O Guardião
Ludvic estava feliz com a vida que levava. Sem grandes preocupações, sem surpresas, do jeito que ele sempre gostou. Tinha acabado de chegar em casa e estava sentado junto à enorme “tela de comunicações e diversão”, conforme o nome que tinha sido dado pela Administração. Tudo era feito através daquele sistema e tudo podia ser conseguido através dele também. Sua esposa Sanya ainda não havia chegado e ele se distraía, vendo as novidades. Desde a “Grande Tragédia”, há trinta e dois anos, havia pouco a ser noticiado. O mundo tinha se reduzido a bem menos de 0.2% da população. Alguns grandes vulcões do mundo entraram em erupção quase simultaneamente, praticamente cobrindo a Terra com sombras. Os grandes abrigos que haviam sido construídos para esse tipo de emergência ficaram rapidamente lotados. Obviamente os mais ricos conseguiram as vagas e a grande maioria entrou em total caos e começou a desaparecer. Quando o grande parque de Yellowstone nos EUA começou também a se abrir, como se fosse uma imensa cratera, não havia mais uma só vaga. Gases mortíferos começaram a se espalhar por todo o território mundial, que já estava agonizando. As comunicações, o transporte aéreo e boa parte do terrestre já haviam sumido. Muitos navios não voltaram aos portos, na esperança de ganhar tempo e talvez arrumar uma forma de sobrevivência em alto mar, mas certamente era uma questão de tempo até que a água potável e a alimentação acabassem.
Apenas três grandes abrigos tinham capacidade e infraestrutura para sobreviver durante décadas. O primeiro e maior de todos era em Dakota do Norte, perto da divisa entre Estados Unidos e Canadá, o segundo era a 300 quilômetros a nordeste de Moscou e o terceiro, na Austrália. Os três mantinham um sistema de comunicação independente entre si. Era impossível saber, tanto tempo depois, o que havia acontecido com os mais de duzentos abrigos pequenos e médios espalhados pelo mundo, mas as perspectivas não eram nada boas. Esses três, entretanto, tinham uma incrível estrutura e fonte de alimentação e água independentes. Eles tinham basicamente o mesmo projeto. Tinham sido construídos pela mesma empresa. O abrigo, em si, era subterrâneo. Na superfície, havia vários domos enormes e transparentes, onde havia plantação, minifábricas e outras coisas necessárias para sobrevivência. Havia muito pouca gente na superfície. Apenas o necessário para manter o seu funcionamento. O chefe dos funcionários que mantinham o sistema trabalhando, era chamado de “Guardião”.
Por uma questão psicológica, os trabalhadores da superfície e o Guardião não se comunicavam com os moradores do abrigo. A vida lá em cima não era nada fácil. Tudo que eles viam era um grande cinza no céu, que era o dia, e uma escuridão densa e arrepiante à noite. Eles já haviam se acostumado e alguns praticamente cresceram ali mesmo e não se lembravam de quase nada do mundo anterior. Havia o mínimo para sobrevivência e isso era o que contava. Sua obrigação era manter o abrigo funcionando e manter comunicação com os outros abrigos.
Havia, é claro, a grande esperança de o céu se abrir e aparecer o sol. O indicador de elementos tóxicos no ar indicava que, trinta anos depois, ele já havia caído bastante, mas ainda era letal. Quando as duas coisas acontecessem – sol e nível tóxico tolerável - eles poderiam liberar o abrigo, mas ninguém cultivava esse sonho.
