma luz forte como a do meio dia. As sombras também não se espalhavam totalmente, permaneciam esticadas e fantasmagóricas naquele dia agonizante que se recusava a morrer.

Eu nunca trabalhava, comia ou dormia. Não sentia nenhuma destas pequenas necessidades, apenas vagava aleatoriamente por não possuir quaisquer memórias além da vida ali. Não sabia por que tinha ido parar lá, nem quando, nem como. Apesar disto, demorei em perceber que nada daquilo podia ser real. Tudo parecia tão normal, tão corriqueiro, para todos, que eu só conseguia concluir que se tinha alguma coisa errada, o erro estava em mim. Permaneci assim até ler a mensagem e começar a desconfiar perceber que realmente havia algo errado e não era apenas comigo.

A mensagem estava num outdoor. Só podia ser lida de cima de um viaduto particularmente alto e semidestruído. Não me lembro do motivo de tê-lo escalado. No fim das contas, acho que só o fiz porque era alto.

Talvez.

Ações nascem de vontades, na maioria das vezes, inexplicáveis. Motivos são apenas desculpas que contamos a nós mesmos e a outros para justificar nossos atos.

No outdoor, pichado com tinta laranja, havia isso:

“É sempre assim aqui. Sempre um ocaso sem fim. Nunca percebeu, não é mesmo? O sol nunca se vai totalmente e nunca renasce em poder neste maldito crepúsculo eterno. A porcaria de um lusco-fusco laranja pálido pintando de sonhos tortos os que caminham deitados.”

Caminham deitados.

Foi esse trecho que me fez coçar a nuca. O fato do sol nunca se pôr eu já tinha percebido, achava que se tratava de algum fenômeno climático ou algo parecido, talvez até algo positivo. Mas aquilo me pegara de surpresa. O outdoor me fez notar que tudo que eu fazia – andar, correr, pular, subir escadas –, fazia deitado.

É.

Só podia ser um sonho.

Depois que se percebe que um sonho é um sonho, torna-se mais fácil o despertar. Os próprios sonhos parecem possuir mecanismos que impedem as pessoas que sabem de continuar dentro neles. Saber que se está num sonho pode ser o suficiente para ser expulso. Foi quase isso que aconteceu comigo quando aquela ficha caiu completamente, algum tempo depois. Foi na primeira vez que vi a janela âmbar. Ela surgiu na parede descascada de um lugar desolado que um dia podia ter sido um bar. Desfocada de início, foi se tornando cada vez mais nítida. A janela se contrastava de todo o resto, parecia vinda de outro mundo.

E vinha mesmo.

Fui até ela e, após um momento de hesitação e estranha excitação, olhei através. Uma luz forte me incomodou, cegou, e, por fim, me tirou os sentidos. Quando finalmente consegui enxergar estava no quarto, com todas aquelas máquinas de hospital com seus displays esverdeados e a janela âmbar, suja de poeira e teias de aranha, na parede, à minha esquerda. Não sei se âmbar era a cor do vidro da janela ou da luz que o atravessava.

Gritei.

De susto e de dor. Veio o enfermeiro que me administrou a droga que me mandou de volta para cidade do sol poente. Depois disso não consegui acordar nem ver a janela âmbar por um tempo. Permaneci na cidade dos sonhos, arrumando toda coragem que dispunha para saltar do topo do prédio em ruínas mais alto que encontrei, a fim de acordar e encontrar a realidade que havia atrás da janela.

Saltei.

Cai e me choquei de cara com o chão. A dor foi real, mas quando abri os olhos ainda estava caindo, desta vez para cima, com a mesma velocidade que caíra para baixo, sem nenhum ferimento aparente. Por fim voltei ao mesmo local do qual pulara, já sem dor.

A droga.

Enquanto o efeito do remédio durasse, nada que eu fizesse me tiraria dali.

Depois de um longo período de quase desespero, comecei finalmente a aproveitar. Se tudo aquilo era um sonho induzido, o que me impediria de fazer o que quer que fosse dentro dele? O que me impediria de voar? Mal tinha acabado de formular este pensamento e já estava flutuando, vendo a desolação da cidade ficando cada vez mais longe, um grande rio que cortava a cidade, e o horizonte, sempre da mesma cor, contrastado pelo contorno dos edifícios.

Comecei a voar na direção oposta ao pôr do sol e para minha surpresa descobri que a cidade tinha um fim, apesar de ser estonteantemente grande. Então havia um deserto, e mais deserto com areia e mais nada, e então a cidade novamente, com o sol inesperadamente à minha frente. Esta descoberta me levou de volta a o desespero.

Estava irremediavelmente preso.

Comecei a cair e cair, até me ver despencando de vez no rio que cruzava a cidade. Não me surpreendi ao constatar que o rio estava poluído. Tentei me manter na superfície à medida que engolia água suja e minha visão ia ficando turva. Em minha confusão, afogando-me em água e em medo, avistei nitidamente a foto de um rosto impressa numa enorme placa na lateral de um dos edifícios. Era a mais bela visão que já tinha tido naquele lugar. A única coisa que parecia saudável e sã naquela loucura. Era o rosto de uma mulher, que chorava aflita, mas ainda exprimia uma beleza esmagadora com seus olhos cor de âmbar, a mesma cor da... Então a visão tornou-se instantaneamente a janela.

