Tudo Aquilo pelo Qual Vale a Pena Viver e Tudo Aquilo pelo Qual não Vale
Tudo Aquilo pelo Qual Vale a Pena Viver e Tudo Aquilo pelo Qual não Vale
A escuridão parecia infinita. Avançava, avançava, avançava e ela não terminava. Até que se tornou palpável. Uma luz começou a surgir, ténue, a delinear as formas de folhas e ramos de uma densa vegetação que ele afastava vigorosamente, penetrando no mar verde. De repente, afastou as últimas ramadas como se de uma cortina se tratasse e uma intensa luz branca feriu-lhe os olhos.
Tinha chegado a uma clareira. Dispostas como crianças em redor de uma fogueira, cinco casas idênticas circundavam uma praça pavimentada. Todas tinham jardim à frente e atrás, sem cercas, “à americana”. Nos jardins não haviam árvores, arbustos ou flores. Apenas relva. Talvez não devesse chamar-lhe jardim mas sim apenas relvado. Tinham relva à frente e relva atrás. Dir-se-ia que haviam construído casas no meio de um campo de golfe. No espaço que poderia ter sido ocupado por uma sexta casa, tinha uma estrada que se estendia até onde a vista alcançava, de forma perfeitamente rectilínea, ladeada de ambos os lados por casas exactamente iguais às da praça. O denso matagal, como uma muralha verde, delimitava tudo isto. Não havia uma única elevação visível.
Na primeira casa à sua direita, a primeira também da praça circular, um homem, cerca de 30 anos de idade, aparentando uma excelente forma física, empurrava uma máquina de cortar relva, cortando o que já parecia um relvado impecavelmente cortado.
O homem esboçou um grande sorriso e disse calorosamente:
— Basílio! Então, como estás? E o pessoal do escritório? Está tudo bem por lá? O chefe ainda continua a dar-te na cabeça?
— Está tudo bem Saraiva. — respondeu o Basílio.
— Vou fazer um churrasco na minha casa. Aparece.
— Aparecerei.
Dito isto, avançou para a frente da segunda casa. Dentro desta, podia ver através de uma janela uma cena de pequeno almoço. O Saraiva, sentado na ponta de uma mesa, lia um enorme jornal. Uma mulher, sensivelmente da sua idade, mastigava uma tosta em silêncio na outra ponta. Entre eles, uma menina, cinco anos talvez, com o cabelo aos caracolinhos, extremamente doirados, exprimia uma intensa alegria infantil, falando e rindo sem parar.
Na terceira casa, o Saraiva estava em frente à porta da frente, com ar de quem está prestes a sair para o trabalho. Despedia-se de uma jovem, que parecia ter entre 18 a 20 anos, com um beijo apaixonado. Os dois cumprimentaram o Basílio e o Saraiva perguntou-lhe se queria boleia.
Ouviu ruídos nas traseiras da casa seguinte. Avançou até lá. O Saraiva estava a assar carne, virando-a com o espeto que brandia na mão direita, enquanto segurava uma cerveja na esquerda. Uma mulher de meia idade olhava para ele com um ar embebecido e maternal enquanto lhe dizia que devia em vez de carne, estar a assar sardinhas que lhe faziam melhor à saúde. Um pouco ao lado, sentado num sofá no meio do relvado, um homem com a idade do Saraiva, bastante parecido com ele também, assistia a um jogo de futebol numa televisão antiga, colocada num móvel em frente dele. Soltava alguns impropérios dirigidos ao árbitro do jogo, remoía considerações sobre a performance da sua equipa, dava alguns murros nos apoios dos braços do sofá e por vezes levantava-se com as mãos no ar a festejar um golo.
O Basílio aproximou-se do grelhador onde o carvão ardia num laranja vivo.
— Basílio! Ainda vem que vieste! Olha-me só este dia. Amanhã vou à casa da minha avó. Vive junto à praia, sabes? Vou lá todos os Verões. Tenho lá muitos amigos. Tu és o meu melhor amigo, também podes vir.
O Basílio desviou alguns pedaços de carne com a mão, levantou a grelha do grelhador e pegou em duas pedras de carvão incandescentes sem exprimir um mínimo de dor. O Saraiva ficou a olhar para ele, um pouco surpreendido, mas não completamente.