Naquele dia especial, Ludvic, que vivia no abrigo de Dakota, tinha adormecido levemente quando ouviu um ruído. Pensou que fosse Sanya chegando, mas logo percebeu que estava enganado. A voz era masculina e o chamava da tela. Era alguém que ele não conhecia e estava tentando falar com ele. Ficou admirado, pois isto nunca tinha acontecido antes. Aquela tela era uma repetição de filmes e programas realizados até o ano de 2023, quando houve a Grande Tragédia. Comunicação ao vivo, assim, não se lembra de ter visto. O máximo que acontecia eram reuniões de grupo com outros do abrigo. Era uma coisa que acontecia regularmente, mas geralmente os assuntos eram sempre os mesmos. Perguntou ao homem quem ele era. Este, aparentando uns setenta anos, na verdade tinha quase noventa. Identificou-se como Stan. Logo depois revelou que era o Guardião do abrigo. Ludvic, meio excitado e meio incrédulo, perguntou se não havia aquela regra de não poder haver comunicação entre eles. Perguntou e logo se arrependeu, com medo que o homem fosse embora. Não queria. Era bom conversar. Perguntou para Ludvic como eles estavam por lá. Ludvic falou da monotonia, apesar das inúmeras atividades que o comando organizava todos os dias. O Guardião disse, então, que tinha boas notícias. O nível tóxico tinha baixado muito ultimamente. Ainda não dava para se viver lá fora, mas aquilo era um bom sinal. Notou também que a claridade do céu estava bem maior nas últimas semanas. Ludvic ficou emocionado com o que Stan estava falando. Aquilo era uma novidade e tanto. Comentou com o Stan que a Sanya iria ficar alucinada com as notícias. Stan fez uma cara de contrariedade e disse que, infelizmente, ele não podia comentar aquilo com ninguém. Era muito perigoso. Era contra as regras, Além disso, iria criar muita expectativa. Perguntou para o Ludvic do que ele mais gostava da Terra de antigamente e quais eram suas melhores lembranças. Perguntou outras coisas também. Depois se despediu, dizendo que havia vários arquivos que ele tinha achado e que nunca haviam sido passados na tela de comunicações e diversão. Iria separá-los, de acordo com o que ele acabara de ouvir, para que o pessoal do abrigo se divertisse um pouco. Disse também que voltaria qualquer dia desses. Finalmente, despediu-se:
-Boa noite!
-Boa noite! Mas como você sabe que é noite agora?
Com um sorriso sem graça, respondeu:
-É sempre noite por aqui.
O Guardião sumiu da tela, que voltou a rodar um filme do Tom Hanks, “Capitão Phillips”.
Na sua sala, lá em cima, Stan afastou-se do computador e foi em direção a seu assistente Brian, que o estava observando:
-Chefe, isso aí não é proibido?
-Certamente, meu caro Brian, certamente.
- Não é perigoso?
-Perigoso para quem? Além disso, por que não dar um pouco de esperança para os coitados?
-Para um coitado apenas.
-Você acha mesmo que ele não vai contar para os outros, para todo mundo?
O Brian fez uma cara estranha. Perguntou:
-Pensando bem, contar para quem? Estão todos congelados. Um não fala com o outro.
-Eu não falei com o Ludvic.
-Não, você não falou. Eu sei. Você apenas colocou algumas coisas na programação dele.
-Tanto faz, o cérebro dele vai perceber isto como uma conversa e é isso o que interessa. Só isso é o que importa. O que a gente reconhece como realidade.
-Eu não entendo. Por que fazer isso, justo agora que...
Brian não terminou a frase, mas Stan terminou apara ele:
-Agora que nós sabemos que não há mais volta, que o sistema de descongelamento não funciona mais, que eles nunca mais vão voltar dessa vida vegetativa? Para eles, é uma vida quase normal. Eles têm todas as sensações, como se estivessem vivendo.
-Quer dizer que não há jeito de consertar o sistema, mesmo?
-Claro que não. Em condições normais, talvez sim. Mas presos nesta esfera, sem ferramentas adequadas, sem material, é o fim da linha.
-E o que vai acontecer com eles?
Podem ficar assim por mais algumas décadas, sonhando que estão vivendo. É só deixar o computador rodar até um dia acabar a energia.
-E nós o que vamos fazer?
-Temos suprimentos para mais ou menos cinco meses. Se o nível tóxico estiver bem baixo, saímos e vamos “descobrir a América” novamente. Pode ser que encontremos alguns sobreviventes, talvez mutantes, ou pode ser que vivamos apenas um dia ou dois. Na verdade, eu gostaria mais de estar no lugar de Ludvic do que onde estou. Pelo menos ele tem a ilusão de que está vivendo. O sistema que foi criado para eles é muito bom. Têm a perfeita sensação de que estão num abrigo confortável, esperando as coisas se normalizarem. Não têm a menor noção de que estão numa câmara de hibernação com um monte de fios na cabeça.
