A Herança dos Antepassados

Um grupo de hominídeos altos e escuros, faces longas e sobrancelhas hirsutas, emergiu da floresta para a luminosidade dourada de fim de tarde que iluminava a pradaria à frente. O líder fez um sinal de "alto" e os demais imediatamente agacharam-se ao seu redor, tensos, farejando o ar e varrendo com os olhos a vasta extensão de gramíneas que ondulava ao vento. Manadas de auroques e cavalos primitivos pastavam sossegadamente, o que parecia ser um bom sinal. O mato também não estava alto, o que dificultava a ação de grandes predadores. E num atestado final de que tudo estava calmo, mais além, brilhando como uma miragem no meio do campo, erguia-se A Coisa.

Os hominídeos ainda não possuíam uma linguagem capaz de descrever o que viam, mas o fenômeno já era velho de dezenas de milhares de anos para eles. Os grupos se sucediam ao longo das eras, todos querendo ver com seus próprios olhos A Coisa. E alguns, mais privilegiados, haviam não somente visto, mas ouvido A Coisa. Ao voltarem para suas regiões de origem ou seguirem adiante, por caminhos que os levariam cada vez mais rumo ao oriente, alguns destes afortunados tentavam reproduzir os sons que haviam ouvido. Com um aparelho fonador ainda em evolução, as tentativas quase sempre acabavam em frustração. Ou em dança. Ninguém poderia imaginar, mas as primeiras manifestações de dança sobre o planeta Terra foram inspiradas por canções de marcha escocesas - tocadas numa gaita de foles.

* * *

- Quantos são? - Perguntou a Filha, mão em pala sobre os olhos.

- Oito... nove... - contou o Avô, binóculo apontado para a orla da floresta. Cem mil anos atrás, as árvores estavam muito mais próximas, mas o clima no planeta tornara-se mais quente e seco, e vastas extensões de gramíneas haviam substituído as velhas florestas.

- Dois machos adultos, duas fêmeas e cinco crianças. Há um bebê com uma das mulheres. Então são 10, no total - disse o Avô.

E entregando o binóculo para o Neto, acrescentou:

- Hora de fazer um pouco de barulho.

O Avô ajeitou a gaita de foles e imediatamente começou a tocar "Scotland The Brave", ladeado pela Filha e pelo Neto que cantavam a canção que falava da saudade do beijo doce da chuva escocesa em seus rostos, bem longe daquela pradaria banhada de sol.

* * *

- Dr. Jankuhn! Dr. Jankuhn! O senhor precisa ver isso!

Surpreso com a entrada intempestiva do seu assistente, o arqueólogo pousou sobre a mesa de campanha a lupa que utilizara para examinar uma ponta de flecha de sílex e ergueu-se.

- O que houve, Hans? Porque esse tumulto todo?

- O senhor precisa ver com seus próprios olhos, Dr. Jankuhn! - Disse o assistente com veemência.

Herbert Jankuhn seguiu o assistente para fora da barraca de lona. O acampamento havia praticamente parado com os gritos de Hans, os homens encarando-os sob o sol da manhã, enquanto passavam rumo ao sítio arqueológico. O terreno havia sido dividido em quadrados delimitados por estacas, dentro dos quais eram feitas as escavações. Alguns dos quadrantes já estavam bastante profundos, e era necessário descer por uma sequência de patamares escavados no solo escuro até atingir o nível desejado. Quando passaram pelo nível que marcava o alvo da pesquisa (a Idade do Bronze), Jankuhn começou a entender a excitação do assistente.

- Hans, do que se trata? Estamos indo fundo demais... encontrou vestígios de neandertais? Cro-Magnons?

- Melhor, Dr. Jankuhn... muito melhor! - Respondeu o assistente. - Chegamos!

Jankuhn olhou para cima e viu os rostos de vários membros da expedição que tentavam enxergar o que quer que fosse que havia sido descoberto. O arqueólogo inspirou profundamente antes de olhar para baixo. Seus olhos precisaram de alguns instantes para se acostumar com a penumbra no fundo do buraco.

- Aqui! - Exclamou Hans triunfante, agachado junto a um objeto esbranquiçado, parcialmente enterrado.

Jankuhn também agachou-se e pegou um pincel que lhe foi estendido pelo assistente. Cuidadosamente, começou a remover a terra que rodeava o objeto. Finalmente, encarou Hans e perguntou:

- Este é o nível do Pleistoceno?

- Sim, Dr. Jankuhn!

- Cerca de meio milhão de anos atrás?

- Jawohl! Encontramos ossos de rinoceronte lanudo nos quadrantes ao lado.

O arqueólogo baixou o olhar novamente para o objeto semienterrado.

- Isso é extraordinário... - murmurou. - Isso é absolutamente extraordinário!

- A descoberta de uma vida! - Proclamou Hans, radiante.

* * *

Haviam marcado de tomar chá no salão da Aerated Bread Company situado na Norfolk Street. Ao chegar, a filha já encontrou o pai sentado numa das mesinhas do fundo, lendo o "Times". Ele ergueu-se, sorridente, e beijou-a em ambas as faces. Quando sentaram-se, ainda sem deixar de sorrir, ele disse:

- Eu deveria estar furioso com você.

- Eu sei - respondeu ela, num fiozinho de voz.

- Você viu a manchete do "Times" de hoje?

- Eu... ouvi na BBC, papai.

- Tempos modernos - respondeu o velho professor, chamando uma garçonete.

- Senhor? - Perguntou a atendente ao aproximar-se.

- Chá para dois, senhorita. E duas porções daqueles fantásticos pãezinhos integrais. Vocês tem manteiga?

- Não senhor. A manteiga está racionada - respondeu a garçonete, enquanto anotava o pedido. - Mas temos margarina.

- Que seja margarina então - ponderou o professor.

E virando-se para a filha, mostrou-lhe a primeira página do jornal.

- Satisfeita com sua traquinagem? - Indagou.

- Papai... eu não sei o que dizer. Juro - respondeu ela com expressão contrita.

Foi então que, após dobrar cuidadosamente o jornal, o professor pôs um cotovelo na mesa e apoiando o rosto na mão, começou a rir.

- O que há de tão engraçado nisso, papai? - Perguntou ela.

Ele riu durante mais alguns instantes e quando ergueu os olhos para ela, estes estavam cheios de lágrimas.

- Sabe o que é realmente engraçado nesta história? É que nós dois sabemos que ela é verdadeira... em parte, que seja!

- Oh. - Disse ela, abrindo um sorriso.

- Mas ninguém mais... além dos nazistas, é claro... vai acreditar nisso por um minuto que seja!

Quando a atendente chegou com o pedido, pai e filha ainda estavam rindo.

[16-02-2014]