Homúnculos

Trabalho numa fábrica de nanomáquinas. Não cheguei a projetar nenhuma completamente, mas já dei minhas sugestões de melhorias em algumas já existentes. Normalmente as sugestões dos que as fabricam, dos que “colocam a mão na massa”, costumam ser bem vistas pelos projetistas. De certa forma, quem as fabrica são os que melhores podem sugerir melhorias no processo de fabricação.

O mundo moderno depende muito das nanomáquinas. Nos primórdios dos tempos elas eram bem simples, na verdade nem podiam rigorosamente ser denominadas de máquinas. Eram mais “coisas”, objetos microscópicos com um formato geométrico específico que o tornava útil para certos processos físicos ou biológicos. As paredes dos toróides geradores termodinâmicos, por exemplo, nada mais eram do que incontáveis objetos serrilhados numa direção específica que defletia preferencialmente as moléculas de gás de seu interior numa direção majoritária, causando um efeito em cadeia que, no fim das contas, criava um fluxo de gás numa direção específica que transformava o calor externo diretamente em energia, uma tentativa de transformar o caos termodinâmico numa corrente de gás que podia ser aproveitada por uma turbina, gerando energia praticamente do “nada”. Como todos sabem, mensagens que, de forma misteriosa mas perfeitamente comprovada vinham de um futuro sombrio nos avisava do perigo disto, e a tempos estes geradores termodinâmicos foram abolidos. Mas vez ou outra volta a surgir algum maluco tentando “reverter” as leis da entropia. Deixemos isto pra lá, que os censores científicos sabem muito bem coibir tais pesquisadores mais ousados e inconsequentes, esses malucos que tentam criar sua próprias versões dos "demônios de Maxwell". Se depender dos zelosos censores, ninguém nunca neste mundo irá novamente tentar transgredir a segunda lei da termodinâmica... É algo que, digamos, PODE ser feito, só que... NÃO DEVE SER FEITO!!!!

Desculpem-me, vou voltar ao início da discussão, da qual me desviei um pouco. Dizia que nos primórdios as ditas “nanomáquinas” eram mais objetos microscópios com um formato geométrico interessante do que uma máquina, com engrenagens, alavancas, etc... Sua construção era bem interessante, uma sequência genética de nucleotídeos, distribuídas unidimensionalmente em meia fita de DNA, que espontaneamente se dobrava feito um origami (me desculpem de novo a analogia imperfeita, já que um origami, feito de uma folha de papel, é bidimensional), no formato desejado. Seres orgânicos, certas bactérias específicas, participavam ativamente da replicação deste código projetado, mas não de sua “fabricação” propriamente dita. Por muito tempo estes objetos microscópicos foram suficientes para a humanidade. Criavam superfícies perfeitamente anti-aderentes, que nunca acumulavam sujeira porque seu formato a tornava incapaz de segurar qualquer micropartícula! Lentes “planas” para telescópios ópticos cujas funções de refração podiam ser escolhidas à vontade, e nos permitiu observar vida em exoplanetas muito antes de sermos capazes de chegar até eles! Mas é da natureza humana sempre querer mais, e este tipo de nanomáquina logo nos pareceu insuficiente.

Foi quando passamos a projetar mecanismos mais complexos, com microcomponentes móveis capazes de interagir com mais precisão com o mundo microscópico. O problema é que mesmo máquinas simples são difíceis de projetar desta forma automática. Imaginem então máquinas mais complicadas! Pense num relógio mecânico! Sua corda, as engrenagens, o mostrador, os ponteiros... Imaginem que sejamos capazes de criar cada componente deste relógio em escala microscópica, usando nosso método de “origami”, de nanoobjetos dobrados cada um por si a partir de uma sequência de nucleotídeos devidamente projetada. Agora... imaginem projetar cada componente para que apareça na posição correta dentro do mecanismo completo! Mais ainda: imagine-os surgindo dispostos de uma forma que no fim do processo, o conjunto todo comece a funcionar num relógio nanoscópico funcional, inclusive com a energia potencial necessária para seu funcionamento já armazenada na sua nanocorda torcida, surgida espontaneamente no centro do mecanismo. Difícil acreditar que isto possa dar certo, né? Mas acreditem, foi o que tentaram fazer a muito tempo, nas primeiras nanomaquinas “reais”, ou sejas, que realmente eram impulsionadas por um mecanismo inteligentemente projetado!

Rapidamente ficou claro que o nível de complexidade que se podia conseguir destas nanomáquinas geradas espontaneamente era bem limitado! Bem inferior à complexidade de um simples relógio de pulso macroscópico, a propósito... Os nanoprojetistas começaram então a adotar uma nova posição: criar “nanomáquinas espontâneas” mais simples que, combinadas numa nanolinha de montagem, podiam produzir nanomáquinas mais complexas! Bem, nem preciso dizer que tais nanomáquinas complexas produzidas assim acabariam elas próprias fazendo parte da nanolinha de montagem, capazes de criar assim nanomáquinas cada vez mais complicadas. A imaginação era o limite!

