Água da Morte
O planeta era Odisn-y 4 e ali estava um palestrante com um smoking velho e gasto. Apesar do rosto envelhecido pelos milênios os doze olhos continham um brilho de um menino ao anunciar o vencedor da Feira Anual Científica do Colégio Cinturão de Odisn-y 4:
- Acho que neste ano iremos premiar uma significante descoberta para os corpos de água deste Universo! Uma teoria única!
Todos aplaudiram o diretor Reich. A voz dele tremia.
O Colégio era considerado a escola de gênios da Galáxia. Ali haviam premiado a descoberta da Teoria do Tudo, a fórmula da fusão nuclear e a criação do primeiro buraco de minhoca. E neste ano o novo diretor Reich havia anunciado algo grandioso.
- Gostaria de chamar o aluno deste ano. - O diretor Reich anunciou. - E preparem-se pois esta noite vai mudar a concepção que vocês tem da água. E o Cinturão Solar vai para... a Terra!
500 bilhões de pessoas que assistiam a transmissão ao vivo não acreditaram no que ouviram. A Terra era considerada um mundo primitivo. Já era uma surpresa um terráqueo ter conseguido uma bolsa.
Reich esfregou as asas com emoção. Um menino terráqueo subiu até o palco de apresentações. Era um garoto pequeno e franzino, parecia um bebê odins-yano recém-nascido. Com um cérebro tão pequeno parecia improvável que fosse um gênio ou que soubesse até mesmo derivar. Coisa que evidentemente qualquer bebê odins-yano saberia.
- Venha, você foi brilhante! - O diretor sorriu.
O menino desconfortavelmente subiu ao palco virtual em que pode contemplar uma imagem tridimensional de 500 bilhões de rostos que tinham se conectado para assistir o evento. Respirou fundo e começou:
- Bem. É difícil dizer por onde começar. Eu só tentei determinar o efeito de certos sons, pensamentos e sentimentos sobre a estrutura da molécula H20. Descobri, bem, eu imaginei que as palavras pudessem alterar a estrutura da molécula de água. Como a maioria dos seres da Galáxia tem 60% dos corpos formados por água, eu pensei, oh, é uma boa pesquisa. Foi feito vários experimentos: expus uma molécula de água ao som do rock, de uma ameaça de morte e ao som de uma oração, por exemplo, e os resultados foram bem diversos. E acho que a descoberta é... digamos, hã, perturbadora.
As pessoas olhavam incrédulas.
- Vamos, continue. - Pediu o diretor.
O menino prosseguiu deixando de lado a aparente timidez:
- As palavras que dizemos alteram a água. Descobri que nós, seres dotados de razão e emoções, nós, os "humanóides" em escolhas e pensamentos, podemos alterar uma molécula pelo simples som. Não o som em si, como também a entonação e até mesmo a intenção ao dizer. Nada que dizemos faz sentido. Nós tínhamos uma chance. Mas não. Nós fomos poluídos. Estudei as palavras, as diversas línguas, e a maioria do que falamos: é lixo! Mesmo quando falamos bom dia ou obrigado não passa de uma formalidade. Nosso único contato é virtual e mesmo assim nos apegamos tanto a gramática quando tudo que deveríamos fazer é grunhir como animais. É inútil! Veja a estrutura da molécula da água presente em 800 espécies. Corrompida!
Algumas pessoas gritaram. Os patrocinadores do evento estavam alarmados. Onde estava a grande descoberta? Como um pobre terráqueo poderia dizer aquilo? Eles esperavam uma tecnologia que pudesse ser convertida em milhões, em armas de ponta ou dispositivos para mineração, mas ali estava o simples estudo das palavras. O Prêmio do Ano ia para um linguista.
- A conclusão do estudo, então, é... - O menino parou confuso. Não conseguia dizer da maneira certa. Pesou cada palavra.
- Diga, a conclusão! - O diretor bradava alheio a tudo. Mas o menino estava calado. Ele parecia que estava se afogando mas não havia nenhuma evidência de ter bebido algo. E o corpo dele molhado, água pingando pela manga do terno, pela calça, seu rosto empapado.
- O poder das palavras. - Disse o menino sorrindo. Foram suas últimas palavras. Realmente os habitantes de Odisn-y 4 não estavam preparados. Preferiam os contatos dos tele-comunicadores, os chats sociais, as palavras inúteis. E aquele menino quase destruíra tudo. Por isso foi criado um pequeno buraco negro dentro do corpo do garoto. A matéria pode ser comprimida, mas até um limite, e mesmo um pedaço de célula pode se tornar uma singularidade se for extremamente comprimida. E o buraco negro drenou o que havia de maior abundância em suas células: a água.
Apenas sangue havia sobrado. E palavras nunca ditas.