Ano 300 do Recomeço
Somos descendentes dos sobreviventes da Grande Hecatombe que dizimou a maioria dos seres vivos, vegetações e construções.
Os antigos diziam que tudo sobreveio de repente; num instante, fogo caía do céu, a terra tremia e rachava, enquanto era assolada pelas ondas gigantescas dos maremotos.
Ninguém nunca soube o motivo da catástrofe, e assim, sem maiores explicações, nossa nova era foi denominada Ano Zero do Recomeço.
Entre os poucos sobreviventes das mais variadas partes do globo terrestre, ocorrerram guerras com o objetivo de, tanto dominar as melhores terras como também de saquear bens e víveres. Nestas guerras, dos poucos que sobreviveram à hecatombe, quase a metade pereceu, sobrando uns poucos homens, mulheres e crianças para recomeçar a vida neste novo e estranho mundo .
Estamos agora no Ano 300 do Recomeço. Sou uma das três anciãs que governam nossa tribo. Nossa sociedade é totalmente matriarcal e tanto as mulheres quantos os homens parecem satisfeitos e tranquilos com esse sistema.
Apesar dos poucos recursos tecnológicos, cada tribo construiu uma espécie de iglu gigantesco, de pedra, com teto vazado, em forma de abóbada, capaz de captar tanto a luz solar quanto a água da chuva.
Dentro deste, temos nossos cômodos comunitários e área para cultivar algumas poucas plantas que resistiram às intempéries.
Existem várias tribos que vivem como a nossa à uma distância considerada segura umas das outras. Não há qualquer tipo de intercâmbio ou relacionamento, ajuda mútua, etc.
Embora não saibamos os motivos exatos que levaram à Grande Hecatombe, existe a certeza de que foi provocada pelos próprios seres humanos na luta pelo poder. Para evitar que isto ocorra novamente, foi tacitamente definido que cada qual viva segundo suas próprias aspirações e capacidades, sem apelar em absoluto aos vizinhos.
Lá fora o clima é instável, com frio e calor se alternando continuamente, com tempestades de areia que podem matar um homem. De dia o céu é de um alaranjado fôsco e de noite, uma poeira fina como um véu impede a visão de estrelas. Percebemos a Lua, cada vez mais distante da Terra, e a escuridão total; uma grande solidão, como se fossémos apenas nós na Terra e a Lua neste universo imenso.
Apesar da paz relativamente alcançada, vivemos em dois turnos que se revezam dia e noite, trabalhando e vigiando, prontos para enfrentar qualquer eventualidade.
Sofremos os efeitos da radiação por longos anos e, talvez por conta disso, perdemos a maioria dos pêlos do corpo, restando poucos cabelos que usamos bem curtos. Perdemos também totalmente a libido e para garantir a continuidade da raça, criamos um sistema de inseminação artificial.
Todos os anos, nossos jovens mais saudáveis e robustos, participam de provas que medem a força física, a inteligência e capacidades manuais, e dentre os melhores resultados, tantos alguns rapazes como algumas moças são escolhidos para reprodução assistida.
Somos cuidadosos quanto às próximas gerações pois já vivemos no nosso limite e não temos como arcar com indivíduos incapazes de cuidar de si mesmos.
As crianças geradas são criadas por tutores capacitados para prepará-las para a vida e potencializar suas vocações naturais que beneficiem à comunidade.
Nosso povo, embora não seja necessariamente melancólico, quase não demonstra emoções, sejam de alegrias ou de tristezas, medos, etc.
Vivemos sem ambições ou expectativas futuras e nos recusamos a morrer velhos, doentes ou incapazes, portanto, criamos um sistema de suicídio assistido que pode ser requerido por qualquer um que já tenha atingido a puberdade.
Não sei dizer a minha idade, exceto que sou bem velha. Contamos as fases como, puberdade, menopausa, etc, mas depois de alguns anos, fica impraticável calcular. Nosso povo, apesar das vicissitudes pelas quais passou, estranhamente tem uma vida bem mais longeva que nossos predecessores de antes da Grande Hecatombe. Chegamos a ponto de nos cansar de viver, a enjoar da vida e a desejar a morte física.
Uma leve batida na porta me tira dos meus devaneios. É chegada a minha hora. Há seis meses requeri o suicídio, que deveria ocorrer assim que a nova anciã fosse escolhida.
Terei meu dia de rainha; serei lavada, massageada, penteada, perfumada e coberta com um véu diáfano e agradável ao toque.
Por três dias após meu passamento serei homenageada, assim como a nova anciã será parabenizada, no arremedo de um alegre festival.
Foi colocado diante de mim um belo cálice contendo cicuta, que foi a forma que escolhi dentre outras, menos elegantes.
Agarro meu cálice e bebo com a sofreguidão de um sedento em pleno deserto.
Finalmente livre! Para além dessa vida vazia e sem sentido, mas repleta de obrigações e responsabilidades.