287-O ENCONTRO DAS ÁGUAS
Ante o ímpeto da avalanche de lama que desce pela encosta da montanha, Juan Pablo grita para a mulher:
— Vamos, Carmen, rápido, me dê a mão.
— Segura a Julita!
— Ela já está a salvo, em cima do barranco. Venha!
Engolfados pelo barro negro que desce numa torrente forte pela estreita cava, têm de agir com presteza a fim de se safarem.
— Graças a Deus! — exclama Carmen, abraçando a filhinha. — Olha só, Juan, como a correnteza vai arrastando tudo!
Com desgosto, Carmen verifica que sua mochila e a sacola de Julita escaparam—lhe dos ombros e foram levadas pela torrente de lama.
— Tô com medo, mamãe! — Chorosa, a menina se agarra à mãe.
— O perigo já passou. — O pai procura acalmar ambas, mulher e filha.
Estão sujos de lama dos pés à cabeça. O barro viscoso encharcou roupas e calçados e a lama se assenta até nas sobrancelhas.
Assim que se puseram a salvo, segurando nos ramos rasteiros dos pinheiros sobre o barranco, puderam ver a situação de perigo pela qual passaram. A lama continuava descendo, um caudaloso rio que já chegava às bordas superiores da vala — uma rústica estrada de terra formada pelo trânsito de animais e pessoas, durante anos sem conta.
— Mas, o que é isso? — Carmen indaga, como que falando para si mesma. É uma mulher alta e magra mas forte. Aparenta ter trinta anos, os cabelos compridos, de natural loiros, agora enegrecidos pelo barro.
— É o degelo fora do tempo. A água derretida pelo calor da atmosfera está descendo por todos os lados da encosta. — apontando para o topo, Juan Pablo explica o fenômeno. — Veja lá em cima: aqueles picos sempre estiveram cobertos por neve, agora mostram o granito. A neve já acabou. E como a quantidade de água é volumosa, desce por todas as ravinas, valas, além dos leitos dos riachos, arrastando o que encontra no percurso: terra solta, casas, árvores e detritos.
— Mamãe, quero voltar.
— Claro, filhinha. Vamos voltar pra vila, lá embaixo.
— Se ainda estiver de pé...— começa Juan Pablo a dizer, mas pára, pois não quer apavorar os seus entes mais queridos. — Vamos voltar à vila. Já está escurecendo.
Com cuidado, vão descendo pelo meio das bétulas e pinheiros, evitando a todo custo aproximarem-se do sinuoso rio de lama.
— Felizmente, o lamaçal está restrito à vala da estrada. Mas vamos depressa, pois a chuva está engrossando. — Juan Pablo toma a filha nos braços e segue na frente de Carmen.
São apanhados pelo temporal no meio do percurso do retorno à vila. As nuvens gordas de chuva desabam em lençóis d´água sobre a encosta pela qual descem. Julita limpa com a mão esquerda o pescoço do pai e encosta sua cabeça, aninhando-se.
Fora uma temeridade ter saído do chalé num dia como aquele, pensou Juan Pablo. Há mais de uma semana, chovia sem parar na montanha. Os gêneros escasseavam no chalé de Pablo e era preciso se reabastecerem. Haviam descido à vila de manhã, sob pancadas de chuvas e momentos de estio. O terreno estava já escorregadio, a neve degelando, misturando-se às folhas e detritos das árvores. A chuva intensificara pelo meio-dia e agora, por volta das três da tarde, prosseguia ensopando o mundo inteiro.
O chalé estava situado a uns dois quilômetros, montanha acima. Masallá, a vila, se situava a exatos dois mil e novecentos metros de altitude e era procurada por centenas de esquiadores e alpinistas. Juan Pablo apreciara a situação da vila e Carmen gostara imenso da região desde a primeira vez em que lá estiveram, há mais de dez anos. Comprou o chalé abandonado e o reconstruíra para ali passarem alguns meses durante o inverno. Julita, com apenas dez anos, era hábil esquiadora e gostava de caminhar por entre as árvores, conversando com esquilos reais e duendes imaginários.
