A TEMPORALAMINA
A TEMPORALAMINA
Miguel Carqueija
O Dr. Brandão Colosimo fitou, através de suas grossas lentes, o seu amigo Dr. Gregório Lafitte, com sua bengala metálica.
— O que há de tão grave assim que você quer me revelar?
— Veja bem — observou Lafitte, seu rosto enrugado revelando a tensão interior que o dominava — o que vou lhe dizer é estritamente confidencial.
— Ué! Até parece que eu não sou também um médico, e seu amigo...
— Está bem. Vamos começar, porque eu não posso falar muito longamente... já me cansa...
— Sim...
— Há quarenta anos atrás eu e Míriam viajávamos de carro pela rodovia que leva até Porto Alegre... como você se lembra.
— Sim, é claro que eu me lembro, apesar do tempo...
— E você se lembra como eu amava a Míriam. Era a paixão da minha vida, nós estávamos recém-casados...
— Uma moça muito linda, eu me lembro. Tinha uma forte personalidade...
— Pois é, e a certa altura o carro derrapou em cima de uns galhos trazidos por enxurrada, e acabou batendo em outro que vinha em sentido contrário. Míriam ficou presa nas ferragens e morreu, e eu fiquei desesperado...
— Você ficou arrasado durante muito tempo, eu me lembro. Mas por que recordar uma coisa dolorosa do passado?
— Você sabe, Brandão, que eu nunca me recuperei disso. Nunca mesmo. Não me casei, as mulheres que passaram pela minha vida foram meros paliativos. E a vida toda eu sofri com o remorso, pois poderia ter visto o obstáculo a tempo e evitado o desastre. Eu fui o culpado. Eu a matei.
— Ah, pára com isso. Já te falei um milhão de vezes: fatalidades acontecem.
— E se esta não tivesse acontecido, Brandão? Você já pensou como teríamos sido felizes? Teríamos nossos filhos, nossos netos.
— Mas aconteceu, infelizmente, Gregório, e não há nada que você possa fazer para modificar o passado...
— E se houver, Brandão?
— Como diz?
— E se eu lhe disser que descobri um meio de modificar o passado... de maneira que Míriam não tenha de fato morrido naquele dia? De maneira que eu consiga tê-la de volta?
O Dr. Brandão remexeu-se na poltrona, pouco à vontade. Aquele papo estava ficando muito esquisito...
— Prossiga — disse afinal.
— Imagine uma substância que atue na mente humana, de maneira a distorcer a realidade espaço-temporal, permitindo a regressão. Imagine que, se eu tomar essa droga, o meu pensamento consciente possa recuar pela mesma linha do tempo que me trouxe até aqui, de tal maneira que eu me veja na situação em que me encontrava há quarenta anos, minutos antes da tragédia... e aí, por saber o que iria acontecer, eu já poderia evitá-lo.
Brandão sacudiu a cabeça, duvidando da sanidade mental do amigo.
— Isto seria completamente impossível. Esta substância não existe — sentenciou.
— E se eu lhe disser que existe?
Brandão não disse nada.
— O nome dela é temporalamina — completou Gregório. — Eu a inventei.
— Devo lhe dizer que experiências com substâncias alucinógenas como mescalina e LSD não são recomendáveis...
— Oh, pare com isso, Brandão. Não se trata de alucinações provocadas mas de um fato real, que irá modificar o passado e consequentemente toda a minha vida dos últimos quarenta anos
O celular de Colosimo tocou, ele atendeu, era a esposa, querendo saber a que horas ele chegaria. Colosimo explicou que estava na casa do amigo Lafitte e já iria para casa.
Ao desligar sorriu para o amigo:
— Como pode ver, o casamento tem suas desvantagens. Ser rastreado pelo celular... você pode estar querendo algo que depois não será tão agradável... nem sempre é bom reviver o passado...
— Daria tudo para ter pequenos incômodos como esse... ter uma mulher que se preocupa por mim.
— Mas o que você espera de mim?
— Eu tinha que falar com alguém. Lembre-se dos “princípios de incerteza” de Heisenberg, o que vai ocorrer é uma incógnita. Este remédio é feito em parte com terras raras da tabela periódica como o lantânio e o lutério e foi muito difícil sintetizá-lo. Assim sendo, talvez a experiência nem possa ser repetida. Daqui a pouco eu tomarei a temporalamina. Se tudo ocorrer como eu espero minha mente voltará no tempo e toda a minha história pessoal de
quarenta anos para cá será modificada.