-Aliás, eu nunca entendi isto.
-O que você nunca entendeu, Brian?
-Se eles estão numa vida virtual, por que eles precisam saber que estão num abrigo, esperando por uma volta do sol, da vida, da natureza? Por que já não lhes dar uma vida espetacular, maravilhosa, cheia de charme. Virtual por virtual...
-Brian, Brian. Os organizadores do sistema tinham esperança de que em dez ou quinze anos tudo fosse terminar. Nesse caso, já pensou acordá-los de uma existência fantástica e jogá-los numa batalha pela vida num mundo praticamente pré-histórico? Do jeito que fizeram, vida virtual num abrigo e depois serem resgatados para a vida normal... assim é muito mais fácil sobreviver, se adaptar. Não vão viver um choque, vão continuar a viver por aquilo que estavam esperando. Sobreviver num mundo recuperado.
-Acho que você tem razão. Se bem que vão ter o choque de perceber que estavam congelados, vivendo apenas uma vida virtual, e de repente estarão voltando para a realidade.
-Este é um choque aceitável. É como se tivessem sob o efeito de uma longa e prolongada anestesia.
-Com a vantagem de ter sonhos.
-Isso mesmo, Brian, isso mesmo.
Naquela mesma noite, Stan tomou uma decisão. Não comentou com ninguém, nem com seu melhor amigo e assistente Brian.
Alguns dias depois, ele entrou novamente no sistema. Para Ludvic, ele apareceu na sua grande tela. Deu um grande sorriso e cumprimentou Ludvic:
-Boa noite, mas logo, logo, poderemos falar bom dia! Temos grandes notícias. Poderemos sair daqui, muito em breve. Talvez em um ou dois meses.
-Mal posso acreditar! Isso eu posso falar para Sanya?
-Nem precisa. Ela também está me ouvindo na sua própria tela, em sua sala. Aliás, todos estão me vendo e ouvindo agora. Vamos mudar a programação para o tempo que resta, para que todos estejam preparados para enfrentar a vida lá fora. Nós vamos induzir todos vocês num sono profundo, ao mesmo tempo em que vocês estarão sonhando com as coisas mais lindas de suas vidas, de acordo com os arquivos que temos aqui. Em alguns instantes vocês todos estarão dormindo, comecem a se preparar e até mais. Até o dia de nossa liberdade! Quando tudo estiver em ordem, todos serão acordados e começaremos a evacuação do abrigo.
Depois de se despedir de Ludvic, Stan recostou-se em sua cadeira, virou-se um pouco para a direita e começou a fazer o “input” pessoal das lembranças de todos os corpos em hibernação. E eles começaram a sonhar os sonhos de suas infâncias, da juventude. Tudo que tinha acontecido de melhor. Depois iniciou o processo de descongelamento "sem recuperação de sinais vitais". O computador ainda perguntou duas vezes se ele tinha certeza de que queria fazer aquilo. Ele confirmou e colocou uma senha especial para tal ocasião.
Ludvic e os 397 outros, todos instalados em cápsulas feitas de um acrílico especial, começaram a ver as imagens maravilhosas. Algum tempo depois, lentamente, a visão começou a se desfazer, engolida por um forte jato de luz. Algumas horas mais tarde, todas tinham a inscrição “OFF” nos pequenos visores ao lado da abertura da cápsula. Não havia mais sonhos, nem vida virtual, nem vida biológica. Em algumas horas os corpos começariam a entrar em decomposição.
No centro de comando, na superfície, o Guardião dava as instruções finais para seus funcionários subalternos. Em algumas semanas ou meses, eles teriam de tomar uma decisão também: aplicar o sistema de autodestruição ou tentar sobreviver no ambiente hostil e reverso do mundo pós civilização, lá fora. Gênesis ou Apocalipse.
O Guardião tinha cumprido sua missão, pelo menos até onde fora possível, com os meios que tinha.
