A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL HUMANA

* Garanto para você que se enveredares a ler por completo, terás de presente uma grande reflexão.

Era um professor de escola primária. Era tudo que ele podia ser ou que estava reservado para ele ser. Coisa de casta, de quem não é filho de família rica ou influente. Jamais darão qualquer importância para o que gente assim diz ou faz. Ainda que faça um dia algo de extrema importância para a humanidade. Nesse caso vão é apropriar do que ele fez, mas não darão crédito. Ter se graduado em um curso de sistemas de informação foi o melhor que ele pode conseguir na vida de gente desimportante que leva. Gente que é tratada como escória da sociedade. Um contribuinte apenas. Fez faculdade particular, como todo contribuinte. Dessas que o próprio Vestibular é fajuto: se passa nas provas até errando todas as questões, caso o contingente de vagas – diga-se pagantes – não se completar. E as mensalidades não justificam o custo-benefício nunca. Que empresa dá oportunidade para quem estudou numa escola cujo dono é um político corrupto ou um empreendedor interessado em lucrar com venda de diplomas?

Sem alternativa ele optou por fazer o curso que fez e na faculdade que fez. Faculdade pública é para os filhinhos de papai que não tiveram tetas de carne para mamar. Filho de pobre tem só que pagar imposto para eles estudarem. Trabalhava de dia e estudava à noite. O dinheiro era a conta para bancar os estudos e a vida de adulto. Por isso é que ele vive de dar aula de ciências em uma escola pública: sobraram contas para pagar depois da formatura e é só escola municipal de periferia, onde ninguém quer lecionar, que aceita um instrutor plebeu. É professor substituto onde dá aula. Usa ainda seu CAT para lecionar. Pode ser que quando ele estiver de porte dos registros finais ele consiga uma remuneração melhor e talvez uma designação mais motivadora também. Quem sabe consegue ministrar suas lições para turmas de secundaristas no período diurno de uma escola particular? Apesar de isso ser pouco provável: só trabalham nessas instituições acadêmicas filhos de rico que não querem fazer nada na vida então vão para elas dar aula com auxílio de forte material didático. O que ensina é o material, por isso custa o olho da cara. Dá para pagar bem o avarento do proprietário da escola e o professor faz-nada e mal o resto dos funcionários. Eles sabem que quem estuda no empreendimento escolar deles pode pagar. O podre é quando esses professores que têm carros do ano e são muito bem aparentados cismam de espalhar a ideia de que o Governo tem que investir na Educação e que o profissional de ensino ganha pouco. No caso deles nunca é verdade. Eles nem têm patrão, só amigos. Deles ou de seus pais. Vamos ser sinceros, né? Mas parece que é legal usar esse discurso.

Mas o momento que aqui registro era de ócio. Esse stress todo passa na cabeça do nosso protagonista é durante a semana. Professores da rede pública quando não estão em greve não trabalham aos sábados. Era um sábado à tarde. Sem direito a lazer, o professor tentava montar uma aula dinâmica para seus alunos interagirem com ele na segunda-feira. Sairia do trivial, ensinaria coisas que não são da grade da escola, mas era para o bem da turma. Meninos pobres que talvez pudessem obter algo de útil com o que ele lhes ensinassem. Haveria o mestre de dizer para eles para sempre tentarem ser autônomos, pois não conseguiriam emprego que lhes satisfizessem. Ele tinha aquela preocupação de ser honesto em tudo com as crianças. Ele só se continha de dar as recomendações impróprias que lhe traziam muita comichão. Tipo: e soneguem impostos.

O conteúdo da grade escolar não os levarão a nada mesmo. O que poderia acontecer é de o porco do diretor, capacho do sistema educativo, lhe podar a intenção. Poderia esse sem escrúpulo ver vantagem para os meninos. Se isso acontecesse, certamente ele iria notificar o professor para o Ministério e aí haveria uma represália contra o bom homem. Nada que desencorajasse: o sistema não sabe penalizar trabalhador. O máximo que faria é deixá-lo na geladeira em casa, recebendo salário sem dar aula. Nessa profissão, quantos não estão nessa situação adorada por políticos de ganhar sem trabalhar? Greve é meio isso e é até bom que eles façam mesmo: têm que ensinar o que não precisa ou que ir para o trabalho tirar inocentes do descanso ou de afazeres que ajudam os pais a viverem sossegados a labuta, tão somente para enganar os discentes.