— Saraiva, tu tens 58 anos. A tua avó já morreu. Tu tiveste um ataque cardíaco e foste declarado clinicamente morto à alguns minutos atrás, mas o teu cérebro não morreu. A tua consciência ainda está desperta. Eu não me chamo Basílio, chamo-me Fonseca e vim para te trazer de volta ao mundo dos vivos. A tua avó já morreu, o teu pai também. Mas a tua filha ainda está lá assim como a mulher com quem casaste e viveste. Tens a sorte de ainda teres a tua mãe viva. Tens também amigos como o Basílio. Talvez, não sei, a mulher que amaste seja viva também. Basta teres a vontade de viver, realizares que isto é apenas um sonho e despertares o teu corpo.
Um clarão intenso ofuscou momentaneamente o dr. Fonseca. Começou aos poucos a discernir o tecto e as lâmpadas. Uma amálgama de sons e de vozes na sala. O “bip...bip...bip..” do monitor multiparamétrico. “O paciente voltou a ter pulso...”. “O doutor está a acordar...”. “...sinais estáveis...”.
Sentou-se na borda da cama. Fechou os olhos enquanto passava a mão pela testa. Retirou da cabeça um estranho capacete e pousou-o ao seu lado. O capacete parecia um daqueles capacetes de ciclista, com a particularidade de se prolongar um pouco mais atrás, tapando a nuca e o pescoço. Estava ligado em diferentes pontos a uma enorme diversidade de fios de todas as cores. Parecia que o capacete tinha uma longa cabeleira. Essses fios estavam ligados a um outro capacete que estava na cabeça do Saraiva. Este era maior, cobria-lhe completamente a cabeça. Parecia um daqueles enormes capacetes dos salões de cabeleireiro.
— Estás bem pai? - perguntou-lhe um homem que aparentava ter cerca de 25 anos, enquanto segurava um grande caderno e tirava vários apontamentos.
— Estou...estou...Não, não, não, não aumentem a quantidade de oxigênio ao paciente! Pode ser tóxico para o cérebro!
— Mas ele precisa de respirar bem para recuperar!... — disse uma enfermeira meio assustada com tudo aquilo.
— Mantenha o nível o mais baixo possível durante a próxima hora. Depois vá aumentando gradualmente.
— Podes ficar deitado um pouco mais. Estás acordado à muitas horas. — disse o filho
— Não é preciso. As minhas coisas?
— Estão aqui comigo. — respondeu prontamente uma médica. — Isso que vocês fazem é extraordinário. Não tem medo dr. Fonseca?
— Não há nenhuma razão para ter medo. Não há nenhum perigo.
A médica tirou do bolso da bata uma carteira e um telemóvel, passando-os imediatamente. O dr. Fonseca percorreu o ecrâ do aparelho com os dedos. Mandou o filho arrumar os aparelhos e retirou-se do quarto, buscando privacidade. Quando voltou verificou num relance os aparelhos para ver se não faltava nada dizendo:
— Põe tudo na carrinha. Vamos ao Porto.
— Ao Porto? Acabaste de fazer uma Intervenção! Devias descansar!
— Descanso na carrinha. Durmo um pouco na viagem.
A carrinha abandonou Lisboa em silêncio. O filho, que conduzia, queria permitir ao pai dormir um pouco, não o distraindo. Este, no entanto, parecia sem sono. Contemplava pensativo, pela janela, a paisagem que ficava para trás. Ou não contemplava nada, estava apenas fixando o infinito sem observar nada, rebuscando desta vez a sua própria consciência. Ninguém poderia saber.
— Não devias dizer o que disseste. — cortou o filho desta maneira o silêncio.
— O quê? — respondeu o dr. Fonseca como desconhecendo aquilo a que o filho se referia, embora a sua expressão indicasse um certo enfado por parecer adivinhar a conversa que se sucederia, não sendo esta previsivelmente a primeira vez que o assunto surgira e fora discutido.
— Que não existe perigo nenhum !
— E não existe.
