Guerra da Água
Miguel Carqueija
Sob um céu abrasador eu e Arlim nos arrastávamos por entre as pedras e touceiras
do capim brabo, por onde esvoaçavam nuvens de mosquitos. Nossos próprios
objetivos imediatos haviam-se tornado nebulosos: sobreviver, localizar água, escapar ao inimigo ou persegui-lo... de qualquer forma tínhamos de nos mover; ali, naquele deserto ressequido, não nos sobravam muitas opções.
Barbudo como eu, Arlim já parecia um candidato a Robinson Crusoé; tomando uma seringa de água – uma das poucas que nos restavam – balbuciou exausto:
- São Pedro bem que podia nos dar uma colher de chá...
- É pouco provável – respondi, engolindo em seco. – Não se vê nem um fiapo de nuvem... a não ser as de mosquitos, é claro.
- Mas aqui perto tem tanta água... eis a ironia da sorte.
- Em que a Terra foi transformada! Tudo por causa dessa humanidade metida a besta...
- A essa altura não adianta nada reclamar ou filosofar, Sávio. Temos é que encontrar essa bendita água antes de virarmos esqueletos ressequidos! Que nem aquela visão do profeta Ezequiel...
- Ainda acho incrível a destruição do nosso grupo...
- Você já nem fala mais como soldado, Sávio. Éramos um regimento.
Soldado, dizia ele? Regimento? Éramos um simulacro, apenas isso. Já não se fazem exércitos como antigamente.
- Ui! – dei um grito abafado. – Acabo de espetar a mão num cacto.
- Tome mais cuidado, irmão. Ah, aqui tem umas batatas bravas, vai dar para enganar a fome...
Ele arrancou uns tubérculos insignificantes. Poderíamos fazer uma brasa com o auxílio de gravetos, mas valeria a pena? Tínhamos sido trezentos; mais de dois terços haviam morrido e o resto se dispersara na caatinga braba.
Mas acendemos o braseiro. A fome era grande e era preciso colocar alguma coisa nos nossos debilitados estômagos. Depois, a contragosto, fiz uso de uma das minhas últimas seringas de água.
- Veja que estamos quase no alto do outeiro, Sávio. Talvez dê para avistar alguma coisa.
Ou sermos avistados, pensei. Não sei se poderíamos contar com a Convenção de Genebra ou qualquer ato de boa vontade da parte do inimigo. Mas segui Arlim; não havia muito mais o que pudesse fazer.
: Descobrimos que aquele cume, bem disfarçado por arbustos silvestres, dava um ótimo mirante para longa distância. Descansamos nossos rifles ERB-42 na terra e espiamos, extasiados: lá longe avistava-se o açude Esperança, as terras vermelhas e marrons que o circundavam e, sim, a vila improvisada que o inimigo montara junto à sua base. Algumas casas de campanha, feitas de material pré-fabricado (notadamente o indispensável magiplast), já se encontravam de pé e inteiramente acabadas. Eles eram rápidos, sem a menor dúvida.
- A cabeça-de-ponte no açude... eles já fizeram! – rosnou Arlim, cerrando o punho.
- O que você esperava? – observei com amargura. – O exército inimigo, aproveitando-se das deficiências do nosso efetivo – e isso devemos ao desleixo dos nossos políticos e governantes, que sucatearam as nossas Forças Armadas – bem, esse exército inimigo nos desbaratou. E agora eles têm o que queriam: a água!
- Será que o Norte está tão seco assim? Eles precisam disso?
- O mundo lutará até a última gota de água, você sabe. Brigadas internacionais lutam na África Equatorial e ao longo do Ganges, na Índia... e todo o Sul e o Norte lutam no Rio Amazonas...
- Mas aqui, Sávio, onde a água já é tão escassa... por que? Populações miseráveis foram expulsas a tiro, massacradas...
- O homem se tornou muito violento e egoísta. A vida humana já não tem nenhum valor...
Tristes, deprimidos, ficamos a observar aquele imenso lençol d’água que, a partir de agora, não estaria mais ao alcance dos nossos. Observamos a borda, a encosta, a cidade castrense lá embaixo... e então Arlim falou:
- Está pensando o que eu estou pensando?
- Sim, creio que eu pensei a mesma coisa, mas não... é difícil, é perigoso demais...
- Pense bem, Sávio! O que mais nós podemos fazer? Ou antes, o que é que nos resta a perder? Se não fizermos nada vamos morrer mesmo!