O professor prepara uns eslaides. Conseguiu um datashow emprestado com um amigo e irá usar seu próprio notebook de 2GHZ de processamento para apresentá-los. Pensava ele em falar sobre inteligência artificial para seus garotos. A ideia era que eles notassem o quão o funcionamento da nossa própria mente influenciou as pesquisas peculiares dessa disciplina. Pretendia começar informando sobre a necessidade de se escrever comandos e dar partida para o computador processar a ordem. Com esse início ele pretendia que os jovens associassem a instrução escrita com a palavra de seus pais quando davam uma ordem. "Vai estudar, menino! Agora!". O "agora" equivale ao pressionar da tecla "enter". Ele imaginou que o primeiro comando seria ensinar a máquina o que é caminhar. Não o verbo. O verbo seria ensinado mais tarde, quando a máquina fosse aprender as propriedades da nossa língua. Num momento desses, o programador deixa de ser só programador e passa também a ser mestre de idiomas. Sofre duas vezes. Se ele não se preparar e ensinar errado, assim o computador irá agir: falando errado. Sem diferença quanto ao mundo acadêmico real.

function Caminhar (){

Escolheu o professor uma linguagem de computação e começou a escrever a função que instrui o computador o caminhar. Ele teve que definir algumas variáveis e entre elas "pernas". Perna direita e perna esquerda. Teve que determinar que não se caminha com menos de duas pernas quem normalmente tem só duas: os bípedes. E que ao iniciar uma caminhada a perna que começar o passo – havia uma instrução que randomizava isso logo na entrada da função – era ultrapassada pela a outra durante certa quantidade de centímetros, quando o oposto acontece. A velocidade com que isso ocorre também era pré-determinada nos argumentos primórdios da rotina. Havia uma variável para isso. Naquele momento o professor não se preocupou com a questão da aceleração que pode ser alterada enquanto andamos. Ficou um caminhar uniforme.

O professor previu um ambiente onde ele colocou fronteiras. O objeto caminhador situava em uma sala com paredes, sofás e mesa. Se ele simplesmente permitisse que o caminhador caminhasse, haveria de vê-lo preso diante de um dos obstáculos tentando ocupar-lhe o espaço que ocupasse. Talvez, caísse. Se fosse um buraco seria certo esse evento. E enquanto ele refletia sobre esse impasse, seu filho de apenas um ano, que aprendera a andar havia poucos dias, perambulava só de fraldas pelo ambiente. Ora trombava em alguma coisa, caía, se levantava e não mais repetia o acontecimento. Quase sempre os imprevistos só ocorriam uma única vez. Na próxima tentativa o garoto se safava. Tomava a decisão certa. Já previa o fato e se esquivava. Coordenado aprendera apenas que o sofá é um obstáculo que o impede de prosseguir o rumo. Das outras coisas, incluindo as paredes, ele mesmo é que deu jeito de associar com o que aprendeu. Malandro.

A mesma coisa não ia dar para ser feito para os objetos no cenário do programa de computador que o professor construía. O caminhador teria que receber instruções de como se proceder com relação a cada objeto com que interagisse. Ainda que isso pudesse ser facilitado, colocando, o programador, no diagrama de classes de cada objeto durante o projeto, uma propriedade que os tornassem iguais em determinado quesito. Dessa forma o caminhador só tinha que detectar essa propriedade nos objetos que surgissem e procurar em seu algoritmo o comportamento correto dele para com ela. Certamente iria encontrar um retorno do interpretador de comandos para a função desviar() ou para a função empurrar().