— Ora bolas, Gregório! É claro que eu não acredito nisso, mas se tal coisa fosse possível como é que você iria controlá-la? E se a sua mente voltasse ao útero materno?
— Evidentemente já fiz uns testes experimentais, já pude regressar a minutos atrás, horas atrás, conservando-me sozinho e isolado. Já calculei em miligramas a dose exata para me colocar às vésperas do sinistro. Portanto, amigo, só me resta arriscar.
Colosimo estava super-desconcertado quando deixou a residência de Lafitte. Este, porém, ultimava os preparativos para a grande experiência. .
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Alguns dias depois Colosimo e Teresinha passavam de carro em frente à residência de Gregório Lafitte.
— Vamos parar um pouco, ver como ele está passando – disse Teresinha.
— É, mas não vamos demorar. Coitado... fico até constrangido, sabe?
Eles saltaram do carro e Brandão tocou a campainha do portão. Os latidos foram muitos e Colosimo sentia-se incomodado.
— Tenho muito medo de doberman. Puxa, o Lafitte não era de criar esses cães ferozes...
Teresinha olhou com estranheza para o marido:
— O que é que você quer dizer com isso? Ele sempre criou esses bichos, a Míriam gosta de doberman...
Ele deu um tapinha na própria testa:
— É, você tem razão. Devo estar confundindo com outro amigo. Não sei porque, sinto-me estranho...
A criada veio atender, reconheceu-os, prendeu os cachorros e abriu o portão. O casal entrou, e Lúcia foi dizendo:
— Dona Miriam está de cama, com enxaqueca, mas o Professor Lafitte vai atendê-los. Sabem como é... a patroa fica de mau humor quando tem enxaquecas.
— Só quando tem enxaquecas? – perguntou maliciosamente Colosimo, mas Teresinha beliscou-o.
Esperaram na sala de estar e daí a pouco veio o amigo. Gregório estava com a roupa em desalinho e o olho esquerdo roxo, mas Colosimo e Teresinha preferiram não comentar nada. Era gozado — pensou Brandão Colosimo — Lafitte parecia muito mais enrugado que da última vez em que o vira... não fôra há poucos dias atrás?
Gregório atendeu-os de maneira simpática, como era do seu feitio. Mandou a empregada servir algumas bebidas e canapés. Enquanto conversavam banalidades, a certa altura o anfitrião puxou um assunto estranho:
— Lembra, Brandão, de um conselho que me deu uma ocasião? Que nem sempre é conveniente reativar o passado?
— Sim? Eu devo ter dito isso há muito tempo, não estou lembrado.
— Foi há menos tempo do que você julga. Só lhe digo isso: você estava coberto de razão. Hoje eu lamento não lhe ter dado ouvidos.
— Mas do que está falando? — indagou Teresinha, espantada.
Nesse momento porém a empregada trouxe um telegrama acabado de chegar. Lafitte abriu-o, leu-o rapidamente e sorriu beatificamente.
— Milagres acontecem — murmurou enigmaticamente.
Nesse momento o telefone tocou no salão e Lúcia veio chamá-lo:
— Dr. Lafitte, para o senhor.
— Já vou. Se me dão licença...
Ele ultrapassou a porta que dava para a sala grande. Intrigado, vendo que se encontrava só com a esposa, o Dr. Brandão pegou a mensagem e leu:
Era de um laboratório do Rio de Janeiro, e dizia: “Confirmamos lotes de lantânio e lutério à sua disposição, conforme seu pedido”.
— Oh, apenas uma das experiências malucas dele... — disse Teresinha.
— É... isso me lembra qualquer coisa, mas não atino o que seja.
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Meses depois, passando de carro em frente à residência de Míriam Lafitte, Teresinha observou:
— Por que não saltamos e vamos ver como ela está?
— Ah, não sei... essa pessoa é tão negativa, tão implicante...
— Mas é nossa amiga, meu amor, e é tão solitária... ninguém gosta dela, coitada...
— Ela nunca mais foi a mesma depois daquele dia fatídico, quando o Gregório morreu...
— Nem me fale mais naquele acidente horrível. Foi há tanto tempo...
— É. Curioso, às vezes eu sonho com o Gregório... como se ele fosse velho, como se estivesse com a gente até há pouco tempo atrás...
— É que vocês eram tão amigos... bem, vamos parar só uns dez minutinhos para ver como a Míriam está...