Como não havia sinal de estio, deixaram a vila sob a chuva. Caminhavam a pé. Levavam mochilas às costas, com as compras feitas na vila. A subida seria de apenas uma hora, uma hora e quinze minutos, no máximo.
Nos últimos invernos a bela região tinha se modificado drasticamente. O degelo era constante. Até mesmo no extremo rigor do inverno ocorriam avalanchas e outros fenômenos típicos do verão. O gelo não mais se reconstituíra totalmente no inverno e os picos mais altos da cadeia de montanhas estavam completamente desprovidos de neve — agulhas de granito negro a se elevarem entre as pesadas nuvens. As chuvas eram contínuas e traziam a acidez das fumaças industriais. Florestas, antes de lustroso verde na primavera e no verão, estavam sendo queimadas e destruídas pela “chuva ácida”, que chegava a todos os locais do globo.
Enquanto caminha pelo terreno fofo, escorregadio, carregando Julita em seu braço, Juan Pablo lembra-se de uma conferência a que assistira há algum tempo, através da televisão, feita por uma autoridade em “futurismo”. As palavras do cientista ainda estão frescas em sua memória.
— O fenômeno é universal, porque a poluição é global. — A explicação era dada pelo eminente professor Ernesto Fuentes , cientista argentino profundamente envolvido pelos problemas causados ao planeta Terra pela poluição constante. — Desde que os paises altamente industrializados se recusaram a assinar os acordos de procedimentos antipoluidores, o nosso planeta vem sofrendo agressões sem precedentes. Há mais de trinta anos o Acordo de Kioto vem sendo desrespeitado pelos Estados Unidos, Rússia e China. A atmosfera está cada vez mais poluída e contaminada. A camada de ozônio desapareceu e assim não contamos mais com esta defesa do planeta contra as radiações mortais que chegam não só do Sol, mas de todas as fontes de radiações do universo.
— A degradação do planeta aumenta vertiginosamente, em proporções geométricas.— Continua o professor, cuja conferência atinge tons apocalípticos. — Já temos a constatação dos efeitos devastadores do aquecimento da Terra, com o derretimento das calotas polares. Milhares de cidades situadas às margens dos oceanos, já foram inundadas e destruídas. Nova York, Londres, Tókio, Rio de Janeiro, Buenos Aires – todas estão hoje semi-submersas. Planícies férteis de baixa altitude estão agora sob as águas dos oceanos e mares, cujos níveis subiram, em alguns lugares, mais de vinte metros. Paises inteiros desapareceram: Holanda, Bangladesh, as ilhas situadas na Oceania. O delta do Nilo está debaixo de metros e metros de água. O próprio Egito, que existiu às margens do rio Nilo, foi por este inundado definitivamente, e as águas chegam até às planícies do deserto de Saara, constituindo lagos e mares internos estéreis de vida.
Ao encerrar a conferência, o professor se expressou da maneira mais pessimista possível:
— Inexoravelmente, as águas dos oceanos subirão cada vez mais. Irão se encontrar com as águas que descem das montanhas, cujo degelo está acontecendo até mesmo no inverno. E teremos, então, não mais uma Idade do Gelo, mas sim uma Idade da Água. A Terra será completamente coberta pela água por um período longo o suficiente para a depuração dos venenos nela inoculados por nossa civilização.
O panorama estendido aos assistentes da conferência e aos milhões de tele-espectadores no mundo inteiro, era dramático mas real. E as premissas listadas pelo professor estavam sendo confirmadas.
Sob a chuva forte, gelada e mal-cheirosa, Juan Pablo descia com cuidado, carregando Julita. Carmen passara a caminhar na frente, examinando o terreno, coberto de neve escura de detritos. Pisando aqui e ali, verificando qual o caminho a seguir.
