A MULHER

Ersgok, 2 de fevereiro de 2015.

A caravana de trenós entrou no pátio de carga da estação ferroviária de Ersgok depois de passar por inúmeras aldeias, postos avançados e pequenas cidades.

Aldo e Lian-Ee desprenderam suas capas para deixar entrar um pouco de ar fresco em seus cansados corpos. Ainda havia neve e fazia frio, mas em comparação com as Terras Frias, os modestos dez graus negativos de Ersgok eram agradáveis.

–Esta é a cidade fronteiriça mais afastada de Taônia, Al-Do. Aqui termina o caminho de ferro e até aqui chega a civilização Taoniana.

–Bem moderna, para meus padrões.

–Aqui está o quartel do XX Exército Imperial, a cuja jurisdição pertencemos.

–O que fazemos agora?

–Despacharemos a carga por trem e compraremos passagens para nós.

–Muito apropriado. Quanto falta para chegar na capital?

–Mais ou menos quatro dias, ou seis, dependendo do tráfego mais adiante.

–Haverá tempo de percorrer a cidade?

–Sim. Gamal irá com você, reservem quartos, eu devo despachar a carga.

–De acordo. Vamos, Gamal?

–Sim, Excelência.

–Não me chame de excelência para não atrair atenção sobre mim. Para você eu sou Al-Do. Entendido?

–Entendido Excel... Al-Do.

Gamal Pacha, era um caçador de uns 24 anos, inteligente e esperto. Conhecia bem a cidade de Ersgok, onde sem dúvida já tinha estado muitas vezes.

–Aonde vamos primeiro? – perguntou Aldo.

–À posada. Não vi trem na estação e pode ser que demore alguns dias para chegar. Reservaremos acomodações para nós e para os asgoths.

–Muito bem.

*******.

Aldo e Gamal foram à taverna, beberam e viram a TV que o dono colocara estrategicamente encima do armário de bebidas. Logo entraram Lian-Ee e os outros. O chefe pediu as bebidas e sentou-se. Após o primeiro gole perguntou:

–O que achou da cidade, Al-Do?

–É um lugar bem civilizado, bem ao gosto de um terrestre. Caminhamos bastante, Gamal conhece tudo por aqui.

–O trem sairá daqui a dois dias. Chegará amanhã para descarregar e realizar a manutenção de rotina.

–Teremos tempo para nos divertir, Lian-Ee – disse Gamal.

–Sim, vamos deixar os asgoths no curral e os trenós num depósito. Em Taônia será fácil conseguir transporte para o mercado.

–Despachou a carga?

–Despachei. Está tudo na estação e tenho o recibo. A propósito, o trem será grande. Já estão carregando vagões no pátio de manobras...

Lian-Ee mudara. Não parecia já o rude caçador das Terras Frias. Parecia um cidadão do mundo. Até seu linguajar agora estava semelhante ao raniano comum, que Aldo aprendera em Marte.

*******.

A Mulher.

Em meio de uma nuvem de vapor a locomotiva se deteve. O trem de vinte vagões foi desmembrado pelas máquinas de manobra. Veículos militares encostaram para carregar os suprimentos a serem distribuídos nos postos avançados.

Numa giratória, embutida num poço circular, a locomotiva foi girada e colocada à frente da nova composição que partiria ao dia seguinte. Água e combustível foram carregados na locomotiva e seu carro auxiliar. O fogo foi apagado para limpeza geral e a turbina silenciou. Ao dia seguinte estaria pronta para a longa viagem de retorno à capital.

–Parece a Terra – pensou Aldo.

*******.

Deixaram as espadas no depósito da estação.

–Não pretenderá que demos a impressão de incivilizados, não? – tinha dito o chefe Lian-Ee perante a estranheza de Aldo – na cidade, espadas não têm serventia.

Aldo não respondeu. Apertou a pistola marciana por baixo da túnica.

Pegaram sua bagagem e abordaram o vagão de passageiros; relativamente cômodo, com compartimentos separados; cujos bancos transformavam-se em camas.

–Reservei um compartimento para Gamal e os outros – disse Lian-Ee – Nós deveremos compartilhar o nosso com outros dois passageiros.

–Espero que os companheiros de viagem sejam suportáveis – disse Aldo.

Entraram no compartimento contíguo ao dos caçadores e colocaram as mochilas no bagageiro, acomodando-se nas poltronas forradas de couro de wok.

–Não está mal – disse Aldo – queria que Inge me visse agora.