— Sabes bem que existe. Se o paciente morrer durante a Intervenção, se for ele a cortar a ligação neurológica, o teu cérebro, a parte física do teu cérebro, que está a experienciar o mesmo que o paciente, pode julgar que está a morrer, ordenando ao teu corpo que se desligue. Não sabemos o que acontece a partir dali. Podes perder a consciência de ti, que estás numa Intervenção, que podes voltar.
— Essa é uma hipótese muito remota. Nunca aconteceu. Nós não fazemos Intervenção em pacientes que se tentaram suicidar. E mesmo esses...As pessoas na sua esmagadora maioria querem viver. Para além disso é para isso que lá estás, para me ir buscar se algo assim acontecer.
— Não sei...Não sei...— disse o filho abanando a cabeça em desacordo.
Conduziu mais uns minutos sem dizer nada.
— Então? O que viste? — perguntou finalmente.
— O que vejo durante a Intervenção deve fazer parte do sigilo entre médico e paciente.
— Vá lá. Também sou médico. E um dia posso precisar de entrar. Tenho de saber que tipo de coisas posso encontrar lá.
— Bem, —anuiu o dr. Fonseca— a Projecção post-mortem deste sujeito, João Saraiva, sexo masculino, caucasiano, cinquenta e oito anos de idade, um metro e setenta, noventa quilos de peso, declarado morto por paragem cardíaca, não divergiu da norma. Estava com as pessoas que ama e com as pessoas que amou. Projectou um bairro inteiro, parecia um condomínio privado, casas todas iguais. Ele parecia viver em todas. Na primeira acho que vivia sozinho. Na segunda estava com a mulher e a filha. Na terceira vivia com uma mulher jovem, não mencionada por ninguém, provavelmente um amor da juventude. Na última que visitei estava com os pais. O resto não vi mas devia ser semelhante. Ele começou a falar da sua infância na casa da avó, ao invés de projectá-la. Normalmente é o tipo de sinal que precisamos para despertar o paciente. Quando começa a falar em ir para outro lugar, em sair da Projecção. Aí intervimos. A sua consciência começa a realizar o que está a acontecer e ele volta.
— Foi só isso então?
— Só isso. A casa era bonita. Pergunto-me se terá realmente morado numa alguma vez ou se seria apenas uma Aspiração. De qualquer forma não vai ser fácil voltar ao seu miserável e apertado T0 onde vive sozinho em Lisboa.
— Vês? É precisamente por este tipo de situações que questiono aquilo que fazemos. É por isso que os pacientes enlouquecem. — disse o filho num arremesso libertando um tema que obviamente o apoquentava e que por certo já tinham discutido mais que uma vez.
— Ninguém enlouqueceu…
— Ninguém enlouqueceu? Ok. Vamos rever os números. Das 16 Intervenções que fizemos até agora, não contando com a de hoje, oito morreram nos meses seguintes…
— Obviamente alguns desses indivíduos tinham mazelas físicas demasiado graves. Estamos a seleccionar os pacientes mais cuidadosamente agora.
— ...seis deles, já podemos concluir pelas observações e análises feitas posteriormente, manifestaram sinais evidentes de depressão e diminuição das capacidades cognitivas…
— Sim, mas estão vivos. Estamos a aperfeiçoar e a afinar o processo de hibernação e refrigeração. Esses sintomas são derivados a algumas pequenas falhas.
— ...e os restantes dois, suicidaram-se.
— …
— Não sei se isto está a resultar.
— Nunca ouviste falar de tentativa e erro? Não vos ensinam nada na faculdade? Estamos a reanimar os mortos! Não podemos testar isto com macacos! Estavas à espera de quê? Flores pelo caminho? Reconhecimento? Fama? Achas que a investigação médica é um mar de rosas? Que a descoberta de curas é um milagre ou um acaso que ocorre espontaneamente? E que depois de acontecer todos são curados imediatamente vivendo felizes para sempre?Que não é fruto de experimentação, equívocos e erro? Que não à baixas pelo caminho?
— Nós não estamos atrás da cura para o ébola ou para o cancro. Nós estamos a fazer de Deus. Toda a gente tem de morrer.
