2050 - Parte II
Mari havia comentado há algum tempo sobre a possibilidade da raça humana habitar-se em Marte: "Existe água doce, congelada lá. A Terra está ficando mais quente a cada ano que se passa, o que significa que Marte pode chegar à uma temperatura agradável para o ser humano. O dia Marciano é parecido com o da Terra. Um dia solar em Marte tem aproximadamente 24 horas e 39 minutos. Também possui um eixo de inclinação bem próximo ao nosso. Marte tem uma atmosfera. Embora muito menor, cerca de 0,7% da atmosfera terrestre, isto permite alguma proteção contra a radiação solar e a radiação cósmica. Estamos trabalhando para aperfeiçoar isto. Também parece ter uma boa quantidade de todos os elementos químicos necessários para o suporte à vida. É claro que ainda temos problemas com a gravidade, que equivale à um terço da terra, e a pressão atmosférica que é inferior à que precisamos, mas estamos trabalhando nisso. Nada é impossível. Hoje em dia conseguimos viajar à 1/20 da velocidade da luz, e há alguns anos atrás isso parecia impossível." Mas é claro que eu nunca imaginei que chegaria à este ponto.
Foguetes chegavam aos poucos, comportando aproximadamente mil pessoas em cada. Alguns pareciam satisfeitos, conversando em outros idiomas, dizendo coisas do tipo: "Somos mais evoluidos que o resto, e agora procriaremos em uma quantidade inteligente. Este será um mundo sem misérias", outros lamentavam a morte de amigos e familiares, já outros não se preocupavam com nada, apenas observavam a Terra com curiosidade ou desinteresse.
Desembarcamos em Marte dois dias depois, o planeta vermelho. O céu azul agora fora substituido por um completamente vermelho, o que me dava uma sensação de vazio. Descobri que ali já havia uma cidade que fora planejada há muito tempo. Haviam casas, comidas e algumas indústrias. Ouvi as pessoas comentando sobre algumas máquinas que já estavam funcionando lá, para garantir nossa sobrevivência. Aquecedores para controlar a queda de temperatura. Máquinas controladoras de pressão atmosférica. Fábrica de gases que uma vez emitidos, se acumulam na atmosfera, aquecendo-a. Máquinas para converter a água em estado sólido ou gasoso, em estado líquido. Também maquinas conversoras de água em oxigênio. O planeta estava assustadoramente habitável.
Ainda não havia conseguido trocar uma única palavra com Mariana. Ela parecia mais calma e conformada, quando veio falar comigo:
- "Me desculpe por não te contar antes. Prometi sigilo no trabalho".
Não a olhei. Alguns segundos se passaram, quando eu finalmente lhe perguntei:
- "O que vai acontecer?"
Ela não me respondeu. Encarei-a nos olhos e lhe perguntei novamente. Ela parecia amedrontada, talvez com pena:
- "Há algum tempo a Terra vem se superaquecendo por causa do Sol..."
- "Continue."
- "Eu..." - Ela lamentou e continuou - "O sol está sobrecarregado. Vai haver uma erupção solar. Ela irá atingir Mercúrio, Vênus e a Terra. Calculamos que Mercúrio e Vênus deixarão de existir a partir de amanhã".
- "Quantas pessoas vieram para Marte?"
- "Aproximadamente 70 mil."
- "SETENTA MIL? DO MUNDO INTEIRO? ISSO É MENOS QUE A POPULAÇÃO DE SÃO PAULO!"
- "Gaby..."
- "Qual a chance de sobreviverem?"
- "Na Terra?"
- "Sim. Qual a chance?"
- "Gaby, eu..."
- "RESPONDE! Qual a chance?"
Ela demorou para responder. Fitou-me aos olhos e disse:
- "A Terra chegará a uma temperatura de 500° C. A menor delas, com sorte, talvez 400° C. Construímos tubos subterrâneos refrigerados, que foram anunciados ontem à noite. Já pedi para colocarem sua família em um deles. Mas não sabemos o quanto eles conseguem suportar".
Mas eu já sabia a resposta. Ninguém sobreviveria, não com essa temperatura. A Terra voltaria a ser um mero planeta sem vida.
