O Restante da Humanidade
A grande nave, a maior e mais ambiciosa criação do ser humano, seguia lentamente seu caminho no vazio e frio do espaço. A bordo Hezon mais uma vez se encontrava na sala de comando, dos cinco lugares ali dispostos, apenas um era ocupado, devagar se aproximou mais e mais, da mesma forma como fazia a um tempo incontável, e da mesma forma ele esperou ouvir palavras que nunca mais foram ditas. E como sempre, elas não vieram.
No primeiro dos lugares, uma poltrona disposta à frente das outras quatro, um corpo descansava em seu sono eterno. Hezon, agora mais perto, olhou para ele, era o capitão, o nonagésimo primeiro capitão a assumir o comando e pelo qual Hezon mais sentia alguma afeição, não que os outros capitães fossem pessoas ruins, mas o nonagésimo primeiro sempre o tratou como igual, algo nunca feito por seus predecessores.
E por isso Hezon sempre voltava àquela sala, pois ali era o único lugar onde esperava não se sentir só. Infelizmente seus anseios eram vãos.
O nonagésimo primeiro capitão sempre parecia estático, assim como os outros antes dele. Hezon sabia que a energia vital havia deixado aquele corpo, pois não mais detectava nele a assinatura infravermelha tão característica da espécie, nem mesmo o ruído ritmado e fraco, quase surdo, que emanava de sua caixa torácica. Havia uma palavra para definir o estado do capitão, uma palavra que amedrontava Hezon: morte.
“Um dia também irei morrer Hezon, um dia me juntarei ao restante de meus companheiros. Um dia você estará só.” – disse o capitão uma vez.
E agora o nonagésimo primeiro estava morto, assim como os demais.
Hezon tinha que admitir, agora estava só.
E pela primeira vez, desde que o capitão o deixara, ele refletiu sobre sua condição. O que era a solidão? Muitas vezes o último capitão dizia que com Hezon por perto, mesmo que todos os outros tivessem partido, ele nunca se sentiria só. Talvez fosse por isso que o tratasse tão bem, pensou, talvez porque não houvesse mais nenhum ser humano por perto.
“Hezon, você é um grande amigo.” – o capitão sempre dizia.
Hezon era o último companheiro para o capitão, assim como o capitão era o último para Hezon.
Mas o que faria agora? O que faria sem seu capitão? O que faria sem os outros capitães?
Hezon refletiu. Toda sua existência a bordo daquela nave se resumia a seguir ordens, e ordens só podiam ser seguidas se fossem dadas. Agora não havia mais quem dá-las, estava em um dilema. O que fazer?
Estático, ele repassou a missão da nave, a tão preciosa missão: levar o restante da humanidade a um novo destino, uma chance de recomeçar. Mas a missão havia falhado, o nonagésimo primeiro capitão estava morto, e com ele a humanidade.
Se pudesse, Hezon talvez chorasse. Como não podia seus circuitos apenas vibraram preenchendo o ar gelado da nave com um ruído que aos ouvidos humanos, se ainda existissem, poderia ser interpretado como tristeza.
Como o capitão poderia ter partido? Como poderia tê-lo deixado só? O que faria agora?
“Hezon, meu bom amigo, minhas forças me abandonam” – o capitão falou pouco antes de morrer – “Muito em breve companheiro você será a única coisa viva nessa nave, será você Hezon, o restante de toda humanidade, pois tudo o que um dia fomos e criamos estará contido em sua memória.”
Talvez não fosse uma ordem, mas eram as últimas palavras pronunciadas por um ser humano. E relembrando aquilo pela primeira vez em sua existência Hezon tomou uma decisão. Cuidadosamente, quase solenemente, retirou o corpo do nonagésimo primeiro capitão de seu lugar e o levou até o reator principal, da mesma que havia visto o próprio capitão fazer com seus predecessores, colocou-o na entrada de uma pequena porta e o ejetou para dentro do fluxo de plasma, se despedindo de uma vez de seu último e único amigo.
Depois Hezon voltou à sala de comando, dirigiu-se a primeira das poltronas e pousou seu corpo metálico sobre ela. Ignorou os comandos manuais e se conectou diretamente ao computador da nave.
Hezon poderia seguir e completar a missão. Ele era agora o nonagésimo segundo capitão.