— A fazer de Deus? Se as pessoas estiverem a morrer e tu não fizeres nada, aí sim, estás a fazer de Deus. O que disseste (e que eu vou fazer de conta que não ouvi) inviabiliza toda a Medicina. Deus quis que ele tivesse um acidente de carro, não o salvarei. Deus quis que ele tivesse uma doença crónica, não usarei de meios para o curar ou amparar a dor. O sujeito levou com uma bala no peito, todos têm de morrer, deixem-no penar. Já esqueceste o juramento que fizeste?
— Não. lembro-me que dizia: “Exercerei a minha arte com consciência e dignidade”
— Sim. E também:”Não permitirei que considerações de religião, nacionalidade, raça, partido político ou posição social se interponham entre o meu dever e o doente.”
— “A saúde do meu doente será a minha primeira preocupação”. E isso aplica-se ao que acontece após a Intervenção.
— Mas acima desse está “Guardarei respeito absoluto pela vida humana desde o seu início”. Nós não somos filósofos, sociólogios, teólogos, activistas ou padres de igreja para estar a debater se o mais importante é a vida ou a saúde. O nosso primeiro dever é a Vida. Só depois sim, procurar que o pacient tenha a melhor saúde possível. Não percebes a importância do que fazemos? Se tivéssemos à quinze anos atrás o que temos agora, a tua mãe ainda poderia estar viva, connosco.
— Não digas que fazes isto pela mãe, pelos pacientes ou pela Medicina. Tu fazes isto por ti.
— “Darei aos meus mestres o respeito e o reconhecimente que lhes são devidos”
Dito isto, virou-se para a direita, ajeitou um pouco o corpo e ficou fixado no infinito até adormecer.
— Pai! Acorda. Chegámos ao Porto. Em que Hospital o paciente está?
— Ele não está em nenhum hospital. Ele está em casa.
— Espera aí! O gajo está em casa? Tu sabes que não temos o apoio do Instituto de Medicina se realizarmos Intervenções fora de algum centro médico!
— Calma. Nós não estamos a roubar ou a matar. Não estamos a cometer nenhum crime. Estamos a salvar vidas. Segue em frente.
— E o que se passa com o tipo?
— Teve um acidente à uma semana atrás. Está ligado às máquinas em coma induzido.
— Não tens então nenhuma garantia. As hipóteses de ele ficar bem, se precisarmos de fazer uma Intervenção, mesmo que seja bem sucedida, são muito reduzidas. Concordámos que não faríamos Intervenções nestas condições.
— Eu sei que já falamos disso e concordamos. Ainda assim temos a pequena garantia de que este paciente pode pagar a melhor assistência médica possível. A melhor assistência que o Mundo pode oferecer. Talvez os médicos só precisem de um pouco mais de tempo. Talvez nós possamos providenciar esse extra de tempo. Reconheço que se fosse outra pessoa, um desconhecido, eu não faria a Intervenção. Mas isto é pessoal. Há muito tempo prometi-lhe que o faria se ele precisasse. Eu ouvi sobre o acidente. Estava à espera deste telefonema. Vira à direita.
— Prometeste? De onde conheces o gajo? Tens a certeza que é uma boa ideia?
— Conheci-o há muito tempo, no meu primeiro ano na faculdade de Medicina. Apesar do seu e do meu feitio, tornámo-nos amigos. Extremamente inteligente, acabou o curso com facilidade. Mas nunca teve vocação para ser médico. Exerceu algum tempo mas depois fundou a empresa que agora controla a maior parte dos hospitais privados do país. Tornou-se um homem muito rico. Virou uma espécie de playboy. Casou três vezes. Divorciou-se três vezes. Tem dois filhos do primeiro casamento e uma filha do último. Foi ela que ligou. Ele foi o primeiro a financiar a minha investigação. Ainda eras criança.
— E ele cortou o apoio?
— Não, eu é que me quis libertar dele. Como disse, ele não tinha vocação para médico. Ele pretendia tirar lucro disto. Um serviço proporcionado a quem pagasse bem. Isso iria condicionar todo o meu trabalho. Vira aqui. Chegámos. A casa dele é aqui.
Tivesse esta enorme mansão, mandada construir no final do século XIX por magnatas ingleses com interesses no vinho do Porto, sentimentos, teria por certo ficado ofendida por se haverem referido a ela simplesmente como “casa”.