*******.

Após duas estações embarcaram os passageiros que reservaram os lugares vazios; um jovem legionário de folga e uma jovem mulher elegantemente vestida.

A composição, agora com 44 vagões, cobrou velocidade, puxada pela locomotiva cuja turbina gemia como um animal ferido correndo na tundra congelada, deixando atrás uma esteira de vapor que se condensava no ar frio.

Aldo pensou num antigo filme russo que vira anos atrás sobre o trem Transiberiano. A monotonia da viagem produziu o esperado sono em Lian-Ee e no jovem legionário, que inclinaram suas cabeças e dormiram profundamente, embalados pela cadencia dos trilhos. Aldo estava excitado demais para dormir. Tudo era novo para ele, e a mulher o notou.

–É a primeira vez que viaja em trem, caçador?

–Sim (e não minto) – pensou, sem lembrar que quando criança viajara de trem com seus pais por toda Europa e o Japão.

–Vai à capital para vender peles, presumo.

–Presume corretamente. E a senhora?

–Senhora me envelhece. Meu nome é Zhara – disse ela rindo.

–Eu sou Al... Al-Do.

Zhara Byzar aparentava 25 anos, alta, forte, cabelos cor de avelã trançados num coque na nuca, olhos grandes e verdes. Estava com vestido de veludo marrom até os tornozelos, onde assomavam suas botas de Wok. Um casaco de pele de raposa das neves completava sua vestimenta, junto com uma capa de lã preta com capuz.

–Também vou. Moro lá. Na fronteira tenho minha família. Nasci aqui. Mas você por sua roupa é um vurians das Terras Frias, estou correta?

–Está. É a primeira vez que vou à capital.

–Imaginava isso.

–Se não for pedir demais, gostaria de uma lista de lugares de interesse.

–Claro! Será um prazer. Você me parece mais... – e aí ela baixou o tom – mais civilizado do que seus compatriotas.

–Não sei se isso é um elogio...

–É, sim. Ao chegar à capital, lhe mostrarei os lugares interessantes.

Aldo sorriu. A viagem não seria tão maçante, depois de tudo.

*******.

Quanto mais perto de Taônia, mais sinais de civilização, campos cultivados, casas de campo, pequenas cidades, complexos industriais, fábricas menores... Nos últimos vinte kms o trem corria dentro da cidade.

–São subúrbios, bairros. Falta pouco para minha estação. Uma antes da central.

–Tivemos uma boa viagem e umas excelentes conversas – disse Aldo, que nesta altura já sabia que ela era médica de um importante hospital.

–E poderemos ter outras. Neste cartão está meu número de comunicador e as coordenadas de minha casa.

–Obrigado Zhara. Assim que me desocupar dos negócios, procurar-lhe-ei.

–Boa viagem.

Na penúltima estação, Zhara abandonou o trem, que retomou sua agora lenta marcha por entre os edifícios. De tanto em tanto cruzava com outros trens menores, que vinham em direção oposta pelo emaranhado de trilhos dessa região densamente povoada. Finalmente, Aldo pôde apreciar a enorme Estação Central, onde começavam todas as ferrovias do Império.

*******.

Taônia.

A Estação Central era um enorme edifício de teto arredondado; onde os trens entravam, descarregavam os passageiros e saiam lentamente de ré, entrando nos desvios para os grandes galpões de carga e descarga.

Os caçadores com suas mochilas; dirigiram-se até as grandes portas de saída que davam a uma avenida movimentada, onde carros e pessoas circulavam. Aldo, deslumbrado e admirado, procurava não perder detalhe, sem sucesso.

–Nosso amigo está deslumbrado – disse Lian-Ee.

–Deslumbrado! É a palavra – disse Aldo.

–Não sei como será seu mundo – disse Gamal – mas parece que é a primeira vez que ele vê um terminal de trem.

–Não é a primeira – disse Aldo – na Terra há terminais maiores do que este. O que me deixa estupefato não é o que vejo, mas a idéia do lugar em que estou. De onde eu venho pensam que o Gopak Uio é um mundo morto, com atmosfera venenosa.

–Mundo morto? Atmosfera venenos...? – disse Gamal engasgado com o riso.

–Que ignorantes – comentou Lian-Ee, mais preocupado em achar o recibo de carga nos bolsos das botas.

Estavam na saída e o chefe Lian-Ee dirigiu-se ao guichê para tratar da carga.

Depois, juntou-se aos outros e disse:

–Amanhã viremos com um veículo e retiraremos a carga. Vamos para um hotel, que precisamos descansar os ossos.

–Sim, preciso tomar um banho e sair – disse Aldo.