O conto acima não faz parte do livro "Histórias do Futuro"
Ludvic estava feliz com a vida que levava. Sem grandes preocupações, sem surpresas, do jeito que ele sempre gostou. Tinha acabado de chegar em casa e estava sentado junto à enorme “tela de comunicações e diversão”, conforme o nome que tinha sido dado pela Administração. Tudo era feito através daquele sistema e tudo podia ser conseguido através dele também. Sua esposa Sanya ainda não havia chegado e ele se distraía, vendo as novidades. Desde a “Grande Tragédia”, há trinta e dois anos, havia pouco a ser noticiado. O mundo tinha se reduzido a bem menos de 0.2% da população. Alguns grandes vulcões do mundo entraram em erupção quase simultaneamente, praticamente cobrindo a Terra com sombras. Os grandes abrigos que haviam sido construídos para esse tipo de emergência ficaram rapidamente lotados. Obviamente os mais ricos conseguiram as vagas e a grande maioria entrou em total caos e começou a desaparecer. Quando o grande parque de Yellowstone nos EUA começou também a se abrir, como se fosse uma imensa cratera, não havia mais uma só vaga. Gases mortíferos começaram a se espalhar por todo o território mundial, que já estava agonizando. As comunicações, o transporte aéreo e boa parte do terrestre já haviam sumido. Muitos navios não voltaram aos portos, na esperança de ganhar tempo e talvez arrumar uma forma de sobrevivência em alto mar, mas certamente era uma questão de tempo até que a água potável e a alimentação acabassem.
Apenas três grandes abrigos tinham capacidade e infraestrutura para sobreviver durante décadas. O primeiro e maior de todos era em Dakota do Norte, perto da divisa entre Estados Unidos e Canadá, o segundo era a 300 quilômetros a nordeste de Moscou e o terceiro, na Austrália. Os três mantinham um sistema de comunicação independente entre si. Era impossível saber, tanto tempo depois, o que havia acontecido com os mais de duzentos abrigos pequenos e médios espalhados pelo mundo, mas as perspectivas não eram nada boas. Esses três, entretanto, tinham uma incrível estrutura e fonte de alimentação e água independentes. Eles tinham basicamente o mesmo projeto. Tinham sido construídos pela mesma empresa. O abrigo, em si, era subterrâneo. Na superfície, havia vários domos enormes e transparentes, onde havia plantação, minifábricas e outras coisas necessárias para sobrevivência. Havia muito pouca gente na superfície. Apenas o necessário para manter o seu funcionamento. O chefe dos funcionários que mantinham o sistema trabalhando, era chamado de “Guardião”.
Por uma questão psicológica, os trabalhadores da superfície e o Guardião não se comunicavam com os moradores do abrigo. A vida lá em cima não era nada fácil. Tudo que eles viam era um grande cinza no céu, que era o dia, e uma escuridão densa e arrepiante à noite. Eles já haviam se acostumado e alguns praticamente cresceram ali mesmo e não se lembravam de quase nada do mundo anterior. Havia o mínimo para sobrevivência e isso era o que contava. Sua obrigação era manter o abrigo funcionando e manter comunicação com os outros abrigos.
Havia, é claro, a grande esperança de o céu se abrir e aparecer o sol. O indicador de elementos tóxicos no ar indicava que, trinta anos depois, ele já havia caído bastante, mas ainda era letal. Quando as duas coisas acontecessem – sol e nível tóxico tolerável - eles poderiam liberar o abrigo, mas ninguém cultivava esse sonho.
