EUROPA
Olhava pela vitrine da enorme cúpula. Como sempre Júpiter projetava-se majestoso, ocupando praticamente todo o horizonte. Era um espetáculo de tirar o fôlego, mas quase todos os 120 habitantes da estação evitavam essa área. Engraçado é que havia sido concebido exatamente como espaço de lazer. Mas as pessoas não queriam ser lembradas o tempo todo de sua insignificância e do perigo onipresente. Um enorme desperdicio de material, pecado imperdoável na engenharia espacial. Era ainda possível errar! Esse pensamento lhe trouxe um largo sorriso involuntário.
Sabia que essas emoções eram completamente inadequadas. Mas não era exatamente o motivo por que estava ali? A grande catástrofe do século XXI reduzira a população à alguns pouco milhões. E, como previam os idiotas exultantes do séc XX, as máquinas tornaram o ser humano inútil. Um paraíso de fartura e ociosidade, maior do que os sonhos mais delirantes dos comunistas do séc XIX! Mas o que fazer com aqueles que não conseguiam viver apenas pelo prazer de viver? Na época dos grandes impérios europeus os desajustados e amantes de aventuras zarpavam para a Ásia e África. Hoje vêm para o espaço.
Talvez o grande problema seja que ele tentou. Casou, teve os dois filhos permitidos, vigiava o trabalho de uma máquina que limpava lixo radioativo do mar. Simplesmente mais um, uma peça bem lubrificada de um mecanismo calibrado soberbamente. E, suportando tantos anos o dilema de Gauguin, o sonho ou as responsabilidades, finalmente tomou a única opção possível aos filhos da loucura. Há 5 anos não tinha notícias da sua família.
A maioria dos seus colegas não tiveram que romper laços tão fortes. Mas quase todos amavam não estar "interligados" o tempo inteiro. Ter que tomar decisões e ser responsável por elas. O inesperado ser a única certeza. E em nenhum lugar isso era tão forte e claro como em Europa.
Segunda maior lua de Júpiter, estando assim sobre a influência de suas monstruosas gravidade e campo magnético. Qualquer falha era morte certa. A superfície do satélite era uma imensa crosta de gelo flutuando sobre um oceano de água salgada e ácida. E se essa merda se parte e essa porra toda afunda? Ninguém falava sobre isso, mas não havia um que não tivesse pensado pelo menos uma vez na ideia.
Mas isso não o preocupava nem um pouco. Na verdade se perguntava constantemente como conseguira viver sem isso. Sua função era a pesquisa do enorme oceano abaixo da crosta com um mini submarino. Batizara o seu de Kazuo Sakamaki, primeiro prisioneiro de guerra japonês na Segunda Guerra Mundial, único tripulante de submarino que sobreviveu ao ataque à Pearl Harbor. Era visto como uma brincadeira de mau gosto, já que seis já haviam desaparecido em missão.
E qual era essa designação tão importante? Achar vida fora da Terra. Cacete, o único serviço decente que sobrara lá era justamente descobrir as formas que sobraram e por que. Se não fosse a maior reserva de água do sistema solar (3 vezes mais que a Terra), com o maior campo gravitacional depois do Sol para fazer de catapulta, ninguém estaria ali. Mas já que estavam... Era a maior esperança de achar alguma forma de vida de origem extraterrestre no sistema solar e uma parte importante de todo o lugar se dedicava a encontra-la.
Ou destruí-la. Foram-se à muito as idéias ingênuas do início da exploração espacial, aonde se mandava discos de ouro com informações valiosas sobre a humanidade para o infinito. Ou se destruía satélites caríssimos para não ter perigo de contaminação. Tinham um lindo estoque de bactérias extremófilas especialmente preparadas para iniciar a terraformação do planeta. Coisa banal nos dias de hoje. As nuvens de Vênus já haviam mudado de cor e a temperatura pôr lá andavam diminuindo rapidamente. Encélado, lua de Saturno, já as havia recebido. E seus aspectos espectrográficos prometiam. Mas ainda imperava o código de nada fazer antes da certeza absoluta de vida autóctone.
Sua mente viajava por essas idéias quando recebeu o aviso de embarcar. Rumou para o deque a passos lentos. Como seria a vida antes dos celulares serem embutidos nos cérebros? Na Terra ele não parava nunca, conversas interminaveis sobre nada, sempre a mesma futilidade, sempre, sempre... Amava o silêncio de comunicações do espaço. Amava poder pensar!