A TEMPORALAMINA
Miguel Carqueija
O Dr. Brandão Colosimo fitou, através de suas grossas lentes, o seu amigo Dr. Gregório Lafitte, com sua bengala metálica.
— O que há de tão grave assim que você quer me revelar?
— Veja bem — observou Lafitte, seu rosto enrugado revelando a tensão interior que o dominava — o que vou lhe dizer é estritamente confidencial.
— Ué! Até parece que eu não sou também um médico, e seu amigo...
— Está bem. Vamos começar, porque eu não posso falar muito longamente... já me cansa...
— Sim...
— Há quarenta anos atrás eu e Míriam viajávamos de carro pela rodovia que leva até Porto Alegre... como você se lembra.
— Sim, é claro que eu me lembro, apesar do tempo...
— E você se lembra como eu amava a Míriam. Era a paixão da minha vida, nós estávamos recém-casados...
— Uma moça muito linda, eu me lembro. Tinha uma forte personalidade...
— Pois é, e a certa altura o carro derrapou em cima de uns galhos trazidos por enxurrada, e acabou batendo em outro que vinha em sentido contrário. Míriam ficou presa nas ferragens e morreu, e eu fiquei desesperado...
— Você ficou arrasado durante muito tempo, eu me lembro. Mas por que recordar uma coisa dolorosa do passado?
— Você sabe, Brandão, que eu nunca me recuperei disso. Nunca mesmo. Não me casei, as mulheres que passaram pela minha vida foram meros paliativos. E a vida toda eu sofri com o remorso, pois poderia ter visto o obstáculo a tempo e evitado o desastre. Eu fui o culpado. Eu a matei.
— Ah, pára com isso. Já te falei um milhão de vezes: fatalidades acontecem.
— E se esta não tivesse acontecido, Brandão? Você já pensou como teríamos sido felizes? Teríamos nossos filhos, nossos netos.
— Mas aconteceu, infelizmente, Gregório, e não há nada que você possa fazer para modificar o passado...
— E se houver, Brandão?
— Como diz?
— E se eu lhe disser que descobri um meio de modificar o passado... de maneira que Míriam não tenha de fato morrido naquele dia? De maneira que eu consiga tê-la de volta?
O Dr. Brandão remexeu-se na poltrona, pouco à vontade. Aquele papo estava ficando muito esquisito...
— Prossiga — disse afinal.
— Imagine uma substância que atue na mente humana, de maneira a distorcer a realidade espaço-temporal, permitindo a regressão. Imagine que, se eu tomar essa droga, o meu pensamento consciente possa recuar pela mesma linha do tempo que me trouxe até aqui, de tal maneira que eu me veja na situação em que me encontrava há quarenta anos, minutos antes da tragédia... e aí, por saber o que iria acontecer, eu já poderia evitá-lo.
Brandão sacudiu a cabeça, duvidando da sanidade mental do amigo.
— Isto seria completamente impossível. Esta substância não existe — sentenciou.
— E se eu lhe disser que existe?
Brandão não disse nada.
— O nome dela é temporalamina — completou Gregório. — Eu a inventei.
— Devo lhe dizer que experiências com substâncias alucinógenas como mescalina e LSD não são recomendáveis...
— Oh, pare com isso, Brandão. Não se trata de alucinações provocadas mas de um fato real, que irá modificar o passado e consequentemente toda a minha vida dos últimos quarenta anos
O celular de Colosimo tocou, ele atendeu, era a esposa, querendo saber a que horas ele chegaria. Colosimo explicou que estava na casa do amigo Lafitte e já iria para casa.
Ao desligar sorriu para o amigo:
— Como pode ver, o casamento tem suas desvantagens. Ser rastreado pelo celular... você pode estar querendo algo que depois não será tão agradável... nem sempre é bom reviver o passado...
— Daria tudo para ter pequenos incômodos como esse... ter uma mulher que se preocupa por mim.
— Mas o que você espera de mim?
— Eu tinha que falar com alguém. Lembre-se dos “princípios de incerteza” de Heisenberg, o que vai ocorrer é uma incógnita. Este remédio é feito em parte com terras raras da tabela periódica como o lantânio e o lutério e foi muito difícil sintetizá-lo. Assim sendo, talvez a experiência nem possa ser repetida. Daqui a pouco eu tomarei a temporalamina. Se tudo ocorrer como eu espero minha mente voltará no tempo e toda a minha história pessoal de
quarenta anos para cá será modificada.