Naquele dia especial, Ludvic, que vivia no abrigo de Dakota, tinha adormecido levemente quando ouviu um ruído. Pensou que fosse Sanya chegando, mas logo percebeu que estava enganado. A voz era masculina e o chamava da tela. Era alguém que ele não conhecia e estava tentando falar com ele. Ficou admirado, pois isto nunca tinha acontecido antes. Aquela tela era uma repetição de filmes e programas realizados até o ano de 2023, quando houve a Grande Tragédia. Comunicação ao vivo, assim, não se lembra de ter visto. O máximo que acontecia eram reuniões de grupo com outros do abrigo. Era uma coisa que acontecia regularmente, mas geralmente os assuntos eram sempre os mesmos. Perguntou ao homem quem ele era. Este, aparentando uns setenta anos, na verdade tinha quase noventa. Identificou-se como Stan. Logo depois revelou que era o Guardião do abrigo. Ludvic, meio excitado e meio incrédulo, perguntou se não havia aquela regra de não poder haver comunicação entre eles. Perguntou e logo se arrependeu, com medo que o homem fosse embora. Não queria. Era bom conversar. Perguntou para Ludvic como eles estavam por lá. Ludvic falou da monotonia, apesar das inúmeras atividades que o comando organizava todos os dias. O Guardião disse, então, que tinha boas notícias. O nível tóxico tinha baixado muito ultimamente. Ainda não dava para se viver lá fora, mas aquilo era um bom sinal. Notou também que a claridade do céu estava bem maior nas últimas semanas. Ludvic ficou emocionado com o que Stan estava falando. Aquilo era uma novidade e tanto. Comentou com o Stan que a Sanya iria ficar alucinada com as notícias. Stan fez uma cara de contrariedade e disse que, infelizmente, ele não podia comentar aquilo com ninguém. Era muito perigoso. Era contra as regras, Além disso, iria criar muita expectativa. Perguntou para o Ludvic do que ele mais gostava da Terra de antigamente e quais eram suas melhores lembranças. Perguntou outras coisas também. Depois se despediu, dizendo que havia vários arquivos que ele tinha achado e que nunca haviam sido passados na tela de comunicações e diversão. Iria separá-los, de acordo com o que ele acabara de ouvir, para que o pessoal do abrigo se divertisse um pouco. Disse também que voltaria qualquer dia desses. Finalmente, despediu-se:
-Boa noite!
-Boa noite! Mas como você sabe que é noite agora?
Com um sorriso sem graça, respondeu:
-É sempre noite por aqui.
O Guardião sumiu da tela, que voltou a rodar um filme do Tom Hanks, “Capitão Phillips”.
Na sua sala, lá em cima, Stan afastou-se do computador e foi em direção a seu assistente Brian, que o estava observando:
-Chefe, isso aí não é proibido?
-Certamente, meu caro Brian, certamente.
- Não é perigoso?
-Perigoso para quem? Além disso, por que não dar um pouco de esperança para os coitados?
-Para um coitado apenas.
-Você acha mesmo que ele não vai contar para os outros, para todo mundo?
O Brian fez uma cara estranha. Perguntou:
-Pensando bem, contar para quem? Estão todos congelados. Um não fala com o outro.
-Eu não falei com o Ludvic.
-Não, você não falou. Eu sei. Você apenas colocou algumas coisas na programação dele.
-Tanto faz, o cérebro dele vai perceber isto como uma conversa e é isso o que interessa. Só isso é o que importa. O que a gente reconhece como realidade.
-Eu não entendo. Por que fazer isso, justo agora que...
Brian não terminou a frase, mas Stan terminou apara ele:
-Agora que nós sabemos que não há mais volta, que o sistema de descongelamento não funciona mais, que eles nunca mais vão voltar dessa vida vegetativa? Para eles, é uma vida quase normal. Eles têm todas as sensações, como se estivessem vivendo.
-Quer dizer que não há jeito de consertar o sistema, mesmo?
-Claro que não. Em condições normais, talvez sim. Mas presos nesta esfera, sem ferramentas adequadas, sem material, é o fim da linha.
-E o que vai acontecer com eles?
Podem ficar assim por mais algumas décadas, sonhando que estão vivendo. É só deixar o computador rodar até um dia acabar a energia.
-E nós o que vamos fazer?
-Temos suprimentos para mais ou menos cinco meses. Se o nível tóxico estiver bem baixo, saímos e vamos “descobrir a América” novamente. Pode ser que encontremos alguns sobreviventes, talvez mutantes, ou pode ser que vivamos apenas um dia ou dois. Na verdade, eu gostaria mais de estar no lugar de Ludvic do que onde estou. Pelo menos ele tem a ilusão de que está vivendo. O sistema que foi criado para eles é muito bom. Têm a perfeita sensação de que estão num abrigo confortável, esperando as coisas se normalizarem. Não têm a menor noção de que estão numa câmara de hibernação com um monte de fios na cabeça.