Disso pintou outra reflexão. Era a respeito da faculdade de voar. O homem não voa, mas outros elementos e seres voam. E tanto o pássaro, quanto o avião têm particularidades em seus voos. O pássaro, por exemplo, bate asas, exceto quando está planando, e o avião é impulsionado por turbinas e suas asas permanecem imóveis o tempo todo. E complica mais se pensarmos na situação: um homem dentro de um avião. Manteremos a ideia de que o homem não voa, mas, para efeito de locomoção ele estaria fazendo exatamente isso. E ainda com a função caminhar em plena disponibilidade, já que ele pode passear pelos corredores da nave durante a jornada. É, tem-se que pensar em tudo isso e cada ação ganha uma instrução. Por isso os algoritmos de automação ou de realidade virtual têm a quantidade enorme de linhas que têm. E os processadores têm que processar cada linha em uma velocidade maior do que a que o objeto estiver se movendo. Capital intelectual altíssimo, bem como desenvolvimento de hardware para isso ficar assim baratinho que nem gostariam que ficasse.

Volta o professor os olhos para seu filho. Garoto esperto. E de pensar que todos nós fomos assim. Aprendemos esse tanto de coisa que passamos para os computadores e muitas outras quase sem ninguém no controle. Só com os exemplos que recebemos. Mais pelo exemplo do que pela palavra. E quando os guris aprendem a ler, pronto, é só pegar um livro para saber mais e mais. Também não dá para fazer isso com os robôs. Pelo menos ainda não. Quero dizer: desse jeito natural ainda não. É por isso que insistimos que nossas crianças aprendam a ler logo. Poupa-nos muito trabalho. A televisão não serve para ensinar. Nela as crianças aprendem que um animal pode morrer centenas de vezes ou que eles podem cair de um penhasco bem alto e sofrerem apenas arranhões. Os videogames serviriam, mas com eles procuram fazer nas crianças outras transformações em vez de ensinar. Mas os livros: rum! Chega a ser até um artifício para não termos que ser hábeis para ensinar como um professor é e para que o aprendizado seja uniforme e assimilado rapidamente. E sem risco de anarquia: se aprende a lição da forma que está lá. Ninguém briga com um livro: a ideia é aceita da forma com que está nele e sem desvio. Para garantir obediência: é só tornar o livro sagrado e convencer a criança disso. É bom aproveitar a cuca vazia para encher de crença e de obediência. Belo artifício! Aprender a ler tem que ser gratuito mesmo, pois o interesse maior é do controle. O analfabeto se escraviza menos.

Aí o professor sentiu um "tlin" cilindrar em seu diálogo interno. Inteligência artificial. Veio-lhe essas palavras à mente. Seguiu-se "artifício" e "artifício para instruir pessoas" e "como as pessoas são programadas" e, finalmente, "quem programa as pessoas". Logo ele deduziu: A inteligência humana também é artificial. Construímos um mundo a partir de uma inteligência natural, o complexamos com artificialidades e hoje as pessoas que trazemos ao mundo para viver nele necessitam ser preparadas por mais tempo. Elas continuam, sem que precisemos ensiná-las, a aprender como desviarem-se dos objetos, mas, para aquilo que não é natural elas dependem de nós para saber o procedimento correto. E aí, ensinamos elas a lerem ou a assistirem televisão e damos a essas coisas nossas tarefas didáticas. Ocupamos demais nosso tempo para que possamos fazer o que deveríamos, que é tomarmos conta de todo o aprendizado dos filhos até que eles possam se virar sozinhos. Faltamos-lhes com o amor e atenção. Deixamos isso para nossos instrumentos darem. Logo instrumentos que conseguem dar com mais certeza o ódio e nunca o amor. E o que vemos é cada vez mais as crianças terem dificuldades de aprender ou rejeitarem ser institucionalizadas. As tais crianças-indigo. Parece que isso é uma resposta da natureza. E essa resposta esfrega na nossa cara que pensamos ser sábios, mas que não passamos de tolos.

Eu sou analista de sistemas e autor do livro "Contos de Verão: A casa da fantasia". Torço para que você tenha lido este texto por inteiro e entendido a mensagem que eu gostaria de passar. Obrigado pelo interesse!