Enquanto o dr. Fonseca tocava à campainha, o filho ficou um pouco para trás, admirando o edifício. Estava a adquirir uma noção mais real acerca da riqueza do sujeito.
Uma moça, aparentando ter cerca de 20 anos, veio à porta. Não era feia mas era desinteressante em contraste com tudo em redor. Tinha uns modos demasiado simples para o que se esperava encontrar no que parecia um outro mundo. Era demasiado normal.
— Olá. Eu sou o dr. Fonseca e este é o meu filho, também doutor Fonseca. Mas podes tratá-lo po Nuno. Onde está o Sousa?
— Está lá em cima, venham.
Um enorme quarto tinha sido transformado num quarto de hospital. Não faltava nada. O paciente estava imobilizado e ligado a vários fios e tubos. Ainda assim, a sua face apresentava um aspecto confiante, aquele semblante que os homens bem sucedidos no mundo dos negócios costumam apresentar. Se adquirem essa expressão por ser bem sucedidos no mundo dos negócios ou se este tipo de expressões ajudam a tornarem-se bem sucedidos homens de negócios, eu não sei. Era um homem grande e loiro. Parecia mais um escandinavo que um português. As máquinas indicavam que o seu pulso estava bastante fraco. Estava moribundo. um homem de bata branca, presumivelmente médico, olhava as máquinas e tirava notas quando os cumprimentou distraidamente.
— Nuno, organiza tudo. Pede para colocarem uma cama ao lado do paciente. Há algum sítio onde eu me possa estender um pouco? Gostaria de descansar um bocado.
— Pode-se deitar no quarto ao lado. A primeira porta à direita, no corredor.
— Obrigado. Podem dispensar o médico. Ele não pode fazer mais nada pelo paciente. Quando o paciente morrer, acordem-me.
E saiu.
— Perdoa o meu pai. Por vezes ser sempre sincero e ir sempre directamente ao assunto torna-se um defeito. Não é que ele não sinta nada por vocês e por toda esta situação. Simplesmente ele não vê nenhuma vantagem real, lógica e concreta em demonstrá-lo, antes pelo contrário, portanto não o faz. Mas posso assegurar-lhe que se ele não desse importância à situação, não estaria aqui.
— Não se incomode. Se o meu pai estivesse acordado, provavelmente também estaria a desculpar-me de uma ou outra inconveniência dele. Eu tenho passado mais tempo com ele estes últimos meses que durante toda a minha vida. Já atingi a maioridade, ele já não precisa de pagar a minha pensão, mas paga-me bem por este trabalho supérfluo de tomar conta desta casa e das suas pequenas coisas. A última vez que ele esteve acordado, pediu por entre dores, para ligar ao seu pai caso a situação piorasse. Os meus meio-irmãos não queriam que eu ligasse, mas eu liguei na mesma. Eles não se dão muito bem com o meu pai. Têm passado a semana à volta dos advogados. Mas o que vocês fazem exactamente? Reanimação? Não precisavam de ir buscar nada. Temos aqui desfibrilhadores e tudo o mais.
Nuno sorriu.
— Pode-se dizer que fazemos reanimação. Mas não esse tipo de reanimação. Ajude-me com as coisas e eu explico-lhe tudo. Ou pelo menos tento.
— Sem problema.
— Sabe, todos aqueles relatos de pessoas que escaparam miraculosamente à morte, “voltando à vida” no último instante e que afirmam terem vislumbrado toda a sua vida. como se acontecesse num ápice em frente aos seus olhos, ou terem percorrido um corredor escuro em direcção a uma luz, ou terem estado num espaço agradável com os seus entes queridos já falecidos? Bem, muitas pessoas atribuem conotações religiosas ou metafísicas a essas visões, mas existe uma explicação científica para isso. Basicamente, o que acontece é que apesar de o corpo estar clinicamente morto, não haver movimento respiratório ou batimento cardíaco, o cérebro não cessa funções imediatamente, entra em estado de hibernação, uma forma de se defender do processo de decomposição. É neste período que as pessoas têm as visões. esta espécie de capacete que levo aqui é como uma arca frigorífica em miniatura. Colocamos na cabeça do paciente e o cérebro é mantido a temperaturas negativas. Isto desacelera drasticamente a decomposição do cérebro e aumenta significativamente o período de hibernação, o que nos dá mais tempo para realizar a Intervenção.
