Crônicas de pós morte
- Olha como parece estar em paz, - disse um.
- É verdade, parece estar dormindo, - respondeu outro.
Eu não entendia bem quem estava falando e qual era o assunto, quando tentei ver quem falava, cai. Passei pelo caixão, pela mesa sob a qual estava apoiado e parei no chão. Levantei-me, não estava machucado e só então percebi, meus amigos em torno de um caixão e dentro, meu corpo sem vida. Até que estava bem apresentável dentro do caixão, melhor do que aqui fora, nu. Comecei a contabilizar quais amigos estavam presentes, quem da família veio velar.
No minuto seguinte algo me puxou, como um grande aspirador, fui sugado. A sensação era de estar voando, passei por nuvens e entrei na escuridão do espaço, planetas e sois passavam por mim a uma velocidade impressionante. Parei finalmente em um ambiente pouco iluminado, chão de mármore branco, sem nenhum móvel. Apenas havia um enorme rottweiler sentado sobre as patas traseiras, que me olhava fixamente. Veio um pensamento em minha mente: “se eu já estou morto, posso morrer novamente ou então ser machucado?”
- Claro que pode morrer, - disse o rottweiler. - Você apenas passou uma etapa. Inúmeras ainda virão.
- Quem é você? – perguntei assustado.
O rottweiler piscou e transformou-se. Num instante era um homem velho, cabelos e barbas brancas, com uma túnica alvíssima, sentado em um trono.
- Deus? Falei timidamente.
- Quem mais seria? Prefiro a forma do cão, é mais confortável, mas sempre acontece isso, ficam com medo ou desacreditam de quem sou.
- Oh, Senhor, não sou digno que entreis em minha casa, mas dizei uma só...
- Pare... que coisa estúpida é essa? Por favor, não me venha com esse palavrório idiota de religião. Isso me enche o saco.
- Mas é a sua religião Senhor.
- Não, não é, é a religião que vocês fizeram em meu nome, se eu quisesse, eu mesmo criaria minha religião, e não teria tantos absurdos como nas religiões que vocês criaram. Como é teu nome mesmo?
- O Senhor não sabe o nome de seus fieis?
- Claro que sei tudo, seu impertinente, mas muito mais prático perguntar do que acessar um banco de dados de aproximadamente oito bilhões de fichas, não acha?
- Oh Senhor, Deus de amor, Deus de todas as coisas do céu e ...
- Estou avisando, esta é a segunda vez, ou você para com isso ou eu paro com você. Porque é que vocês desse terceiro planetinha são tão obcecados por religião?
- Estou no céu? Aqui é o céu? – momentaneamente parei de falar ao reparar em minha nudez. – O Senhor não teria ai uma tunicazinha? Não posso louvá-lo estando envergonhado.
- Chega, você é um porre. - O velho falou, e ao final de suas palavras tudo desapareceu e me vi em outro ambiente.
Estava em uma sala luxuosíssima. Bem iluminada. Nas paredes estantes de madeira de lei cheias de tomos com aparência muito antiga, que pela distancia não podia ler os títulos. Um homem, que deveria ter cerca de uns quarenta e oito anos, belíssimo, grisalho nas têmporas, num elegante terno lia sentado em uma poltrona de couro. Na mesinha ao lado, um copo de whisky e um charuto acesso no cinzeiro, mais distante, o crepitar do fogo na lareira.
Ele levantou-se e dirigindo-se para mim: - não acredito, Ele me mandou mais um crente.
- Quem..., quem é você, - balbuciei, prevendo a resposta.
Ele não respondeu, apenas me olhou e nesse instante seus olhos brilharam numa tonalidade vermelha que me deixou desesperado. Cai em seus pés.
- Não, o diabo não, - gritei. Ele me mandou para o inferno.
- Levante-se homem, pare de chorar, largue do meu pé. Tenha um pouco de dignidade.
- Mas você é o diabo.
- Prefiro ser chamado de Lúcifer, é meu verdadeiro nome.
- Então estou no inferno, vou queimar por toda a eternidade, - desesperei-me novamente.
- Com um olhar de tédio Lúcifer disse: - não entendo vocês humanos, tudo tem que ser grandioso, sempre é eternidade, infinito, pare com essa mania de grandeza. Onde está o fogo que tanto o apavora? Esta vendo algum além do que esta na lareira?
Um pouco mais calmo arrisco a perguntar: - porque Deus me mandou para cá?
- ei, ei, não falamos o nome Dele aqui, cada qual em seu quadrado, certo? Respondendo sua pergunta, quase posso afirmar que Ele o mandou porque você encheu seu divino saco. Nesses últimos milênios ele anda tão sem paciência, não sei o que esta acontecendo.
- Desculpe seu Lúcifer, mas se aqui é o inferno, é um local de expiação? Vou ficar por aqui pagando meus erros?
- Vocês não vão compreender nunca. Somos adversários, eu e Ele. É tudo um jogo, um aperfeiçoamento. Não tem essa de fogo eterno, expiação. E você tem que ser direcionado ao céu ou inferno, ponto pra Ele ou ponto pra mim, mas como ultimamente andamos, eu e Ele sem muita disposição para conversas, você foi rejeitado pelos dois. No momento não há espaço para prolixos. Adeus.
Novamente fui movido. Agora me encontro numa pradaria. Uma multidão encontra-se também aqui. Homens e mulheres conversando. Alguns trazem adereços, como óculos ou chapéus, mas todos sem exceção encontram-se nus. Pergunto a um pequeno grupo, em que lugar estamos.
- “Devemos julgar um homem mais pelas suas perguntas que pelas respostas” (1).
– ora, Voltaire, - replica James Joyce – “Ninguém presta à sua geração maior serviço do que aquele que, seja pela sua arte, seja pela sua existência, lhe proporciona a dádiva de uma certeza” (2), logo, pois, responda ao moço.
- Não importa onde estamos, - fala um senhor em inglês arcaico, - “Eu aprendi que todos querem viver no topo da montanha, mas toda felicidade e crescimento ocorre quando você esta escalando-a”(3).
- Alguém aqui pode falar algo sensato? Bradei.
O senhor de bigodinho, falando em inglês arcaico continua: “Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo isso não tem muita importância. O que interessa mesmo não é à noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado.” (4)
Agora entendi o que o capeta falou, esse não é o tempo dos prolixos. - Concordo com você, - falei ao inglês de bigode e cavanhaque: - “há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia” (5).
1. Voltaire
2. James Joyce
3, 4 e 5. Shakespeare