Ambulância (O Fim e Reinício do Mundo)
Pela rodovia deserta seguia uma solitária belina. Velha e amassada, soltando nuvens por seu escapamento pendurado por um arame. Aquele veículo era antigo, herança de um tempo em que essas grandes massas de ferro e metal eram feitas para durar. Já deviam ter se passado cerca de dois meses desde que todos os aparelhos eletrônicos pifaram. Já não se viam mais carros largados pela estrada, tendo sido parte deles posta em funcionamento, conforme o possível, e a maioria simplesmente empurrada para fora do caminho. Mesmo sem a parte elétrica, uma série de gambiarras permitiu à velha belina 82 de Antônio funcionar satisfatoriamente.
Ainda não havia energia elétrica ou redes de comunicação em lugar nenhum, e ninguém sabia quando ou se haveria. Nesse meio tempo, Antônio arranjou um emprego de entregador, entregando mantimentos, cartas e utensílios entre cidades. No começo, o serviço mostrou-se mais lucrativo do que qualquer outro bico que Antônio teve, mas hoje, seu ofício trazia inúmeros perigos. Sem comunicação, poucos meios de transporte, comida escassa e uma população desorientada, rapidamente surgiram milícias, lutando entre si e contra todos buscando dominar os bairros, cada vez mais se tornando pequenos feudos em seu isolamento. Porém, o maior perigo não vinha dos grupos armados nas cidades. O maior perigo para os entregadores eram os cobradores de pedágio. Grupos que formavam acampamentos nas rodovias, cobrando pela passagem de qualquer um querendo seguir de uma cidade a outra. Tal como suas contrapartes urbanas, usavam violência para conseguir o que queriam, com cobranças que variavam de alguns trocados a toda a carga levada, dependendo da boa vontade de quem estivesse no comando, comando esse variando de acordo com as violentas disputas internas de poder. De qualquer forma, não eram seguras as rodovias.
Antônio viu uma fumaça no horizonte, indicativo de um acampamento de cobradores. Felizmente, estava perto de um retorno, e ele sabia que paralela à rodovia seguia uma estrada de terra batida que poderia usar. Seguido por ela, ouviu um estouro ao longe. Alguém tentara atravessar a barreira a força, aparentemente. De qualquer forma, isso pouco tinha a ver com ele.
A poeira daquela estrada formava nuvens atrás do carro. O vento e as chuvas passadas apagaram qualquer rastro de pneus dali. Aquela estrada provavelmente foi usada pouquíssimas vezes desde o dia em que tudo o que era elétrico simplesmente parou de funcionar. Pela fumaça atrás dos arvoredos, ele devia estar passando ao lado do pedágio. Tirou o pé do acelerador e deixou o carro prosseguir em ponto morto até se afastar dali. O barulho poderia entregá-lo. Alguns quilômetros adiante, já longe o suficiente do perigo, uma subida permitia retornar à rodovia.
Havia outro carro lá. Antônio às vezes via um ou outro carro consertado passando, e diversos carros parados e abandonados elos acostamentos e calçadas. Mas um carro parado e ocupado era estranho, além de perigoso. Um fusca marrom estava parado, com seu motorista tentando, com algumas poucas ferramentas que tinha à mão. Era magro, com uma camisa surrada e uma calça velha. Não parecia um membro de milícia. No banco de trás podia-se ver uma pessoa. Mas não se podia dizer sua aparência por detrás do vidro empoeirado.
Antônio encostou alguns metros a frente e, olhando atentamente àquele homem pelo retrovisor, pegou o revólver que escondia embaixo do banco e o guardou em sua calça, preso ao cinto. Ele nunca quis atirar em ninguém, e até este dia nunca disparara a arma, mas sempre houve quem fingisse precisar de ajuda para ter a oportunidade de assaltar um incauto bom samaritano. Saiu de seu carro e se aproximou daquele fusca, movendo-se afastado pronto pra qualquer coisa que acontecesse.
_Precisa de ajuda, senhor? – Disse, enquanto olhava discretamente para o interior do veículo e se surpreendeu com o que viu lá dentro – Essa não!
Uma grávida. Havia uma grávida lá dentro. Pela barriga, suor e expressão de dor, qualquer um poderia perceber que aquela mulher estava prestes a dar a luz. O que aquelas pessoas estavam fazendo ali no meio do nada? Com os olhos arregalados, veio aquele homem em sua direção.
_Moço, me ajuda!
Atordoado, Antônio olhava do carro para o homem, que continuou.
_A gente tava indo pra cidade procurar um médico, mas o carro quebrou, por favor, ajuda a gente!