Remédios para a cura do câncer e corretores de defeitos genéticos congênitos surgiram nesta época! Incontáveis mecanismos nanoscópicos injetados na corrente sanguínea do doente! Nanorobôs mecanicamente inteligentes o suficiente para reconhecer e sabotar o DNA de células cancerígenas, desativando-as! Ou maravilhas ainda mais complexas, capazes de por exemplo reconhecer genes da hemofilia ou daltonismo e consertar os genes de cada célula, tornando-a sadia. E no auge da época, nanorobôs capazes de desativar o cromossoma 21 adicional de cada célula do corpo do doente que causava sua síndrome de Down. Ver o paciente se recompondo pouco a pouco, suas células se adaptando à nova morfogênese sadia dos tecidos, era emocionante. Mas mesmo isto tinha limite! E, como sempre, queríamos mais!

Era inevitável existir um limite para o que nanomáquinas, por mais complexas que fossem, eram capazes de fabricar. A inteligência artificial custava a surgir! Certamente não surgiria espontaneamente, sonho infundado de muitos... Parece que não é assim que a inteligência aparece!

Segundo alguns estudos matemático-filosóficos, ela tendia ao infinito, era inalcançável. Temos hoje máquinas capazes de simular muito bem a inteligência! Até certo ponto nos enganar! Os tribunais atuais estão lotados de processos de humanos que, desafiando toda a razão, se apaixonaram e desejam se casar com seus companheiros robóticos, desafiando todas as regras. Uma análise rigorosa sempre mostrava que os robôs estão simplesmente se comportando como deviam, por mais humanos que pareçam: como robôs!! Mas, como diz o velho ditado, o amor é cego... Nada tira das cabeças dos humanos apaixonados que eles são perfeitamente correspondidos por seus companheiros cibernéticos, por mais que estudos científicos sérios mostrem que isto não passa de ilusão, de realimentação positiva de afeto perfeitamente simulada por uma máquina com altíssima capacidade de processamento. Bom, fé sempre foi algo difícil, ou mesmo impossível de se questionar...

Perdão! Percebo que mais uma vez perdi o fio da meada! Me distanciei muito da linha de raciocínio inicial. Tento voltar: logo os projetistas de nanomáquinas perceberam que, para construir nanomáquinas mais complexas, era inevitável a necessidade de existir uma certa consciência mais elaborada, quem sabe mesmo orgânica, no meio deste processo. É aí que entro eu. E também todos os meus companheiros de trabalho.

Devo chamá-los de irmãos?? AH, é mais do que isto! Irmãos têm diferenças substanciais em seus DNAs, pois são uma combinação aleatória dos DNAs do pai e da mãe! Nós, irmãos de fábrica, tendo todos DNAs idênticos, somos no fundo mais que irmão! Somos é milhares de IRMÃOS GÊMEOS!!! Ficou logo claro que seria mais fácil assim! Sem variações! Todos tendo exatamente o mesmo DNA, seríamos mais fáceis de sermos treinados e começarmos a trabalhar na fabricação das nanomáquias.

Se nos sentimos mal com isso? Nos sentimos, de alguma forma, “escravizados” por nossos criadores para exercermos nossas funções? De forma alguma!!! Entendam nosso ponto de vista: fomos projetados e criados para fazer isto! Este é nosso propósito! Nunca existiríamos, nossa existência não faria sentido algum se não fosse para fazermos parte de uma fábrica de uma nanomáquina específica! Não nos sentimos escravos da nanoindústria humana, muito pelo contrário!!! Gostamos de ser o que somos, e viveremos nisto cada segundo de nossas nanovidas!

Não se iluda, eu não sou muito diferente de você! Pra começo de conversa, nós temos praticamente o mesmo DNA! Ambos somos representantes da espécie humana! O fato de você ser um organismo macroscópico e eu uma versão nanoscópica de um ser humano é só mero detalhe. Meu nanocérebro tem algumas centenas de nanoneurônios, enquanto o seu tem quase 100 bilhões? Há muito tempo está provado que a complexidade do sistema nervoso está na complexidade das interconexões das células, e não em sua quantidade... Digamos que sou tão inteligente quanto você porque aproveito muito melhor as poucas células que tenho...

Vivemos bem menos que vocês, isto é fato! É uma função matemática: quanto menor o ser vivo, menor seu tempo de vida! O homúnculo mais velho que conheci, um querido amigo de outra matriz de DNA, operário de uma nanofábrica de um outro tipo de nanomáquina, morreu com 7 meses de vida! Eu já estou com 4 meses de idade, e sinto que minha aposentadoria está próxima.