- Pode ser que os nossos explosivos consigam... mas será uma barra chegarmos até lá.
- Eu sei. Vamos aguardar que anoiteça e nos arrastar para lá. Como você pode ver, para leste tem umas subidas que facilitam.
Se não morrêssemos antes por desidratação haveria alguma chance; mas eu não me sentia nada animado. A resistência humana tem os seus limites.
Era uma idéia louca, sim. Mas homens desesperados são capazes de tudo, como disse Fred Mac Murray naquele filme do professor distraído.
Teríamos de nos mover vagarosa e sorrateiramente, ocultando-nos em pedregulhos, touceiras, árvores mortas e retorcidas, em qualquer coisa que servisse e, beneficiados pela irregularidade do terreno e por aquela noite que, por graça dos céus, seria de lua nova...
Mas eu não tinha certeza de podermos contar com recurso técnico suficiente. Seria bastante a invenção do Dr. Nobel?
Felizmente havia umas oiticicas que auxiliaram os nossos esforços de avanço ininterrupto sem prejudicar a ocultação.
Ao longe alguns lampiões ainda permaneciam acesos no lusco-fusco. Procuramos discernir, com nossos binóculos, a posição das sentinelas. A escuridão descia rapidamente e, apesar do declive em que seguíamos, esgueirando-nos através de araticuns, aroeiras, braúnas e muricis, a chance de nos avistarem era muito diminuta. Afinal, qualquer pequeno movimento àquela distância poderia ser algum tatu-peba, algum calango, alguma preá.
Conversando em sussurros, fomos acertando os detalhes do nosso golpe. Tratava-se simplesmente de entupir o sangradouro e, pelo conhecimento que tínhamos da infra-estrutura da barragem, a água deveria transbordar em pouco tempo. Até porque a manutenção sempre fôra precária.
- Só mesmo dois loucos como nós – observou Arlim, cinicamente.
Deviam ser umas onze da noite quando finalmente nos vimos no topo da barragem, a pouca distância do sangradouro que despejava um contínuo fluxo que se perdia no boqueirão coberto de mata enfezada e tostada porém espessa. Aquela água acabava por se evaporar mais adiante, em contato com a areia e a rocha abrasadoras e nuas, descontado o grande porcentual que se abismava nos pélagos subterrâneos. Mas a razão de ser de um sangradouro, objetivamente falando, é que o açude capta o líquido de algum curso d’água, geralmente de pequeno porte. A acumulação resulta numa grande quantidade; se não houver o sangramento ela extrapolará, quiçá rompendo as paredes e inundando as regiões vizinhas.
Iríamos cometer um crime ecológico.
Felizmente nosso conhecimento sobre a dinamite era razoável e pudemos calcular com bastante exatidão a quantidade e a colocação do explosivo. Depois tratamos de nos afastar.
Nós não pudemos, na verdade, ficar para assistir o resultado. Soubemos detalhes bem mais tarde, graças principalmente ao testemunho de alguns brasileiros, prisioneiros de guerra que lograram escapar com vida. As explosões que provocamos saíram meio abafadas mas obtiveram a obstrução do canal de sangramento. Os soldados foram até o local ver o que havia acontecido; ora, estávamos na época de melhor vazão do Rio Jaguaribe, uma sorte, pois ele poderia estar com o leito seco. Nossos inimigos não entendiam muito de açudes e não entendiam o que estava acontecendo. Quando a parede desmoronou, foram pegos inteiramente de surpresa. A inundação destruiu o acampamento, afogou centenas de homens, inutilizou seu material bélico e ainda atingiu as tropas de reforço que vinham chegando. Representou uma mudança na tendência geral do conflito, uma grande vitória para os brasileiros nacionalistas.
E isto, conseguido por dois semimortos como Arlim e eu.
Rio de Janeiro, 4 a 16 de novembro de 2008.
(imagem do google)
Hoje, água é ouro branco
nos falta até pra beber,
mesmo gemendo ou chorando
temos que nos convencer,
que a água do mar é salgada,
abundante pra valer!
Porém, tem que ser tratada
pra se conseguir beber.
se não houver consciência
e todos se derem as mãos,
há que pedirmos clemência
para achar a solução.
Se a água nos faltar
também faltará a luz,
vamos ter que apelar
pra São Pedro ou pra Jesus...
Antes que aconteça isso
e tenhamos que guerrear
é lutar todos, unidos
pra esse ouro não faltar.
(interação de Isabelle Mara)