E eu estava deitado, como sempre estivera, aliás. E havia paredes. E o quarto, e os aparelhos médicos que provavelmente estavam me mantendo vivo. E a dor. Mais uma vez não fui capaz de me conter. Comecei a gritar. Um alarme começou a soar, assim como da última vez... e, assim como da última vez também, os enfermeiros apareceram junto com o anestesista e a droga que me mandaria de volta àquele estranho sonho lúcido.

Foi ai que o processo passou a se repetir. Não sei ao certo quantas vezes acordei e voltei a dormir e sonhar acordado. Mas toda vez que acordava no quarto, me encontrava mais desperto, mais vivo que antes, e com menos dor. Finalmente, numa dessas vezes, na qual me vi mais desperto que nunca, a dor ainda presente, mas mais branda, consegui remover os cabos que estavam ligados ao meu corpo, pular da cama e correr para o corredor. Pessoas comuns me olhavam assustadas. E pessoas de batas, máscaras cirúrgicas e luvas, corriam em minha direção.

– Segurem esse homem! – Uma voz gritou.

Corri através de um corredor com uma porta dupla emanando uma luz alaranjada no final e lâmpadas fluorescentes piscando acima. Concentrei toda minha vontade e determinação naquela porta. Se eu conseguisse atravessá-la, tudo ficaria bem, pensava. Lá estaria as respostas para todas as minhas dúvidas. Quem eu era, além de um personagem de um sonho estranho com um péssimo enredo?

Um guarda vestido de preto pôs-se em minha direção, me esquivei e saltei sobre uma maca onde um paciente era transportado, falando: – Janelas são apenas janelas; janelas e nada além de janelas... – febrilmente, com os olhos vidrados no teto.

Atravessei a porta dupla e me vi num jardim onde pessoas saudáveis e bem vestidas passeavam tranquilamente. Tudo parecia calmo e com tons serenos, mas com uma vida pulsante que era a antítese do cenário do meu sonho. Meu sonho... a foto da mulher que chorava...

Inúmeras imagens começaram a passar por minha mente num velocidade cada vez maior, como se o filme de minha memória, antes em pausa, começasse a ser exibido em modo acelerado.

A janela.

A cidade.

O pôr do sol pintando tudo de dourado, alongando as sombras.

A mulher.

A beleza dela.

A tristeza dela.

A tristeza dela começou a me preencher e afogar como uma onda selvagem engolindo uma caverna vazia. Cai de joelhos, tremendo, sentindo um frio que parecia congelar cada célula do meu corpo. Deitei no chão, chorando, estremecendo, atordoado... até que adormeci.

Desta vez sem sonhos.

Quando acordei estava novamente na sala da janela âmbar. Mas desta vez amarrado à cama e havia um homem que, pela vestimenta, se tratava de alguém importante. Ele disse ser meu psiquiatra e pediu para eu contar tudo o que conseguisse lembrar. Depois do que eu experimentara, não tinha como esconder muita coisa dele. Era a primeira pessoa com quem eu estava tendo uma conversa séria desde... eu não lembrava.

Contei sobre a cidade, sobre o deserto, sobre a dor. Sobre a falta de memórias e como elas aparentemente tinham resolvido voltar todas de uma vez. Ele não me falou muito, mas disse que eu estava num instituto especializado em saúde mental, o que não me surpreendeu. Mas no instante em que ele disse que eu era escritor, uma memória explodiu:

Tinta spray laranja.

O outdoor.

A mensagem sendo escrita por uma mão à minha frente..

A minha mão.

Então ela fazia outro tipo de movimento, com outro tipo de objeto.

A dor intensificou-se bem acima do ponto que eu seria capaz de suportar, tudo que eu queria era voltar para...

A segurança do meu sonho e...

Aqueles olhos úmidos...

O lugar onde eu podia voar e...

A faca de cabo âmbar em minha mão...

O deserto e...

O grito...

A pôr do sol sem fim e...

Do vestido laranja desabrochavam sangrentas pétalas vermelhas...

A paz daquela ausência de memória.

Os olhos vidrados no vazio.

A porcaria do lusco-fusco laranja pálido pintando de sonhos tortos os que caminham deitados.

Em meio aos meus gritos o psiquiatra chamou o homem que me trouxe novamente a droga dos sonhos.

Mas antes de voltar para aquele mundo onde o sol nunca se ia e nunca renascia em poder, ouvi e vi uma conversa do anestesista com o psiquiatra.

– Ele me pareceu mais consciente desta vez... – Disse o anestesista.

– Relaxe. – Respondeu o psiquiatra, então pôs uma cartola na cabeça, e, sério e casual, pegou um guarda-chuva de algum lugar que não vi. – Se esquecerá de tudo, assim como das outras vezes.

Aquelas palavras me atingiram como flechas no íntimo e, num insight, me lembrei de todo o cenário, não fragmentos, mas a grande pintura, todas as memórias conectadas. Lembrei-me de todas aquelas outras vezes. Mas já não me restava forças.

Gritei:

– De novo não!

Mas já estava numa cidade desolada, banhada pela luz de um pôr do sol sem fim, perguntando-me onde estava, de onde tinha vindo, e por que diabos tinha gritado aquilo.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 20/05/2015
Reeditado em 21/05/2015
Código do texto: T5248404
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