Me senti no inferno pela primeira vez na vida. O céu vermelho, as pessoas desconhecidas, todas gananciosas e agradecendo ao seu Deus por terem conseguido sobreviver. Ao Deus ao qual chamavam de dinheiro. Preferi neste momento estar abraçada com todos eles. Minha mãe, meu pai, meu irmão, meus amigos. Eu morreria ao lado de todos eles e a tristeza e a saudade se iriam para sempre.
Sentei-me em uma rocha e ignorei os murmúrios à minha volta. Lembrei-me do gosto do leite em minha boca. Eu ainda conseguia sentir o gosto do leite da minha mãe, quente em minha boca. Senti o abraço do meu irmão, o carinho do meu pai, o apego dos meus avós. Senti novamente a sensação de ser feliz. Lembrei de todos os meus amigos e da época em que costumávamos beber vinho barato e tocar violão na praça, até altas horas da madrugada. Éramos pobres, mas éramos felizes. Por um momento pensei que estivessem ali, do meu lado, admirando aquele céu avermelhado neste momento único, que não voltaria mais.
Senti o gosto da comida da vovó, no sítio. O cheiro do frango caipira, no qual eu me lambuzava toda ainda estava ali. Assim como o cheiro da sua casinha velha, no meio do mato.
Lembrei-me de como era bom reunir os amigos em casa, mesmo que fosse pra jogar uno e vê-los roubarem uns aos outros. No final, tudo acabava em risadas e muita música.
Lembrei-me do dia em que minha mãe me carregou no colo e pela primeira vez, eu lhe disse: "eu te amo!" Seus olhos se encheram de lágrimas, e naquele momento eu implorei ao universo para que ela nunca morresse.
Lembrei-me do meu velho sonho de criança: me tornar uma bailarina. Meus pais nunca tiveram dinheiro para me pagar uma aula de ballet, então eu improvisava os passos na frente do espelho. Uma vez, acabei machucando o dedão e precisei ficar sem andar por uma semana. Então, meus pais me trouxeram uma pequena caixa vermelha de presente. Quando eu a abri, havia uma pequena bailarina dançando em frente à um pequeno espelho. A caixinha de vidro reproduzia uma triste musiquinha quando alguém a abria. Eu a guardei com todo o amor do mundo, e sempre a levava aonde quer que fosse.
Abri minha mochila e dela tirei uma pequena caixa de vidro, vermelha. Eu a abri, e a bailarina começou a girar devagar. Uma triste canção começou a tocar, porém seu som não se propagava tão longamente quanto na Terra. Acompanhei sua música então com a minha voz. Meus olhos começaram a lacrimejar e uma pequena gota de lágrima caiu em cima da cabeça da pequena bailarina, que tinha uma expressão triste. Ela parou de girar e a canção parou.
Eu estava em cima de um morro. Mari se aproximou de mim e segurou forte, minhas mãos. Segui a direção do olhar triste da pequena bailarina, e no horizonte pude ver uma chama vermelha se aproximar. Atingiu Marte, e a temperatura se elevou em 40° C. Aos poucos ela foi amenizando e tudo voltava ao normal. Olhei em direção à Terra e vi apenas um pequeno círculo avermelhado. Mari me olhava com pena e fez-se silêncio no lugar todo. A bailarina caiu da minha mão e a caixa de vidro quebrou-se. A triste canção começou a tocar, e eu senti meu corpo estremecer. O oxigênio estava indo embora, pois a gravidade em Marte ainda não dispensava o uso do pó. Peguei o pacote com o pó então dentro da mochila e o admirei por alguns segundos. Esvaziei o conteúdo no solo de Marte e senti aos poucos meu corpo se desintegrar...
A voz de Mariana ainda podia ser ouvida me chamando, enquanto a bailarina cantava para mim sua triste canção. Então a sensação de sufoco começou a ir embora e eu podia sentir que era feliz mais uma vez. Eu agora fazia parte da energia do universo, assim como todas as pessoas que amei. Eu viajei pela velocidade da luz, porque me transformei em energia acelerada. Todo o conhecimento do universo estava agora comigo, porque eu voltei pro universo. Então eu bailei. Eu bailei como nunca havia bailado antes. Eu bailei na triste canção da pequena bailarina, entre os infinitos lugares que eu ainda poderia visitar, pelo resto da eternidade.