Vestiu seu traje. Embarcou no mini-submarino. Foi recebendo as informações das correntes maritimas da área enquanto checava os equipamentos. Todos os que tinham desaparecido haviam rumado para o leste por um desfiladeiro com leituras espectrográficas condizentes com vida. Pretendia ir ao mesmo lugar, mas de forma diferente. Ao invés de se aproximar por qualquer lado, como fizeram seus colegas. Iria navegar logo abaixo da crosta de gelo e faria uma descida vertical à toda. Possuía um computador de bordo independente do central (CCE), diferente dos outros. Chamava-o de Matilda e sua voz soava em sua mente como a de uma governanta inglesa dos filmes antigos.
Até o local iam se quatro dias de viagem, com as turbinas nucleares em velocidade de cruzeiro. Com força total, um dia e meio. Só que ele analisara os relatórios recebidos dos desaparecidos à exaustão, e das outras incursões também. Faria exatamente o contrário. Surfaria em uma corrente para o outro lado e, de corrente em corrente, chegaria não só pela altura contrária, como também pelo lado. Tudo isso bem devagar. Até o ponto em que arremeteria ao fundo. Gostava do seu plano de uma forma romântica. Com o mini-submarinos não sendo controlado pelo CCE podia fazer navegar manualmente e ser realmente o capitão de seu navio. Calculava em dois meses o tempo de sua travessia, o que realmente levou. Sua única distração, além do sono, foram antiqüíssimos filmes sobre submarinos.
Ao chegar no local, desceu com toda velocidade possível. Ao chegar aos 57 quilômetros de profundidade teve uma visão magnífica. Em um extenso vale, cheio de géisers, um enorme tapete de matéria orgânica! O espectrômetro simplesmente foi a loucura, não conseguindo registrar tão amplo espectro de cores. Mas o que mais o estarreceu foram os seis mini-submarinos ancorados em fila indiana ao lado da cordilheira esquerda, a uns dez quilômetros da entrada sudoeste da formação.
Matilda e ele freneticamente procuravam armazenar todos os dados possíveis. Ao mesmo tempo tentavam restabelecer contato com as outras naves ali ancoradas. Ao chegarem a 20 km da formação, sem nenhum aviso, ele foi retirado do seu estado de animação e ansiedade para uma paz plena. Como estivesse sendo lavado, todas as suas culpas e dúvidas desapareceram. Toda a extensão do vale se projetou sobre sua consciência. E também toda a vida, pensamentos e sensações de seus seis colegas. E tudo aquilo o convidava a se entregar. Um canto fe sereia que não era simplesmente ouvido, mas invadia todo o seu ser!! O seu último grito, enquanto era engolfado naquela plenitude, foi:-"Não!! Nada vale deixar de ser eu!!!".
Acordou quatro dias depois. Na verdade para ele tanto fazia que fossem quatro horas ou quatro décadas. Perdera completamente a noção do tempo. Neste momento podia chegar na estação em duas horas. Demorou dois dias. Descobrira o grande mistério!!! A vida em Europa se desenvolvera de forma a ser apenas um único ser. Tudo o que tivesse consciência e se aproximasse seria engulido, perdendo toda a individualidade. Ele só havia escapado pelas ordens estritas que dera à Matilda de reverter o curso se ele começasse a apresentar comportamento ou EEG anormais. Meu Deus!! Era incrível!! Era a felicidade plena! Toda a promessa das religiões do oriente antigo!
Cinco dias depois ele voltou ao mesmo local. Desta vez pilotava o maior submarino da frota. Arremessou contra o lugar todas as bombas e colônias de bactérias geneticamente preparadas para aquele ambiente que conseguiu. Os seis tripulantes anteriores recobraram os sentidos e retornaram à base. Descreveram suas experiências na estação detalhadamente. A única forma de vida com origem fora da Terra conheceu seu fim antes de ser conhecida. Ele foi condenado à ser enforcado por insubordinação grave. A verdade era que não havia nome para seu crime. Seu último pensamento, antes que fosse aberto o cadafalso:-"Eu lhes salvei o pouco de liberdade que lhes resta, privando-os da felicidade! ".