Minha aparência também nem é tão estranha se você relevar alguns aspectos que julga importante, apesar de não serem. Você conseguiria por exemplo isolar células individuais de minha pele. Eu já acho isto natural... Estranharia o fato de eu não ter propriamente ossos, e eles estarem tão intimamente entranhados com os músculos. Entenda, no meu nível de mundo esta separação não faz muito sentido! Não preciso ter ossos e músculos separados, ambos podem estar combinados nas mesmas células estruturais! Em nossa escala de mundo, isto é suficiente! E muitos dos seus órgãos importantes (coração, pulmão, estômago, rins...) em nosso mundo são totalmente inúteis! Somos tão pequenos que não precisamos de um aparelho circulatório, os nutriente simplesmente se difundem entre nossas células! Não respiramos, pois de certa forma deglutimos (praticamente “bebemos”) o oxigênio necessário ao nosso metabolismo.

Estou agora descansando em minha casa, minha confortável nanocasa, ao fim de uma jornada de trabalho produzindo algumas das nanomáquinas que certamente serão muito útéis para você em algum aspecto! Ou para alguém que você conhece. Fabrico algumas centenas de nanomáquinas por dia, sem me entediar, sempre seguindo à risca as instruções de montagem dos nanoprojetistas. Não me canso de fazer isto, nem meus companheiros da fábrica! Gostamos disto, achamos prazeiroso! Fique feliz, pois eu me orgulho muito de fazer isto! Dia após dia! É meu objetivo!!! E existo para isto!!! Eu só fui criado para isto!!!

AH, a biblioteca que tenho em casa é invejável!!!! Sento-me agora em minha nanopoltrona, e leio um nanolivro codificado em DNA, sentindo e decodificando sua sequência de nucleotídeos. Tateando prazeirosamente os caracteres proteicos codificados naquele novelo de núcleo celular, milhares de vezes multiplicados em bactérias livreiras. As proteínas se codificando em letras e palavras, por sua vez se combinando em frases, sentenças... Fazendo-me lembrar, apesar da diferença de escalas e tempos, que eu também tenho essência humana! Que isto também me pertence!

Enquanto “leio” tranquilamente “A Divina Comédia” sentindo em minhas mãos as proteínas codificadas naquele novelo, como um primitivo inca lendo os nós de seu quipu, Sarcodina começa a se aconchegar ao meu lado. Ela é minha ameba de estimação! Eu gosto muito das amebas! Alguns de meus irmãos preferem paramécios como bichos de estimação, mas não simpatizo muito com seus corpos rígidos! Prefiro as amebas e seus corpos amorfos, sua superfície citoplásmica livre para apresentar a configuração que elas desejarem!

Acaricio levemente sua membrana celular suave, aveludada. No começo, quando mais nova, ela até tentou me fagocitar algumas vezes! Me estendia indomável seus pseudópodes sobre minhas nanomãos, tentando capturá-las... Conseguiria reconstruí-las, caso algum acidente acontecesse? Acho que sim, conheço casos de homúnculos que conseguiram se recompor por divisão celular após perderem partes de seus corpos. Mas prefiro nem arriscar. Mesmo possível, acredito que seria bem doloroso. Enfim ela percebeu ser desnecessário tentar me deglutir, que podíamos ser bons amigos! Hoje a alimento sem sustos, sua membrana celular treinada a não tentar me envolver, me digerir, sabendo que a comida virá sem esforço! Que pode fagocitar tranquilamente as bactérias picadas que lhe ofereço, e que ainda mais facilmente pode fazer a pinocitose das gotículas de glicose hidratada que minhas mãos depositam com carinho sobre sua membrana celular...

Bom falar com você, humano macroscópico! Meu irmão gigante!! Tento tecer estas palavras num DNA virgem, uma sequência monótona de "AGCTAGCTAGCTAGCT..." desenvolvida exatamente para ser trabalhada, reescrita. Enrolo as proteínas num DNA sem função, cada proteína básica representando uma letra do alfabeto. Ou quase isto: sendo 20 os aminoácidos básicos codificáveis numa fita de DNA, e 26 as letras do alfabeto latino, algumas adaptações precisam ser feitas na escrita...

Nem sei se isto dará certo... Se minhas memórias algum dia poderão ser lidas por vocês, humanos macroscópicos. Espero que sim, não custa nada tentar! Enviarei minhas ideias inserindo isto tudo no DNA da Sarcodina, tentando fazer isto sem interferir em sua própria propagação, em suas funções vitais. Emendarei num trecho inativo de seu DNA, para que a informação seja replicada sem interferir em seu metabolismo. Espero conseguir... Bem, se agora você me lê, é sinal que, de um jeito ou de outro, minha ideia funcionou! Fico feliz com isto!

*** FIM ***