Morrer não é a saída
Ele acorda e percebe que está em um lugar claro demais. A luz quase o cega no primeiro instante. Não sabe como chegou ali. Estranhamente não está apavorado, apenas estranha. Os olhos vão se acostumando a claridade e ele vai percebendo que está em um lugar familiar, mas com algumas modificações. Aquele é o bar em que esteve bebendo o dia todo. Mas ao invés das paredes com um pintura laranja velha, todas as paredes e o chão são brancos e chegam a parecer que são eles quem emanam a forte luz. É tão calmo ali.
- Não acredito que apaguei no bar. Mas onde está todo mundo?- Ele se pergunta.
- Todos vivendo suas vidas Hank. - Responde uma voz familiar e misteriosa atrás dele.
Se vira assustado e se depara com Rick, seu amigo de infância. A visão é pavorosa, é horrível porque traí tudo que ele acredita. Rick não pode estar ali. Rick está morto. Morreu anos atrás quando foi baleado em uma esquina por estar com as pessoas erradas no lugar errado. Mas como pode um morto estar ali com ele? Sem nenhum dos ferimentos a bala, ainda mais se os tiros foram em sua cabeça e peito. É impossível.
- Ora "Grande H", é assim que fica ao me ver? Pensei que eu faria falta. - Diz Rick com um ar calmo, risonho e firme.
Hank permanece imóvel, "Grande H", só Rick o chamava assim, ganhou o apelido do amigo quando na infância na brincadeira de criança de desenhar com o mijo, ele conseguiu fazer a inicial do nome enorme na areia. Ganhou com isso apenas a competição e um apelido. Mas era uma boa lembrança. Coisas de moleque.
- Mas o que você tá fazendo aqui Rick? Não tá certo. Você tá morto. Eu carreguei o caixão. Até porque parte de mim morreu junto aquele dia, você era meu melhor amigo. Eu devia ter te tirado de lá quando passei por você enquanto ia pra casa. - A voz começou a tremer, o choro quase veio, mas como sempre ele o escondeu.
O que mais o assusta é que ele nunca acreditou em vida após a morte. Deus e diabo são apenas algo que os homens criaram pra justificar seus erros e bondades. Tirando o próprio mérito. A tal bíblia sempre contraditória, mas servindo apenas como um livro de "boas maneiras" para toda a sociedade. Mas então como pode Rick estar ali? Mas se pode ver Rick, e o lugar é todo assim estranho um pensamento mais sombrio toma sua mente.
- Eu morri? - Pergunta.
- Hank. Sempre querendo entender tudo. Não meu amigo. Você não morreu. Eu sou a sua consciência, ou melhor, o seu subconsciente, você me materializou na forma que estou agora. Você saiu essa noite. Parou nesse bar em que estamos. Encheu toda a sua cabeça com todo tipo de bebida e saiu no carro. Adivinha só o que motoristas bêbados fazem? Bem, aí está você depois de bater o carro em um poste.
Hank olha para todo o corpo. Não tem machucados. E por que não está no hospital? Conforme Rick falava ele assistia a si mesmo como um espectador, vendo aquele dia.
O despertador tocando as seis da manhã. O lembra de que está na hora de levantar. Precisaria ir trabalhar, mas hoje não iria. É aniversário da morte de sua esposa e filho. Todos dizem ter sido um acidente, que ele não podia saber. Mas cinco anos atrás esqueceu o gás e ligado, despejando-se pela casa. Estava com pressa, tinha de ir para o trabalho. Não deu atenção. Victória e Marquinhos, chegaram em casa depois de terem ido para a casa da mãe dela passar a noite por lá. Tinham brigado feio a noite porque ela não recebia mais atenção, porque ele só vivia para o trabalho. Mas se não trabalhasse, quem sustentaria a casa?
Enfim, chegaram e tudo que fizeram foi o gesto simples de ascender uma lâmpada. Uma lâmpada. foi o suficiente para causar a explosão que tirou a esposa sem lhe dar chance de chegar em casa e dizer que estava errado e ia arrumar tudo e o filho que por mais que Vic, já tivesse lhe dito que estava dizendo papai ele não teve tempo de ouvir uma vez sequer. A explosão acabou com a casa. Acabou com sua vida.