–Sair? – Lian-Ee fitou o terrestre de cima a abaixo – Para onde?

–Quero percorrer a cidade. Faz muito, mas muito tempo mesmo; que não vejo uma deste tamanho. Além do mais quero encontrar uma pessoa.

–Sim, já sei, era o que faltava! Certo... Algum voluntário para acompanhá-lo para que não se perca nem se meta em encrencas?

–Eu, chefe – disse Gamal.

–Claro, tinha que ser. Vocês dois são uma boa dupla de pilantras! – resmungou o chefe Lian-Ee.

*******.

À noite de Taônia era agitada apesar dos oito graus negativos, segundo o pentacorder. Tavernas, bares, restaurantes, locais de baile, cinemas e teatros estavam concorridos. Os cidadãos estavam bem vestidos e alimentados. Divertiam-se e gastavam. Lojas de roupas, sapatos e alimentos abriam até entrada a noite.

A segurança era absoluta, duplas de policiais patrulhavam as ruas a intervalos regulares, veículos de patrulha passavam a velocidade reduzida, observando o movimento de pedestres.

Seus veículos movidos a hidrogênio eram melhores e mais bonitos que os da Terra. Grupos familiares passavam em automóvel, rumo a lugares de diversão.

Casais de namorados abraçavam-se nas praças, envoltos em seus abrigos de peles.

Aldo e Gamal passearam pelas avenidas principais, observando tudo, vitrines de lojas, anúncios de teatro ou cinemas. De repente Aldo parou numa loja de televisores, onde alguns estavam ligados para demonstração.

–Espera, Gamal. Quero ver isto.

–Televisores? Não temos energia na aldeia...

–Quero ver o noticiário.

Uma bela jovem entrevistava um velho e sério professor.

–Os novos motores nos permitirão sair ao espaço com segurança, professor?

–Sim, senhorita – respondeu o cientista Khanz Wert – As experiências nesse campo permitiram a fabricação dos novos motores de avião de grande potência, que como todo o mundo sabe, já estão funcionando.

–É verdade que Sua Suprema Inteligência deu prioridade à sua pesquisa, chegando até colaborar? – perguntou a jornalista Tules Uio.

–Sim, nosso Mui Amado Imperador têm supervisionado pessoalmente meus projetos. É uma grande inspiração e uma honra para mim, cada vez que Sua Suprema Inteligência visita meu laboratório para colaborar.

–É verdade que ele tem dado valiosas sugestões?

–Sim, todos sabem que nosso Mui Amado Imperador é um cientista muito capacitado em muitas áreas. É de domínio público que têm contribuído para a pesquisa em diversos campos, sempre que suas altas ocupações lhe permitem.

–Obrigada por suas valiosas informações para Comunicações Taônia.

–Eu agradeço a oportunidade.

Aldo ficou pensativo.

–Mais uma faceta do Impiedoso – pensou.

*******.

–Vendi tudo – disse Lian-Ee na manhã seguinte – só falta fazer as compras.

–Ótimo – disse Aldo – só lamento que termine meu passeio.

–Ainda vamos demorar. Tenho que comprar, despachar a compra, reservar passagens... Aqui não é tão fácil consegui-los como em Ersgok.

–Lian-Ee... Necessito dinheiro para fazer umas poucas compras.

–O que vai comprar?

–Coisas que vi e que farão falta depois. Devolverei tudo, tenho ouro.

–Tem ouro? Onde?

–Na nave tenho ouro marciano, máquinas e engenheiros que podem copiar estas moedas tão perfeitamente que nem o Impiedoso seria capaz de diferenciá-las.

–Da sobra das compras empresto um quarto. O resto é para meus homens.

*******.

Aldo comprou roupa taoniana comum. Numa barbearia cortou cabelo e barba à última moda do país. Logo entrou numa livraria e comprou livros de história, uma biografia do imperador e o Atlas do Gopak Uio. Finalmente encerrou-se no quarto do hotel para estudar. Faltando dois dias para partir, Aldo sentiu-se preparado. Vestido como um taoniano, apresentou-se no quarto de Lian-Ee.

–Vou sair – disse.

–Grandes lagartos! Que elegância!

–Obrigado. Não me esperem à noite. Virei amanhã.

–Vai ver de novo aquela mulher do trem?

–Preciso dela como camuflagem para andar por certos lugares.

–Que lugares?

–O palácio imperial e alguns estabelecimentos oficiais. Zhara é uma médica muito importante e conhece muitas pessoas.