A cabeça de Antônio girava, aquilo era algo que ele nunca esperaria estar acontecendo com ele. Qual seria a chance de se encontrar situação semelhante? Ainda mais nesses tempos em que não havia quase nenhum movimento entre cidades. Aquilo poderia ser um golpe, mas não havia um porquê de um golpe tão elaborado. E o problema passado por aquele casal fosse verdadeiro, a desconfiança de Antônio iria provavelmente causar ao menos uma morte. Por fim, decidiu.
_Vem comigo, eu levo vocês até lá, é meu caminho.
Seguiu então a belina, agora uma ambulância improvisada, Antônio ao volante, arma ainda escondida por via das dúvidas, o homem no banco de passageiro e a mulher no banco de trás. Após alguns quilômetros o motorista perguntou:
_ Mas o que vocês dois estavam fazendo naquela rua daquele jeito?
_ Lá onde a gente mora tá sem médico, moço, aí eu pus a Ana no carro e a gente tava indo pra cidade pra ela dar a luz, mas aquela joça quebrou no meio do caminho. Bem quando a gente mais precisa dessas porcarias elas deixam a gente na mão.
Ofegante, Ana, a mulher no banco de trás, disse pausadamente, entre suas respirações fortes:
_Obrigada, moço… você salvou a gente… Lá onde a gente mora não tem quase… mais ninguém… todo mundo foi indo embora… agora só sobrou… o povo mais velho… e a gente que não tem pra onde ir…
_Ana, tenta descansar, deixa que eu explico – interrompeu o passageiro, em um tom preocupado – Ela não tem família em lugar nenhum, então ela acabou ficado por lá até que não teve mais jeito. Lá na vila não tem médico, então não teve jeito de nada. Eu consegui fazer aquela joça funcionar um tempo atrás, então eu vim trazendo ela. Poxa, brigado, senhor.
Antônio olhava firme a frente, o bem estar seu e de seus tripulantes dependia de ele avistar os pedágios antes de ser visto pelos bandidos. Continuou a conversa:
_O nome dela já vi que é Ana, e qual é o seu?
_João.
_Você é o pai da criança?
_Não, sou só um conhecido da família. O pai sumiu no mundo e largou a Ana lá com o neném na barriga. Desgraçado.
_ AAAhh! – gemeu Ana, as dores pioraram. João olhou pra traz e confortou-a:
_Calma, Ana, falta pouco.
E realmente faltava, só três quilômetros, em pouco tempo a vagarosa belina chegaria ao seu destino. Antônio passava sua atenção da estrada para a sua pobre passageira. E exatamente por esse motivo demorou a perceber a fina faixa marrom no horizonte. Quando a notou, percebeu que aquilo era uma barragem de madeira. Havia um pedágio ali.
A freada brusca jogou os passageiros pra frente. Ana gemeu ainda mais dolorosamente. Antônio poderia dar meia volta, mas não havia uma pista paralela dessa vez. Outro caminho para a cidade levaria um dia inteiro, com a certeza de toparem com outros pedágios no caminho. Olhou pra trás. Ana não aguentaria mais. Não tinha jeito. Como quem passivamente caminha pelo corredor da morte, Antônio acelerou parcamente a belina em direção a barreira.
O pedágio consistia na verdade em um monte de tábuas e sucata montando uma parede no acostamento e em seus arredores, com um improvisado portão de madeira puxado por cordas. Era possível quebrar o portão e passar em alta velocidade, mas na maior parte das vezes era suicídio, pois ao menor sinal de um avanço repentino os cobradores abriam fogo contra o veículo. Nesses tempos, o fogo inimigo poderia ser desde lanças esculpidas de madeira até um tiro de escopeta ou metralhadora, apesar de o alto custo da munição fazer esse último recurso ser usado somente quando havia certeza de lucro no veículo abatido. Um veículo funcional geralmente valia as balas gastas. Nessa situação isso era péssimo. O meio mais seguro de atravessar um pedágio à força era durante a noite, quando não havia vigilância forte, muitas vezes vigilância nenhuma, e podia-se atravessar com apenas um ou outro buraco de tiro ou ataque. Antônio podia ver dois cobradores, um de cada lado da via, a frente da barreira, com mais um atrás do portão. Como havia cordas para puxar o portão, podia-se presumir que havia mais dois cobradores fora de vista para puxar a corda. O acampamento de cobradores costumava ficar perto dos pedágios, para facilitar o revezamento na função e providenciar reforço armado, caso fosse necessário. Realmente, atravessar a força não era uma opção.
Ao chegar perto do portão, um dos vigias fez sinal para que Antônio parasse e aproximou-se da janela do motorista. O vigia usava uma camisa regata e calça folgadas, e trazia na cabeça um boné surrado com um pano, provavelmente de uma camisa rasgada, que protegia sua nuca do sol. Aproximou seu rosto suado do vidro, e mandou que Antônio saísse do carro. Não se tinha certeza se estava armado.