— É isso que vocês lhe chamam? Intervenção? E como fazem para o paciente voltar? Chamam por ele? Dão-lhe choques? Um soro?
— Não. Usamos este pequeno capacete que está ligado ao capacete maior, usado pelo paciente, para estabelecer uma ligação neurológica. Entramos no “sonho” do paciente.
— Isso parece algo impossível! Vocês entram na cabeça de outra pessoa?
— Não, isso seria ficção científica . Os dois cérebros ficam ligados e trocam sinais entre si.
— Sinais?
— Mais concretamente impulsos nervosos eléctricos. Dois tipos de fenômenos estão envolvidos no processamento do impulso nervoso: os elétricos e os químicos. Nós só utilizamos a parte eléctrica. O cérebro comunica interiormente através de uma cadeia de impulsos. Comunica através de prolongamentos que enviam os impulsos, e que se chamam axiônios, e prolongamentos que recebem os impulsos, dentrites. Os capacetes fazem com que o nosso cérebro entre na cadeia de pensamentos do cérebro do paciente, mantendo no entanto a nossa consciência do Eu. ninguém entra na cabeça de ninguém, apenas existe troca de impulsos eléctricos. De facto é tudo electricidade. A genialidade de tudo isto foi identificar e filtrar as frequências e as intensidades eléctricas com que o cérebro trabalha.
— Parece-me inconcebível mesmo assim.
— Digamos que à 200 anos atrás diríamos a alguém que era possível trocar imagens e sons com qualquer parte do mundo instantaneamente. Que era possível filmar um evento na China e a população da Europa assistir em directo a tudo o que estava a acontecer, recebendo som e imagem no momento. A reacção de incredulidade seria semelhante à tua. No entanto agora sabemos ser completamente possível e comum.
— Isso é fantástico. É a descoberta do século! O teu pai vai ganhar o Nobel de certeza.
— Ele ainda não divulgou a descoberta. Estamos em fase experimental. Mas é genial, sem dúvida. É o que me leva a querer fazer parte disto. Isso e o facto de achar que o meu pai precisa de mim. Embora, na minha perspectiva, apesar de ser um homem da ciência, tudo isto seja assustador e moralmente questionável.
— E o que vocês vêem quando se ligam?
— Eu nunca me liguei, mas segundo o meu pai, os pacientes vêem aquilo que descrevem nos relatos de experiências no limiar da morte. Recordações do passado, situações marcantes, desejos do inconsciente não concretizados aos quais chamamos Aspirações, luzes etéreas, bem-estar, mas principalmente os entes queridos.
— Faz-nos pensar em tudo aquilo que é realmente importante, que vale a pena.
— Sim. E também em tudo aquilo que não é. — respondeu sombriamente.
Bip...Bip....Bip...Bip...Biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
— Rápido, acorda o meu pai! — disse Nuno, levantando-se de um salto da poltrona onde estava meio adormecido.
— Estou aqui! Prepara o paciente. — Disse o dr. Fonseca abrindo a porta de rompante.
— Desta vez talvez fosse melhor se eu entrasse. Ele não vai fazer nenhuma Projecção de ti. Ele conhece-te, vais ser tu mesmo. O paciente pode entrar em pânico,
— Não. Até é melhor assim. O Sousa não é homem de entrar em pânico. Quando me vir vai compreender a sua situação e será fácil e rápido trazê-lo de volta.
— Ok. Mas tem cuidado.
O negro completo do vácuo vai dando lugar a um azul escuro com alguma substância, azul este que fica progressivamente mais claro, espesso e maleável. Água, que o dr. Fonseca vai afastando como se estivesse a desviar cortinas de janelas. Sem demasiada pressa, não sentia necessidade de respirar. De repente deixou de sentir o vácuo, os seus pés assentaram em algo, pôde caminhar e finalmente emergir na habitual claridade branca e etêrea. Não havia nenhuma explicação científica para esta claridade tão cliché, mas o facto era que ela era igual em todas as Intervenções.