-Aliás, eu nunca entendi isto.
-O que você nunca entendeu, Brian?
-Se eles estão numa vida virtual, por que eles precisam saber que estão num abrigo, esperando por uma volta do sol, da vida, da natureza? Por que já não lhes dar uma vida espetacular, maravilhosa, cheia de charme. Virtual por virtual...
-Brian, Brian. Os organizadores do sistema tinham esperança de que em dez ou quinze anos tudo fosse terminar. Nesse caso, já pensou acordá-los de uma existência fantástica e jogá-los numa batalha pela vida num mundo praticamente pré-histórico? Do jeito que fizeram, vida virtual num abrigo e depois serem resgatados para a vida normal... assim é muito mais fácil sobreviver, se adaptar. Não vão viver um choque, vão continuar a viver por aquilo que estavam esperando. Sobreviver num mundo recuperado.
-Acho que você tem razão. Se bem que vão ter o choque de perceber que estavam congelados, vivendo apenas uma vida virtual, e de repente estarão voltando para a realidade.
-Este é um choque aceitável. É como se tivessem sob o efeito de uma longa e prolongada anestesia.
-Com a vantagem de ter sonhos.
-Isso mesmo, Brian, isso mesmo.
Naquela mesma noite, Stan tomou uma decisão. Não comentou com ninguém, nem com seu melhor amigo e assistente Brian.
Alguns dias depois, ele entrou novamente no sistema. Para Ludvic, ele apareceu na sua grande tela. Deu um grande sorriso e cumprimentou Ludvic:
-Boa noite, mas logo, logo, poderemos falar bom dia! Temos grandes notícias. Poderemos sair daqui, muito em breve. Talvez em um ou dois meses.
-Mal posso acreditar! Isso eu posso falar para Sanya?
-Nem precisa. Ela também está me ouvindo na sua própria tela, em sua sala. Aliás, todos estão me vendo e ouvindo agora. Vamos mudar a programação para o tempo que resta, para que todos estejam preparados para enfrentar a vida lá fora. Nós vamos induzir todos vocês num sono profundo, ao mesmo tempo em que vocês estarão sonhando com as coisas mais lindas de suas vidas, de acordo com os arquivos que temos aqui. Em alguns instantes vocês todos estarão dormindo, comecem a se preparar e até mais. Até o dia de nossa liberdade! Quando tudo estiver em ordem, todos serão acordados e começaremos a evacuação do abrigo.
Depois de se despedir de Ludvic, Stan recostou-se em sua cadeira, virou-se um pouco para a direita e começou a fazer o “input” pessoal das lembranças de todos os corpos em hibernação. E eles começaram a sonhar os sonhos de suas infâncias, da juventude. Tudo que tinha acontecido de melhor. Depois iniciou o processo de descongelamento "sem recuperação de sinais vitais". O computador ainda perguntou duas vezes se ele tinha certeza de que queria fazer aquilo. Ele confirmou e colocou uma senha especial para tal ocasião.
Ludvic e os 397 outros, todos instalados em cápsulas feitas de um acrílico especial, começaram a ver as imagens maravilhosas. Algum tempo depois, lentamente, a visão começou a se desfazer, engolida por um forte jato de luz. Algumas horas mais tarde, todas tinham a inscrição “OFF” nos pequenos visores ao lado da abertura da cápsula. Não havia mais sonhos, nem vida virtual, nem vida biológica. Em algumas horas os corpos começariam a entrar em decomposição.
No centro de comando, na superfície, o Guardião dava as instruções finais para seus funcionários subalternos. Em algumas semanas ou meses, eles teriam de tomar uma decisão também: aplicar o sistema de autodestruição ou tentar sobreviver no ambiente hostil e reverso do mundo pós civilização, lá fora. Gênesis ou Apocalipse.
O Guardião tinha cumprido sua missão, pelo menos até onde fora possível, com os meios que tinha.
oooooOOOOOooooo
Histórias do FuturoO conto acima não faz parte do livro "Histórias do Futuro"