— Ora bolas, Gregório! É claro que eu não acredito nisso, mas se tal coisa fosse possível como é que você iria controlá-la? E se a sua mente voltasse ao útero materno?
— Evidentemente já fiz uns testes experimentais, já pude regressar a minutos atrás, horas atrás, conservando-me sozinho e isolado. Já calculei em miligramas a dose exata para me colocar às vésperas do sinistro. Portanto, amigo, só me resta arriscar.
Colosimo estava super-desconcertado quando deixou a residência de Lafitte. Este, porém, ultimava os preparativos para a grande experiência. .
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Alguns dias depois Colosimo e Teresinha passavam de carro em frente à residência de Gregório Lafitte.
— Vamos parar um pouco, ver como ele está passando – disse Teresinha.
— É, mas não vamos demorar. Coitado... fico até constrangido, sabe?
Eles saltaram do carro e Brandão tocou a campainha do portão. Os latidos foram muitos e Colosimo sentia-se incomodado.
— Tenho muito medo de doberman. Puxa, o Lafitte não era de criar esses cães ferozes...
Teresinha olhou com estranheza para o marido:
— O que é que você quer dizer com isso? Ele sempre criou esses bichos, a Míriam gosta de doberman...
Ele deu um tapinha na própria testa:
— É, você tem razão. Devo estar confundindo com outro amigo. Não sei porque, sinto-me estranho...
A criada veio atender, reconheceu-os, prendeu os cachorros e abriu o portão. O casal entrou, e Lúcia foi dizendo:
— Dona Miriam está de cama, com enxaqueca, mas o Professor Lafitte vai atendê-los. Sabem como é... a patroa fica de mau humor quando tem enxaquecas.
— Só quando tem enxaquecas? – perguntou maliciosamente Colosimo, mas Teresinha beliscou-o.
Esperaram na sala de estar e daí a pouco veio o amigo. Gregório estava com a roupa em desalinho e o olho esquerdo roxo, mas Colosimo e Teresinha preferiram não comentar nada. Era gozado — pensou Brandão Colosimo — Lafitte parecia muito mais enrugado que da última vez em que o vira... não fôra há poucos dias atrás?
Gregório atendeu-os de maneira simpática, como era do seu feitio. Mandou a empregada servir algumas bebidas e canapés. Enquanto conversavam banalidades, a certa altura o anfitrião puxou um assunto estranho:
— Lembra, Brandão, de um conselho que me deu uma ocasião? Que nem sempre é conveniente reativar o passado?
— Sim? Eu devo ter dito isso há muito tempo, não estou lembrado.
— Foi há menos tempo do que você julga. Só lhe digo isso: você estava coberto de razão. Hoje eu lamento não lhe ter dado ouvidos.
— Mas do que está falando? — indagou Teresinha, espantada.
Nesse momento porém a empregada trouxe um telegrama acabado de chegar. Lafitte abriu-o, leu-o rapidamente e sorriu beatificamente.
— Milagres acontecem — murmurou enigmaticamente.
Nesse momento o telefone tocou no salão e Lúcia veio chamá-lo:
— Dr. Lafitte, para o senhor.
— Já vou. Se me dão licença...
Ele ultrapassou a porta que dava para a sala grande. Intrigado, vendo que se encontrava só com a esposa, o Dr. Brandão pegou a mensagem e leu:
Era de um laboratório do Rio de Janeiro, e dizia: “Confirmamos lotes de lantânio e lutério à sua disposição, conforme seu pedido”.
— Oh, apenas uma das experiências malucas dele... — disse Teresinha.
— É... isso me lembra qualquer coisa, mas não atino o que seja.
..........................................................................................................................
Meses depois, passando de carro em frente à residência de Míriam Lafitte, Teresinha observou:
— Por que não saltamos e vamos ver como ela está?
— Ah, não sei... essa pessoa é tão negativa, tão implicante...
— Mas é nossa amiga, meu amor, e é tão solitária... ninguém gosta dela, coitada...
— Ela nunca mais foi a mesma depois daquele dia fatídico, quando o Gregório morreu...
— Nem me fale mais naquele acidente horrível. Foi há tanto tempo...
— É. Curioso, às vezes eu sonho com o Gregório... como se ele fosse velho, como se estivesse com a gente até há pouco tempo atrás...
— É que vocês eram tão amigos... bem, vamos parar só uns dez minutinhos para ver como a Míriam está...