Estava numa praia. Não uma praia de postal, paradísiaca, com águas cristalinas, areias brancas, palmeiras e cocos. Apenas uma praia fria e ventosa típica do Norte de Portugal estendendo-se até ao infinito. Com os seus rochedos negros e inestéticos sargaços estendidos na areia.
Na praia estavam apenas um homem e duas crianças. O homem era o Sousa. As duas crianças, dois rapazes, eram provavelmente os seus filhos mais velhos. Brincavam os três com uma bola. O Sousa chutava-a, corria atrás dela, atirava-se para a areia rindo desenfreadamente, parecia mais criança que as crianças. Estas perseguiam também a bola, mas de uma forma inexpressiva não denotando qualquer tipo de sentimento, vontade ou falta dela.
O Dr. Fonseca começou a dirigir-se para a praia. Estava completamente seco (esteve sempre). O Sousa parou de brincar e ficou a observar, um pouco atónito, o homem que saía da água.
— Fonseca! Tu por aqui? Então como vai...Espera! Eu morri? É isso? Morri e vieste-me buscar? Graças a Deus! Posso voltar? Diz-me!
— Tiveste um acidente e ficaste muito maltratado. Mas ainda tens uma chance.
O Sousa ficou a olhar atentamente par o Dr. Fonseca, com um riso estúpido, como que ainda admirando parvamente a sua situação, enquanto adquiria real consciência do que lhe estava a acontecer.
— Não há nenhuma razão para voltares. Não há nada para ti lá! — disse de surpresa uma das crianças que segurava a bola nas mãos, sem emoção alguma.
— Mas...tenho-vos a vós. O resto da nossa família!
— Tu não gostas de nós e nós não gostamos de ti! — disse friamente o mais pequenos dos dois miúdos.
— Eu gosto de vocês! O império que construí foi para vocês. Para vos garantir um bom futuro. Tudo o que fiz foi por vocês.
— Tu não gostas de nós. Não gostas de ninguém. Tu gostarias de ter gostado, o que é diferente. Nós não queremos brincar contigo. O melhor que podes fazer por nós é morrer!
A face do Sousa tomou uma expressão arrepiante naquele momento.
— É verdade. É verdade. Perdoem-me! — E começou a correr desenfreadamente, repetindo estas palavras.
O Dr. Fonseca chamou por ele mas ele continuou a correr.
— Não me tentes impedir Fonseca! Estou farto de viver!
Continuou a correr até começar a desaparecer na distância e tudo começou a desvanecer-se.
Biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
Agora eram duas máquinas a gritar o terrível som. Nuno agarrou a rapariga de frente, pelos ombros e disse:
— O teu pai morreu, lamento imenso. O meu pai está preso no seu próprio subconsciente. O seu cérebro pode estar a julgar que o corpo morreu e não consegue voltar à realidade. Sabíamos que poderia ocorrer isto mas nunca antes aconteceu. Ainda assim ele devia ter acordado. Preciso de o ir buscar. Vou passar a máquina que está no teu pai para o meu e a dele para mim. Ajuda-me por favor. Empurra aquela poltrona para junto da cama.
— Está bem. — disse a rapariga limpando as lágrimas.
— Se o meu pai voltar a ter sinais vitais sem ele ou eu termos acordado ou se acontecer alguma outra coisa, desliga o meu capacete aqui. Não o removas nunca. Apenas desliga-o. A ligação neurológica é interrompida em menos de 30 segundos e eu acordo.
A escuridão dissipou-se numa névoa branca. Percorria-a a grande velocidade. Depois a claridade. Olhou para baixo. Um círculo de montanhas em torno de um pequeno vale onde no centro, bastante distante, podia distinguir o telhado de uma casa. Dirigia-se em queda livre para lá a grande velocidade, como se tivesse saltado de um avião sem pára-quedas. “Tens de ter calma. Nada te pode acontecer na Projecção de outra pessoa. Acalma-te!”
Imediatamente parou de cair e ficou a pairar. Começou a andar apressadamente em direcção à casa. se alguém o pudesse ver diria que andava deitado. Finalmente atingiu o relvado e pôs-se de pé, alinhando-se com a casa. Reconheceu-a. Era a casa de férias no Gerês que o pai vendera após a morte da mãe, para financiar a investigação. Aproximou-se de uma janela e olhou o interior.