Mas hoje faria mais um ano que sua família lhe foi tirada. O mundo desde o acidente não era o mesmo. De bebidas em bebidas, de cigarros em cigarros, de lágrimas em lágrimas ele foi se tornando o pedaço humano de hoje. Magro, sem expressão no rosto e melancólico. Não. Não poderia ir trabalhar hoje. Pegou sua carteira. Foi para um bar onde ninguém o conhecia para que pudesse beber sem que ninguém o olhasse com aquela cara de quem tem pena. Sabe que começou assim que saiu do cemitério onde olhou mais uma vez as lápides e foi para beber até afogar as mágoas. Bem, elas não afogaram e ficaram ali, encarando ele, com olhos de sangue e sussurrando em seu ouvido que tudo fora sua culpa, apenas dele e de mais ninguém. A mágoa sabe como transformar o coração em um saco de pancadas. Saiu de lá apenas porque seu dinheiro acabara, pegou o carro e não conseguia nem inserir as chaves no contato. Após conseguir ligá-lo e sair viu que seu corpo era mais pesado do que podia controlar. Enquanto sua mente processava o caminho não dava conta de mandar os pés não descerem tanto no acelerador. Então de súbito uma velhinha apareceu no seu caminho, ele mal sabe como guinou o carro para o lado, não sabe se acertou ou se não. Tudo ficou escuro e então acordou ali com tudo claro.
O choro corre sua face. Tudo veio a tona em apenas um flash. Ele se senta ao lado de Rick que olha para ele com um ar indefinido.
- Porque eu não morri? Eu tenho que ter morrido. Lá é tudo duro demais.
- Você está em coma "Grande H", esse é o momento em que eu vou lhe dizer como voltar. Não tem nada aqui pra você. E nem aqui mesmo que morto você ficaria. Lembra tudo que sempre disse? Quem morre, simplesmente morre. Não tem eternidade de fogo, com seres chifrudos fodendo seu rabo com o tridente e nem gostosinhas com asas te acariciando se tiver sido bom. Você acaba. Como aquele aparelho que não liga mais porque não tem mais bateria.
- Mas eu não quero voltar.
- Por que? É difícil de mais de aguentar?
- Não. Porque aqui não dói. Aqui eu não tenho a dor de ser apunhalado pelo meu próprio reflexo, de todos me olharem com pena, de afastar qualquer pessoa que chegue perto ou qualquer outra dor. Aqui não tem. Até a lembrança de tudo já acabou. E sinto como se nem tivesse acabado de entender o motivo de acordar aqui.
- Entretanto. Você sempre acreditou que tudo que fazemos deve ter consequência. E você não está arcando com elas morto. Nesse momento tem uma senhora que mesmo que de raspão foi atingida pelo seu carro. E você deve permanecer vivo para dar a devida assistência a ela. Uma coisa é o acidente que aconteceu com Vic e Marquinhos e outra totalmente diferente foi a imprudência total que cometeu antes de seu coma. Esse sim é imperdoável. Levante-se Hank. Levante e saia do bar. É hora de dizer tchau. É hora de lidar com o mundo e parar de se entregar a ele.
- Mas não vai ser fácil.
- E desde quando foi? Nada foi fácil pra você. Nunca teve ajuda pra nada. Ninguém simplesmente vinha do seu lado quieto e te deixava chorar e lhe dava um abraço. Todos queria chegar e ficar falando que foi acidente, que não era sua culpa, que não dava pra saber que eles voltariam para casa aquele dia e não notariam o cheiro de gás que estava tomando a casa. Vic não percebeu também. Procurar o culpado ou se culpar não é o problema. Mas nesse caso da velhinha, temos um culpado. Você é o culpado e eu estou te lembrando que você não é o monstro que diz que é. Saia do bar agora e vá enfrentar os seus demônios.
A voz de Rick foi dura agora. Não o confortou em nada. Entretanto mostrou que não havia escolha. Ele fechou os olhos, respirou fundo, tinha o cheiro do perfume de Vic no ar. E quando o abriu novamente lá estavam eles. Vic e Marquinhos ao lado de Rick. Olhando pra ele de modo encorajador. Um olhar que não o recrimina, um olhar que o conforta. Rick mexe sua cabeça sinalizando para ele ir adiante e abrir a porta. Então ele se detém.
- Rick, irei me lembrar de alguma coisa?
- Como em um sonho Hank, praticamente nada do que foi dito. Afinal aqui é você falando com você mesmo. Mas está servindo pra mostrar que você ainda, mesmo que não perceba, tem fé em si mesmo e sabe que no final, sempre fará o certo.
Ele se vira, abre a porta. Tudo claro demais pra se enxergar do outro lado. Atravessa e logo em seguida tudo está escuro.
Seus olhos se abrem, está em vários aparelhos. Não que os esteja vendo, mas percebe pelos bip's constantes. A visão começa a entrar em foco, vê o policial do lado de fora da porta, o médico ao seu lado. Os olhos lacrimejam, o mundo volta a ser triste e ele só faz uma pergunta.
- A senhora... Como está a senhora? Está viva?