Com expressão impassível e olhar fixo nos de Antônio, o cobrador começou:
_O que cê tá levando aí?
_ Só umas cartas, senhor.
_Cadê elas?
_ No porta-mala, senhor.
_ Abre lá.
Os dois dirigiam-se ao porta-malas da belina, quando João saiu do carro, consternado.
_ Moço, deixa a gente passar, a moça tá passando mal!
Antônio prendeu a respiração quando viu o olhar frio com que o cobrador olhou aquele pobre maltrapilho. Não teve dúvidas, estavam à beira da execução. O cobrador lentamente sacou o revolver que levava em sua calça folgada e apontou para João, que começou a gaguejar, o sangue parecendo parar de correr em seu rosto empalidecido. Antônio pensou em pegar a arma escondida em sua própria calça, mas isso só pioraria a situação. Pausadamente, o cobrador disse por entre os dentes:
_Volta pra dentro dessa merda.
João estava paralisado. Não parecia sequer respirar. Antônio se adiantou, abrindo lentamente o porta-malas:
_As cartas estão aqui.
Com a arma ainda em punho, ainda apontando para João, o cobrador olhou um grande saco ao lado de duas caixas. Apontando a arma agora para Antônio, o cobrador revirou com a mão livre o saco e abriu uma das caixas. Nela havia comida. Com um sorriso longe de amigável, disse a Antônio:
_Você vai. As caixas ficam.
Sem dizer nada, Antônio acenou positivamente com a cabeça e se dirigiu ao carro. Lentamente, João embarcou ao seu lado, olhes vidrados à frente, sem realmente ver nada. O choque ainda levaria um tempo a passar. Seguiram em frente, os único sons eram o motor da belina e os gemidos de Ana.
Por fim chegaram ao hospital da cidade, parando em frente a enorme fila de pessoas sofrendo de desnutrição ou intoxicação, uma vez que não havia forma de se estocar eficientemente alimentos e não havia mais tratamento de água. Com esforço, Antônio e João ajudaram a gestante a sair do carro. Com as mãos ainda tremendo e os olhos marejados, João disse:
_ Obrigado, Antônio, você salvou a gente. Com certeza, você é um santo.
Ana sorriu como pode, apesar da dor. O par se despediu e adentrou o hospital. Antônio os observou enquanto se afastavam. Quando não pode mais vê-los, soltou um longo suspiro e voltou pra dentro do carro. Era hora de fazer a entrega.
Dez minutos de viagem depois, chegou a um armazém aparentemente abandonado. Passou com o carro por cima do portão caído no chão. Pelo seu estado enferrujado, aquele portão já havia caído e aquele armazém já havia sido abandonado anos antes de seja lá o que acabou com os aparelhos elétricos. Em uma das dezenas de janelas quebradas, Antônio viu um vulto se movimentando. O barulho alertou as sentinelas. A belina parou próximo a porta da garagem, entreaberta e torta. Por ela saiu um homem com expressão ameaçadora, as mãos dentro de uma pesada jaqueta. Perguntou:
_Você é o entregador?
Antônio acenou positivamente com a cabeça. Abriu o porta-malas. Lá só restava o saco de cartas. Antônio retirou-as e pôs delicadamente no chão. Então, apoiando o pé na borda do porta-malas, entrou no porta-malas e pôs a mão em uma abertura no bando traseiro do carro. Por sorte, nenhuma daquelas pessoas que encontrou nesse dia reparou que a traseira daquele banco era grossa demais. Puxou o fundo falso. As caixas escondidas ali caíram, o barulho de dezenas de pequenas coisas batendo saiu de dentro de cada caixa. Sem tirar as mãos da jaqueta, o homem fez um sinal com a cabeça. Da garagem saíram mais três homens.
Enquanto os três homens carregavam as caixas, o homem disse a Antônio:
_ Você trouxe a munição como o combinado. Então pode ficar tranquilo, quando a gente tomar os pedágios saindo da cidade você vai ter passe livre e uma cama pra dormir quando vier fazer entrega.
Educadamente, Antônio acenou, pegou as cartas e voltou para o carro. Dirigia-se para o correio, para enfim entregar as benditas cartas ao seu destino. Pensou na arma escondida debaixo do banco. Nunca atirara em ninguém, mas sentia como se houvesse acabado de atirar. Arrependia-se de ter aceitado aquele serviço, mas ter o favor de um grupo de futuros cobradores era uma oferta que ele não pode recusar. “A vida era mais fácil quando se usava dinheiro”, concluiu.