No interior, que ele reconhecia vagamente, estava ele, com 8 anos aproximadamente. Estava também o seu pai e a sua mãe. Jogavam Monopólio, jovialmente. A sua mãe era a mais jovial. Alguns traços do seu rosto, o som da sua voz, os seus maneirismos, a forma de falar, de sorrir, pormenores que já se tinham desvanecido da sua memória, ele agora recordava vivamente. Se pudesse chorar na Projecção, teria chorado abundantemente. O pai estava exactamente igual ao corpo deitado no quarto do Sousa ligado às máquinas. A mesma roupa e tudo. Somente parecia mais velho do que aquilo que na realidade era. Isso era bom. Não estava a projectar uma versão idealizada de si. Ainda estava bastante consciente. Tinha um brilho no olhar. Estava a apreciar cada momento.
Nuno bateu na janela veementemente. Só o pai parece ter ouvido. Jogou os dados, movimentou a sua peça no tabuleiro, disse uma graça, levantou-se e dirigiu-se á porta. Abriu-a, saiu de casa e fechou-a fazendo o menor ruído possível.
— Pai, o que estás a fazer? O teu corpo já não apresenta sinais vitais. Tens de sair daqui!
— Eu já ia sair. Estava só a recordar…
— Tu sabes que arriscas perder a noção da tua situação e deixares-te ir!
— Já viste a tua mãe? — disse o dr. Fonseca apontando para a janela— Ainda te lembravas dela assim?
O Nuno olhou outra vez. A mãe estava agora a fazer uma brincadeira qualquer com duas das peças do jogo, uma em forma de cão a outra em forma de cartola, enquanto ele, sentado no colo dela, se ria sem parar, efusivamente.
— Deixa-me ficar só mais 5 minutos. Podes ficar aqui a ver. Também partilhas o momento. Se vires algum sinal de perigo, intervéns e eu saio logo.
— Não sei não. Não me parece boa ideia. — disse o Nuno ainda um pouco determinado.
Olhou para o seu pai. Considerou toda a sua relação com ele. Sabia o quanto lhe custara a morte da sua mãe. Não se lembrava de o pai lhe ter pedido alguma coisa alguma vez. Valeria a pena arriscarem as suas vidas por mais um pequeno momento?
— Ok, mas só mais um pouco.
O pai voltou para dentro todo sorridente. Virou-se para o filho que lhe dizia ser a sua vez de jogar, fez um ar cómico de quem desconfia de alguma coisa. “ Não me tentaste roubar nada quando eu fui lá fora?” disse divertido para o pequeno Nuno. Todos riram.
Alguns poucos instantes passaram. De repente, a mãe levantou-se e disse, séria, olhando o relógio:
— Carlos, já estamos atrasados! São horas de irmos.
Este era o sinal. Tinha que entrar e alertar o pai para que acordasse. Mas sentiu uma força a puxá-lo no sentido em que tinha vindo, primeiro em direcção ao ponto do relvado onde tinha “aterrado” e depois em direcção ao céu de onde tinha caído, a grande velocidade sem que ele pudesse fazer nada para o impedir, observando a casa ao fundo a ficar cada vez menor, até que alcançou novamente as nuvens e foi absorvido pela escuridão.
Abriu os olhos. Estava no quarto, sentado na poltrona. A máquina continuava o seu bip infernal. Estavam vários homens que ele não conhecia no quarto, fardados.
— Eles obrigaram-me a desligar o capacete. Se não o desligasse eu, eles desligariam tudo. Foram os meus irmãos que chamaram a polícia. Eles não compreendem aquilo que estão a fazer.
— Não. Não pode ser. Eu tenho de voltar a entrar antes que seja tarde de mais. — disse, deitando a mão ao capacete para o ligar. Imediatamente dois polícias prenderam-lhe os braços e imobilizaram-no.
— Dr. Fonseca, o senhor é considerado o principal responsável pela morte destes dois homens. Tem o direito de ....
— Não. Não. Não. — gritava o Nuno enquanto se debatia inutilmente.
O monitor multiparamédico, indiferente a todos os dramas do mundo dos vivos, continuava a interromper o silêncio:
Biiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii
R.D.A. Peixoto