Viagens

A despedida numa simples viagem pode causar ou não dor. Depende muito de quem, para onde e como se viaja. Uma viagem de férias, por exemplo, não gera tanta angústia na hora da partida, uma vez que é como se fosse um prêmio, mormente para quem parte. Viajar, passar uns diazinhos fora para logo em seguida estar de volta, é uma coisa boa. Viagem a estudo ou a trabalho por longo período produz sim um certo mal-estar. Viagem de mudança definitiva dói. Dói muito. Mas, decerto, a última viagem, aquela para a eternidade, é a pior. Pelo menos para a maioria das culturas.

A viagem à qual me refiro agora e da qual participei por um momento como observadora histórica foi realmente uma viagem histórica. E assaz dolorosa. E não se tratava da última viagem. A população da Terra já havia ultrapassado o limite que o planeta poderia sustentar. Aqui não é o caso de comportar. É de sustentar mesmo. Em vários aspectos. A corrupção alcançara proporções aterradoras. Os governos haviam se unido a fim de tentar conter o aumento desenfreado do banditismo em todos os setores da atividade e relacionamento humanos, tentado diminuí-lo até mesmo nas corporações de comando do planeta. Além do que não havia trabalho para todos, nem alimento, nem migalha de terra, nem espaço para se construir mais arranha-céus. Precisava-se diminuir a quantidade de gente respirando o mesmo ar.

Com a tecnologia avançada, os cientistas estavam encontrando soluções paliativas e outras de efeitos definitivos para a diminuição e aniquilamento da poluição. Entretanto, era, de fato, necessário diminuir o número de usuários e parasitas no planeta.

O projeto de se desenvolver colônias na Lua já era uma realidade, mas a viagem nos ônibus espaciais correspondia às excursões das antigas naus pelo Atlântico. Devido ao sistema das estruturas construídas na lua, que comportavam o oxigênio, as quais tinham a forma de um casulo cósmico cravados em solo árido, estar ainda em fase de teste, para lá não se podia ir e vir com a facilidade que alguns imaginariam. Apenas as tripulações autorizadas, cujos membros haviam aceitado a missão de viver, de certa forma, como sacerdotes espaciais, é que tinham condição de fazer viagens periódicas entre lá e cá. O perigo de contaminação dos casulos era um fato. Dessa forma, quem fosse para lá habitar passava por uma espécie de esterilização. Daí, uma vez lá dentro, se saísse, não poderia sobreviver, pois seu organismo fora reestruturado para se adaptar ao novo mundo, através de um avançado processo de transformação cujo metabolismo era impulsionado artificialmente e para o qual não havia reversão. O organismo das pessoas ficava, depois da esterilização, altamente fragilizado para a convivência na Terra, impedindo-as de novamente entrarem em contato com seus conterrâneos que aqui permanecessem. Esse processo permitia aos habitantes dos casulos compartilharem da limitada produção de oxigênio que a Ciência conseguira criar, além de poder ingerir e processar a nova forma de alimentação química.

Os “sacerdotes espaciais” doavam suas vidas para que os colonizadores pudessem sobreviver pelo tempo estimado, até a evaporação de seus corpos, visto que alguém precisava fazer a manutenção das construções, meios de comunicação e das fábricas lá existentes, transportando o material necessário e reciclando a lixeira lunar, apesar do alto nível de informatização dos casulos. A tripulação sofria uma mutação orgânica que lhe permitia entrar e sair do casulo sem contaminar e sem morrer de repente, mas estava ciente de que na Terra não poderia também viver normalmente com os demais e que a duração de sua vida, pelo novo metabolismo, seria reduzida. Esse trabalho era como o alistamento para a guerra, numa escala menor e seleção maior.

Viajar para lá não era um prêmio, como uma viagem de férias. Nem se podia amenizar a dor como se fosse uma viagem a negócio ou a trabalho por longo tempo, com retorno certo. Também não era apenas como uma simples viagem de mudança definitiva para outra cidade ou país. Era pior. Era como a última viagem, a viagem para a eternidade, a própria morte. Só que pior ainda. E por conta disso havia uma seleção da população que deveria ser mandada logo para lá, a fim de se diminuir os problemas por aqui e de se permitir a continuação do aumento, reduzido ao extremo, do índice de natalidade. Mesmo com todas as mulheres tendo a madre fechada após o primeiro filho. Aqueles considerados socialmente desajustados, políticos vistos como agitadores ou suspeitos de corrupção, cidadãos legalmente flagrados no banditismo e mais alguns inocentes parasitas, culpados apenas por serem pobres ou doentes, compunham a enorme lista dos selecionados a abandonar o solo de onde reconheciam fazer parte.

Quando cheguei para presenciar a ida dos condenados ao exílio cósmico, fui notificada de que aquela não era nem a primeira nem a segunda leva que partia. Outras já haviam sido enviadas para lá havia algum tempo. Fui designada para apenas registrar o momento ímpar dos que se despediam e seguiam para aquele confinamento na Lua: a despedida. Tentei cumprir com imparcialidade minha missão. Mas por dentro minha alma se rasgava, condoendo-se com a angustiada expressão, mistura de torpor e desespero, que se estampava naqueles olhos que eu, aparentemente, fitava com indiferença. Eu estava à porta da aeronave vendo os últimos passageiros que subiam e seguiam em frente sem querer deixar de olhar para trás e que se apresentavam escoltados pela segurança da base de lançamento. Creio que, por mais que me esforce, não conseguirei aqui descrever o que captei naquelas fisionomias e o que o contato com aquelas pessoas me fez sentir. Os familiares dos que partiam olhavam para seus amados como se estes fossem recém-defuntos. A expressão dos que ficavam era a de um pai impotente sofrendo ante os ultrajes que o filho recebia sem nada poder fazer. Mas a dor maior era de quem partia. Eu quase podia tocar sua angústia, seu desespero, sua paixão aflorada ao último grau, de tão forte que era a ponto de parecer palpável. Paixão de quem perde tudo num só momento. Estes não perdiam apenas o direito de viver em sua pátria. Perdiam o direito de respirar oxigênio natural, de degustar os sabores da Terra, de ser humanos como os outros, de visitar o túmulo de seus entes queridos, de acreditar num possível reencontro com seus amados. Perdiam o direito de, ainda em vida, povoar o planeta onde nasceram. Perdiam sua identidade. Experimentavam, na verdade, uma prévia da morte, cuja dor maior era ter claro na consciência a dimensão da perda definitiva e irreparável do mundo que tanto amavam. A minha dor também não era pouca. Eu desejei ardentemente poder impedir aquela partida. Queria livrá-los, socorrê-los. Amei-os como a mim mesma. E senti como é terrível amar e não poder proteger a quem se ama.

Janete Santos
Enviado por Janete Santos em 22/04/2007
Reeditado em 11/07/2012
Código do texto: T459736