— Brrr...Que frio. Estas roupas enlameadas estão ficando duras. — Juan Pablo fala, mais para animar Carmen e Julita. — Então, menina, como está? — Olha para a filha, que parece adormecida, a cabeça sobre seu ombro direito. A chuva escorre-lhe pelo pescoço suave, lavando a lama e deixando mostrar o tom moreno-jambo da pele fresca.
— Juan Pablo, veja! Lá embaixo! A aldeia foi soterrada pela lama! — Carmen pára e aponta para o local onde, antes, existia a aldeia.
Juan Pablo firma a vista. O que vê o deixa aterrorizado: no local do casario de telhados a pique, cumeeiras de ângulos fechados, agora há um lodaçal imenso. E a lama, em constante movimento, ia arrastando os destroços da vila: vigas de madeiras, seções inteiras de telhados, pedaços de paredes, carros e outros veículos revirados, postes e fios, tudo num emaranhamento sem fim, num caos total. Por entre os detritos, podiam ser vistos corpos. E, pior que tudo, o silêncio. Nenhum grito, nenhum brado, ou zumbido, zunido, um apito, nada...Um silêncio mortal, enquanto o vasto rio de lama, agora sem limites arrastava-se por sobre as edificações, levando tudo de roldão.
— Meu Deus do céu! — Exclamou Carmen. — A lama está arrastando tudo!
Da posição altaneira, uns escassos duzentos metros acima, o casal via a catástrofe. A chuva fustigava cada vez mais grossa, impedindo uma visão melhor.
— Não podemos nem chegar perto. A lama está carregando tudo!
— Venha por aqui. — Carmen segue, caminhando um pouco para o lado. — Vamos subir mais um pouco e ficar debaixo daquele pinheiro maior, ali em cima.
Juan Pablo a seguiu. Os galhos do enorme pinheiro, livres da carga de gelo, elevavam-se a mais de metro sobre o terreno, deixando um círculo livre relativamente de detritos ou de neve. Rapidamente, Carmen limpa, com as mãos enluvadas, uma pequena clareira, suficiente para os três se abrigarem.
— Raios! — Exclama Juan Pablo, enquanto coloca, com delicadeza, a menina no chão. — Parece que somente nós escapamos.
Carmen ajuda-o a tirar a mochila das costas. Ao abri-la, verifica que está quase tudo inutilizado, pois a lama molhara, encharcara e sujara tudo o que estava dentro: alimentos, agasalhos, barras de chocolate e revistas. Carmen tenta limpar as barras de chocolate, enroladas em papel alumínio. Apenas duas pequenas barras estão aproveitáveis. Vou guardá-las para Julita, pensa.
— Está tudo destruído na vila. Não vejo nenhum sinal de gente. — Carmen põe a mão em pala, tentando divisar detalhes da tragédia.— A avalanche está soterrando e arrastando tudo que encontra.
— Estamos encalacrados. — Juan Pablo fala baixo, para não acordar Julita. — Não podemos subir, nem adianta. A esta altura, nosso chalé já foi arrastado pelo rio de lama que também quase nos pegou. E não podemos descer, pois a lama cobre tudo. Não pára de descer
A chuva engrossa. O homem tira seu casaco, úmido e enlameado, e o estende sobre a filha. A mulher aconchega-se à criança, tentando aquecê-la. O entardecer avança rumo à noite. As nuvens baixas também contribuem para que rapidamente a claridade da tarde seja substituída pelas sombras noturnas.
— É o fim. — Juan Pablo fala baixo, entre os dentes.— E essa maldita chuva que não passa. — Há uma nota de desespero e profundo desânimo em seu falar.
Julita estremece e acorda.
— Mamãe, quando a chuva passar, a gente vai sair daqui?
— Sim, Julita — responde a mãe. — Quando a chuva passar, nós vamos embora. E só esperar a chuva passar.
A menina fecha os olhos e volta a dormir.
ANTÔNIO GOBBO =
BELO HORIZONTE 4/JUNHO/2004
CONTO # 287 DA COLEÇÃO MILISTÓRIAS