*******.

Zhara estava frente do espelho, quando tocou o comunicador.

–Sim?

–Zhara!

–Quem é?

–Al-Do.

–Não lhe esperava tão cedo.

–Liguei apenas para avisar que vou.

–Venha agora mesmo. Onde você está?

–Ainda no hotel.

–Pegue um carro de aluguel. Estou esperando.

Aldo saiu da cabina pública de comunicação e chamou um táxi. No caminho acariciava a pistola marciana sob as suas roupas.

*******.

Perto do palácio imperial, estava a prisão onde estavam os presos políticos.

–Só os presos políticos. Os criminosos comuns são levados para o outro lado do Gua Ers. Para a ilha Lfer.

–Fascinante – disse Aldo, lembrando que Gua Ers significa Mar Esmeralda e Lfer significa Inferno. – O que há que fazer para ser preso político?

–Falar mal de Sua Suprema Inteligência, reclamar dos impostos, colaborar com os Rebeldes Yord...

–Fascinante! – disse Aldo.

Estavam sentados num pequeno bar com grandes janelas para a avenida, de onde tinham uma visão panorâmica da praça, o palácio e outros prédios públicos.

–Pare de dizer “fascinante” e diga-me se você é um rebelde Yord – disse ela com os olhos em fogo.

Aldo surpreendeu-se com a súbita mudança da mulher.

–Você é um imundo Yord!

–Não, garota, calma! Não sou um... Yord? Nem sei o que é isso!

–O quê você é, então?

–Um caçador das Terras Frias.

–Por quê apareceu agora vestido como um taoniano?

–Para não chamar a atenção com as minhas roupas de caçador. Nunca estive aqui antes, quero conhecer a cidade e me divertir. Se eu fosse o centro permanente da curiosidade geral, isso seria impossível. Entendeu?

–Não engulo essa história. Você não é um vurians. Suas feições são parecidas, mas não muito. Conheço essa gente. Nasci na fronteira, lembra? Você tem todo o jeito de ser do espaço exterior. Talvez um Yord enviado pelos xawareks para nos espionar.

–Xawareks? Lian-Ee os mencionou, mas não falamos mais no assunto...

–Já está me irritando!

–Você venceu. Contarei a verdade se promete não abrir a boca depois.

–Não prometo nada.

–Se eu contar, tem que prometer que não me delatará, do contrário você não sairá viva deste lugar – disse Aldo com frieza.

–É tão importante assim? – A jovem não esperava um desfecho tão perigoso.

–É importante, sim. Pense agora. Depois será tarde.

A curiosidade feminina é comum em todos os planetas da classe Etar:

–Pensei. Prometo não contar a ninguém.

–Venho de outro mundo.

–Enviado pelos xawareks?

–Não, já disse que não. Nem sei o que são esses... Xawareks.

–Os xawareks vivem lá encima em...

–Não me interessam eles. Eu venho do terceiro planeta a partir de Ra.

–Da Terra? Porquê não disse antes? – disse a jovem com um suspiro de alívio.

*******.

Saturno estava cheio; iluminando a cidade com surpreendentes cores. Pelos padrões taonianos era um bonito dia. Aldo e Zhara saíram do aconchegante bar e caminharam devagar pela bela praça nevada, agasalhados em seus abrigos de peles.

–Não sabia que vocês conheciam a Terra – disse ele.

–Claro que sim!

–Como a conhecem?

–Os cientistas captam suas transmissões, inclusive imagens de TV.

–Claro! Devia ter imaginado...

–Nossos astronautas já capturaram algumas pequenas naves automáticas que vocês mandaram e estudamos sua ciência. Isso tem sido muito útil.

–Estou chocado.

–Por quê? Sendo um homem do espaço, você deveria saber que mais tarde ou mais cedo, seriam percebidos.

–Tem razão. Há muito tempo que sabem que a Terra está habitada?

–Sim, nosso programa espacial está voltado para sua conquista.

*******.

CONTINUA EM:

"AMO MEU IMPERADOR..."

*******.

O conto A MULHER forma parte integrante da saga inédita

Mundos Paralelos ® – Fase 1, Volume 3, Capítulo 21, Páginas 51 a 56,

cujo inicio pode ser encontrado no Blog Sarracênico - Ficção Científica e Relacionados, sarracena.blogspot.com.

O volume 1 da saga pode ser comprado em:

clubedeautores.com.br/book/127206--Mundos_Paralelos_volume_1

Gabriel Solís
Enviado por Gabriel Solís em 05/01/2015
Código do texto: T5090966
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