A Segunda Via.
Fui arrebatado numa manhã de inverno, enquanto o frio uivava no beiral da minha janela como um lobo faminto feito de vento e de gelo. E eis que comecei a cair indefinidamente por um túnel rosáceo feito de algodão que girava como um caleidoscópio a milhão por hora. E eu vi muitas coisas que em breve virão a acontecer!
Eu vi os seres humanos tornando-se mais sábios, mais críticos... e isso os levou a diminuir os nascimentos na Terra. As pessoas já não tinham mais filhos, por causa da violência do mundo, da desumanidade, do progresso que estavam transformando as pessoas em híbridos de animais e de máquinas. Então, os cientistas da situação, em desespero, fabricaram uma substancia que agia nos hormônios do seres, modificando a personalidade e a inclinação das pessoas por meio de nanorobôs e química pesada. Ou seja, faziam as pessoas desejarem ter filhos. Mas isso também não deu certo, por que o organismo da maioria rejeitou o experimento. Havia alguma coisa a mais no cérebro das pessoas, além apenas de humores e de química. As pessoas ainda preferiam não ter filhos. Pouquíssimas eram as que tinham.
Então, tudo ao meu redor adiantou-se, e pude ver a população diminuindo. As cidades foram ficando vazias, fantasmagóricas. A economia começou a entrar em colapso. As empresas faliam, empresários se matavam. As pessoas que ainda restavam, iam vivendo dos excedentes dos antepassados. Havia muita mercadoria, comida e roupa, pois a população caia drasticamente. E ao cair da densidade demográfica, a intensidade de plantas, árvores, e animais silvestres iam aumentando. Prédios de mármore e vidro passavam por mim à toda velocidade, mas eu ainda os via. Estavam repletos de vegetação, pinheiros, sequoias, faias, musgos. E plenos de esquilos, ursos, pássaros. As avenidas de concreto e asfalto iam ficado verdes, e algumas pessoas circulavam por ali, junto a alguns animais...
E, então, adiantou-se mais um pouco. Menos gente ainda. Mais verde. As pessoas agora andavam nuas. Principalmente as mulheres. A evolução que aconteceu na primeira vez em que a mulher mostrara o seu tornozelo, passando para a minissaia, o shortinho, finalmente chegara ao seu fim. Todos estavam nus agora. Mas ainda, mesmo assim, pouquíssimos nascimentos.
A humanidade, inconscientemente, tinha se reprovado a si mesmo. Era uma desistência voluntária de existir.
Passaram-se mais alguns anos, e eu não vi mais nenhum ser humano. Levantaram-me até a camada mais alta da atmosfera, e de lá me desceram até a fossa mais funda do oceano, e eu não vi ninguém lá. O concreto das construções se esfacelavam. Madeira e ferro já haviam se desintegrado. Havia uma paisagem desolada e bucólica cercando tudo. Apenas pássaros, animais silvestres e cães, muitos cães. A humanidade havia se entregado, finalmente.
Senti uma vertigem enorme, e tudo acelerou ao meu lado, e logo eu estava de novo de pé, sobre uma colina verde, e acima de mim uma imagem assombrosa! A Lua estava tão próxima da Terra que cobria três quintos do seu céu. Era monstruosamente desoladora e enorme! Eu podia ver as suas crateras perfeitamente. Podia ver o mar da tranquilidade como uma grande planície branca a passar por sobre a minha cabeça. Parecia ser possível levantar os braços e tocar em sua face prateada. A noite era perfeitamente clara, pois a luz refletida do sol pela lua não deixava escurecer. Muitas e muitas ilhas. Ilhas maravilhosas e exuberantes. Muita água. Agora tudo era um só oceano.
Eu não vi nada ao redor que lembrasse a passagem humana.
Assustei-me, assim que vi no canto do céu onde a Lua não dominava, o riscar de um cometa imenso a explodir como fogos de artifícios. Estranho, porque ele me lembrou a figura de um espermatozoide. Da sua explosão réstia de luzes desciam como estrelas. E eu fui avançado de novo no tempo! E enquanto tudo transcorria em torno de mim, vi o chão embaixo de mim se retorcer. Se misturava às aguas, às ervas, ao próprio fogo e vento. E uma figura ia gradualmente tomando forma. Era como se um corpo se libertasse do solo, aos poucos, e com dificuldades. Pude vê-lo se levantar. Primeiramente como um golem de barro, movimentando-se com dificuldades. Depois, mais ágil. Olhou pra cima. Se maravilhou. Pareceu sorrir. Pulou, brincou, abraçou outros que surgiram. No voltar gradual da Lua ao seu lugar, aqueles seres foram se transformando. Tornando-se mais parecidos com o que um dia havíamos sido.
Agora tudo parou de correr. O céu me era familiar de novo. Mas havia muito ar e muita água. As cores eram mais vivas, o mundo mais alegre. De repete, fui deixado sozinho. Aquela sensação que eu tinha de estar sendo acompanhado e observado, passou. Estava eu próximo a uma praia. Acompanhado agora dessa nova humanidade.
Eu vi um desses seres pegar um pequeno tronco de madeira e cercar um lado da praia. Entendi perfeitamente quando ele pareceu dizer que aquele lado pertencia a ele, e que ninguém poderia se aproximar dali. O meu coração cortou na hora. Rapidamente me dirigi a ele, como um pai vai a um filho muito pequeno dar-lhe conselhos e passar-lhe um pouco de experiência. Abordei-o com um sorriso e paciência, e procurei explicá-lo que aquilo não era correto. Tudo era de todos, por igual. Era um mundo vasto e rico, e todos eram irmãos de uma mesma mãe e um mesmo pai. Ainda que eu não os visse e conhecesse. Ele parou e me fitou profundamente. Depois pegou o tronco e jogou-o no mar.
Nessa hora, antes de ele se voltar pra mim, eu fui puxado novamente com muita força para o espaço. Subi e subi, até quase ficar sem ar. E depois, vim mergulhando de volta para a linda pérola de vidro azul que me encantou desde a primeira vez que a vi.
Estava de novo na Terra. Mas agora tudo estava diferente! Era uma sociedade futurista, com certeza. Mas muito, muito mais bela e cintilante que antes. Multidões iam e vinham em meio a arranha céus de uma beleza esplêndida, debaixo de um céu muito claro e entre muito verde. As pessoas pareciam felizes, todas elas! A Terra parecia feliz, toda ela. Os seres humanos tinham uma aura em torno de si, meio dourada, meio azul. Não percebi velhice entre eles, ou qualquer tipo de deterioração. Veículos voavam sem propulsão evidente. Não havia fábricas, nem indústrias, nem shoppings. Havia muitas cascatas de águas cristalinas, largas avenidas de gramas, construções de cristais e vidros, árvores da largura de três casas! Havia muitas crianças, era como uma cena que se vê num filme de natal, na véspera, antes do anoitecer.
Eu queria falar com eles, mas acordei em casa sob um pranto inconsolável. Era um choro de satisfação, não se enganem. Eu não sei se tudo foi um sonho. Só sei que eles eram felizes. Disso eu tenho certeza!